15 dezembro 2005

Stravinsky à la MTV

Linguagem gráfica de vídeos-clips é utilizada em ópera lançada em DVD

Desde sua invenção no século XVII a ópera entrou definitivamente na cultura ocidental, e parte deste sucesso pode ser creditada à riqueza visual que passou a acompanhar este espetáculo essencialmente musical. De forma mais ou menos paralela, artes plásticas e música encontraram na cenografia operística e de bailado seu ponto comum.

No século XX, com o advento da televisão e de outros meios comunicação e entretenimento surgidos a partir da popularização dos equipamentos eletrônicos, toda a cultura designada como música clássica limitou as possibilidades dessas novas mídias visuais a uma função meramente documental. Via de regra, as óperas filmadas são apenas o registro insípido do que se passou no palco e os concertos sinfônicos, na melhor das hipóteses, estão restritos a tomadas gerais da orquestra e closes sobre os instrumentos musicais auditivamente mais proeminentes em um dado instante.

Tudo isto pode ser entendido como mais um reflexo do conservadorismo que há tempos domina a cena clássica, que em diversos aspectos não assimilou as conquistas da modernidade (inclusa aí a própria música composta nos dias atuais).

Apesar disto, foram realizadas algumas tentativas isoladas para dar maior exuberância a estes registros áudios-visuais. Talvez o maior exemplo seja o longa-metragem “Fantasia”, no qual Walt Disney e o maestro Leopold Stokowsky unem-se para fazer da animação e da música uma só arte. Já nas décadas de 70 e 80, nos primórdios da era do vídeo-clip popular, o “über-maestro” austríaco Herbert von Karajan já fazia seus experimentos visuais, por exemplo, no vídeo da “Sinfonia No. 6” de Beethoven, com a Filarmônica de Berlin sendo gravada em um estúdio de cinema e não numa sala de concerto. Apesar de belos e interessantes exemplos, a moda nunca pegou.

Em meio a este ostracismo, chega ao mercado nacional um belo exemplo da união da música com a moderna linguagem da computação gráfica: trata-se da ópera “Le Rossignol” (“O Rouxinol”) do compositor russo Igor Stravinsky na produção da Ópera Nacional de Paris sob a regência de James Conlon (Virgin Classics/EMI, R$ 51).

Baseado no conto de fadas de Hans Christian Andersen, a ópera conta a história de um rouxinol (a soprano Natalie Dessay) que é convidado a cantar para o imperador da China (o barítono Albert Schagidullin), que literalmente se encanta com o pássaro. Entretanto, este é afugentado pelo barulho de um pássaro mecânico oferecido por três emissários japoneses e só retornará para, com seu canto, salvar das garras da Morte (a contralto Violeta Urmana) a vida do imperador doente.

Trata-se de uma história simples, naturalmente onírica, sobre a qual o uso delicado de recursos de computação gráfica desta vídeo-ópera, misturados com tomadas de cantores e de alguns instrumentos musicais, transmitem uma atmosfera impossível de ser obtida no palco de um teatro.

Sob a direção do artista gráfico francês Christian Chaudet, o “Rouxinol” de Stravinsky ganha uma dimensão surrealista, na qual elementos da cultura chinesa tradicional (tal como a cenografia virtual construída sob o modelo da Cidade Proibida) são colocados ao lado da luz néon dos anúncios que latejam nos grandes centros urbanos. Entre a gravação da trilha sonora e a finalização da parte visual, este ambicioso projeto consumiu cinco anos de produção.

Em alguns momentos fica a impressão de um certo deslumbramento com as possibilidades da computação gráfica, mas na maior parte do tempo a direção de Chaudet garante maior inteligibilidade a situações dramatúrgicas difíceis de se resolver no palco (o que não quer dizer que a subjetividade tenha sido colocada de lado).

Livre das amarras do palco italiano e da lei da gravidade, as personagens flutuam, cenários variam de dimensões minúsculas às colossais e o coro é visualmente sublimado, imprimindo um aspecto de “coro grego” (isto é, fora da ação cênica). Realizando pontes com nossa contemporaneidade, Chaudet usa um moderníssimo telefone celular para, por vezes, representar o rouxinol. O pássaro mecânico oferecido pelos enviados japoneses é um grotesco cartum em 3D e a Morte é metamorfoseada numa mercadora à frente de sua caixa registradora. Tudo isto ocorre no sonho de um garoto chinês, que tudo testemunha através de um vaso de cerâmica que desempenha a função de “lanterna mágica”.

Com tantos atrativos visuais é até fácil não prestarmos atenção na sensível interpretação musical do maestro James Conlon e do elenco vocal, que conta ainda com a mezzo Marie McLaughlin no papel da Cozinheira e com os baixos Laurent Naouri e Maxime Mikhailov como Camareiro e Bonzo, respectivamente.

Inteiramente cantada no original em russo, o DVD conta com legendas em diversos idiomas. Porém, não há nada em português, como é infelizmente de praxe na comercialização de produtos clássicos no Brasil. Mas antes de embarcar neste maravilhoso mundo de sonhos, atenção!: no menu inicial, selecione no menu “audio” a opção sem sonoplastia (“original music”), pois a infeliz inserção de ruídos cênicos – em especial, no segundo ato – é o calcanhar de Aquiles desta bela produção que merecer ser vista e revista.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

06 dezembro 2005

Pérola marselhesa perdida na metrópole sufocante

Grupo vocal Musicatreize faz discreta passagem por São Paulo, onde realizou apresentações singulares.

Às vezes há tanta coisa em São Paulo, e não raro essas boas coisas são tão mal divulgadas ou mesmo eclipsadas por lixos de consumo em massa, que é preciso ficar atento, ou contar com a sorte, para não deixarmos escapar oportunidades únicas de testemunharmos pequenos milagres artísticos.

Este foi o caso das apresentações do grupo vocal especializado em música contemporânea Musicatreize. Sediados na cidade mediterrânea de Marselha, o grupo é conduzido pelos precisos gestos de Roland Hayrabedian, seu fundador e diretor artístico.

Em suas apresentações na rede paulistana do Sesc - tristemente vazias devido à ausência de uma divulgação adequada - o grupo nos presenteou com um repertório impossível de ser realizado por qualquer grupo vocal brasileiro da atualidade. Ok, teve alguns "bombonzinhos", como as "Três canções" de Maurice Ravel, as "Três canções sobre Charles d'Órleans" de Claude Debussy e as "Sete Canções" de Francis Poulenc.

Por outro lado, obras arrojadas e dificílimas como as "Três Fantasias" de György Ligeti, "Oroïpen" de Felix Ibarrondo e a cativante "Quatrains" de Edith Canat de Chizy foram oportunidades únicas de ouvirmos aquilo o que há de mais belo e ágil que a moderna produção composicional pode extrair da formação coral a capella.

O concerto encerrou todos seus concertos com a obra "Swan Song" de Maurice Ohana, compositor francês de quem o grupo já gravou dois CDs inteiramente dedicados a obras suas.

Para quem teve a sorte de "achar" as apresentações do Musicatreize ficou a evidente a necessidade de um retorno do grupo em terra brasileiras, só que desta vez com toda divulgação, pompa e circunstância à altura desta pérola musical marselhesa.

02 dezembro 2005

Teve até música!

Em festa patrocinada por gigante financeiro, orquestra de jovens se apresentou com o pianista prodígio chinês Lang Lang.

O ambiente estava mais para uma festança do que para um concerto propriamente dito: o tapete estendido na entrada da Sala São Paulo e as top models que orientavam o público eram apenas as arestas de uma maciça ação de markenting da UBS (união de bancos suíços), que tem a Orquestra do Festival de Verbier (VFO) como a peça central deste tabuleiro publicitário.

Integrada por jovens instrumentistas de diversos países – em sua grande maioria, europeus e norte-americanos – a VFO consegue despertar bastante interesse por suas qualidades musicais, apesar de nem sempre seus “clientes” estarem muito interessados para o que se passa no palco.

Em sua turnê pela América Latina, regida pelo maestro tcheco Jirí Belohlávek, o grupo trouxe consigo uma das maiores sensações do universo fonográfico clássico da atualidade, o pianista chinês Lang Lang.
Menino prodígio, atualmente em seus 23 anos, Lang Lang tem em sua carreira vários prêmios de concursos internacionais obtidos quando ele ainda era adolescente. Lang Lang já tocou e gravou acompanhado por importantes orquestras e regentes (atualmente é um dos protegé do talentosíssimo Daniel Barenboim) e sua mais recente conquista é um contrato de exclusividade com o prestigiado selo Deutsche Grammophon.

Por tudo isto a apresentação de Lang Lang – que no concerto com a VFO interpretou o famigerado “Concerto No. 1, Opus 23” do compositor russo Piotr Tchaikovsky – estava precedida de uma natural ansiedade por parte do público. Tanta ansiedade pôde até induzir a apreciação do público geral, mas para os ouvidos atentos ficou evidente que Lang Lang, apesar de seu indiscutível talento, ainda está por superar o estágio de “jovem promessa”, cheio de força e rapidez nas pontas dos dedos, para de fato tornar-se um pianista com idéias musicais interessantes.

Sua interpretação do Concerto de Tchaikovsky baseou-se, via de regra, na execução de alguns rubatos (isto é, aceleração e desaceleração do tempo musical, em geral não indicados na partitura) e numa personalíssima extrapolação das indicações de dinâmicas e acentos que ainda está por se explicar. Além disto, Lang Lang extraiu do Steinway sonoridades de uma percussividade anacrônica, mais próxima de um repertório Moderno do que do Romantismo, tal como é o caso da obra de Tchaikovsky.

Pode ter sido problemas com piano? Pouco provável, pois em um de seus três bis (no caso, o “Noturno Op. 27, No. 2” de Chopin) Lang Lang conseguiu obter sonoridades suaves e delicadas. Sobre sua interpretação, vale notar as enormes diferenças desta mesma obra por ele gravado no álbum sob a regência de Barenboim. Enfim, são segredos de estúdios e mistérios da vida que só o passar tempo mostrará qual será o Lang Lang que Lang Lang escolherá para si.

Na segunda parte do concerto a VFO pôde, enfim, mostrar as suas principais qualidades. A garra e o talento dos jovens músicos foram decisivos para que a execução da “Sinfonia No. 7, Opus 70” de Antonín Dvorák fosse, enfim, o ponto alto da noite. Com os naipes dos violinos distribuídos à esquerda e à direita do maestro (em geral, eles ficam à esquerda) o grupo soube explorar melhor a espacialidade inerente à partitura do compositor tcheco.

Com boa afinação, um naipe de cordas conciso e sopros bem balanceados ao conjunto, as eventuais imprecisões de ataque e conclusão de fraseados nem de longe foram um fato comprometedor ante a tamanha energia contida em cada músico. Aí, enfim, a música em sua faceta mais simples, e por isto genuína, pode ser feita em um ambiente um tanto alheio ao que se passava no palco.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

01 dezembro 2005

Condor manauara em terras paulistanas

Ópera de Carlos Gomes tem bela apresentação no Theatro Municipal de São Paulo.

Uma ópera de um compositor brasileiro, cantada em italiano cuja história é ambientada no Usbequistão do século XVII. Esta é visão geral do espetáculo que estreou sexta-feira passada no Theatro Municipal de São Paulo: a ópera “Condor”, do compositor campineiro Antônio Carlos Gomes.

Com a Orquestra Sinfônica Municipal (OMS) sob a regência do maestro Luiz Fernando Malheiro, esta temporada paulistana do “Condor” é, na verdade, a oportunidade do público paulista assistir a um espetáculo que foi apresentado em 2002 no Teatro Amazonas (Manaus), no qual Malheiro é diretor artístico de seu festival de ópera.

Com um cenário minimalista que destoou do figurino utilizado para caracterização do Usbequistão maometano (o condor do título não se refere ao pássaro andino, mas sim a um guerreiro) a produção é uma excelente oportunidade de se conhecer uma das mais interessantes partituras de Gomes, na qual é presente a influência de diversas escritas operísticas então em voga no final do século XIX.

Com o tenor Marcello Vannucci (Condor) e a soprano Eiko Senda (Odalea) nos papéis protagonistas, a montagem sob a direção cênica de Caetano Vilela é fluente e visualmente cativante, apesar do uso um tanto infeliz de projeções numa tela semitransparente colocada na boca de cena. Em vários momentos é premente a necessidade de um melhor trabalho de dramaturgia.

Apesar de alguns pesares com o elenco vocal e com a própria OMS, nada diminui o interesse deste espetáculo que leva ao palco esta singular obra do mais importante compositor operístico brasileiro.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

30 novembro 2005

Mozart com Kung Fu

Tinha tudo pra ser um bom filme, mas não é. O que não quer dizer que não mereça ser visto (ainda que daqui alguns anos na tevê aberta...).

Estreado recentemente no Brasil, o filme "Cão de Briga" (Danny the Dog) tem uma história simples, porém instigante: um descendente asiático (Danny) é criado como um cão matador - com incríveis habilidades em artes marciais orientais - que após fugir de seu "dono" tenta recuperar seu passado ao mesmo tempo que tenta se tornar gente, tal como na célebre história de Kaspar Hauser (filmada em 1974 por Werner Herzog), ocorrido no século XIX na Alemanha.

Nesta procura por sua identidade, Danny (vivido pelo lutador/ator Jet Li) conhece Sam (Morgan Freeman), um afinador de pianos cego que adota Danny e o leva para morar consigo e com sua filha adotiva, Victoria (Kerry Condon)

Victoria é uma jovem estudante de piano, e é por meio de tênues lembranças excitadas por este instrumento que Danny aos poucos vai colhendo as pistas sobre suas origens.

A grande revelação surge quando Victoria toca a bela "Sonata No. 11, em Lá Maior" de Mozart, que funciona como um gatilho para a fúria de carniceira de Danny contra seu algoz, o agiota Bart (vivido Bob Hoskins).

Como disse, tinha tudo pra ser um bom filme, mas...

Mas o problema é que não se quiz fazer um "bom filme", mas sim um "kung foo movie". Aí fodeu... Mesmo a sina carniceira de Danny limita-se a um balé acrobático, uma das heranças de "Matrix" que ainda se fazem sensíveis em Hollywood.

O filme é péssimamente dirigido por Louis Leterrier, o que não ajuda no roteiro "de ação" de Luc Besson. Apesar de toda a importância que a música clássica tem na história, toda a trilha fica a cargo da banda Massive Atack.

E como todo caipira que convida uma banda pra tocar em sua festa, fez-se questão que ela toque o tempo todo, enquanto que a música incidental poderia ter se limitado às cenas de luta. Em filmes de ação parece ser uma regra impedir o silêncio a qualquer custo.

Enfim, apesar de algumas temáticas interessantes, é um filme que se afunda no próprio estereótipo de mercado ao qual ele quer se associar. Azar o nosso...

24 novembro 2005

Fruto proibido

Novo CD de Cecilia Bartoli é dedicado ao repertório composto numa época em que a ópera foi banida de Roma.

Em Roma, o ano 1700 foi um ano de jubileu, isto é, inteiramente dedicado à comemoração religiosa (no caso, os 1700 anos do nascimento de Jesus Cristo). Desta forma, ficava proibida a apresentação de qualquer espetáculo público não religioso, tal como até recentemente ocorria no Brasil em qualquer "período santo" (quem nunca ouviu falar, ou mesmo viveu, nas antigas Semanas Santas em que todas rádios passavam a tocar música sacra e estabelecimentos como cinemas e teatros simplesmente deixavam de funcionar?).

Seguindo-se ao jubileu de 1700, uma série de condições políticas e religiosas foi prorrogando esta situação até 1710, quando após uma década ocorreram as primeiras tentativas de se retomar a produção de espetáculos não sacros públicos.

Neste período a ópera foi oficialmente considerada um gênero proibido. Entretanto, isto não quer dizer que ela não tenha sido feita: tal como recentemente observamos na história do Brasil, mesmo sob censura, músicos e artistas sempre acabam dando um jeito de fazer as coisas funcionarem, não raro com a colaboração (ainda que inconsciente) de seus algozes.

Na Roma do século XVIII compositores como Antonio Caldara (1670-1736), Alessando Scarlatti (1660-1725) e mesmo o alemão George Friederic Haendel (1685-1759) utilizaram diversos artifícios para que a escritura operística continuasse ocorrendo. Não era incomum a apresentação de óperas em audições privadas nos palácios dos mesmos cardeais que a proibiram publicamente.

Entretanto, a principal forma de driblar a censura eclesiástica era transpor as temáticas profanas da ópera para oratórios ou cantatas, que são espetáculos musicalmente idênticos à ópera, só que dedicados a alguma temática religiosa ou moral e sem a mesma sofisticação cênica.

É a este repertório que está dedicado o mais recente CD da mezzo-soprano italiana Cecilia Bartoli "Opera Proibita" (Decca, R$ 40,00 em média) que conta ainda com a participação do excepcional grupo de instrumentos barrocos Les Musiciens du Louvre, sob a direção de Marc Minkowski.

O álbum, sob a coordenação do musicólogo Claudio Osele, destaca trechos de alguns dos oratórios compostos por Caldara, Scarlatti e Haendel durante esta década de censura. Mais precisamente, foram selecionadas algumas das mais belas de árias que, numa época em que também era proibida a apresentação pública de mulheres, foram originalmente escritas para castrati (isto é, cantores com timbre de voz feminino em decorrência da castração feita ainda quando crianças).

Apesar de todo o interesse às referências históricas inerentes ao projeto, o álbum vale mesmo por mais uma demonstração de virtuosismo e musicalidade de Bartoli, a cargo de um repertório que parece ter sido composto especialmente para ela. Ao mesmo tempo em que a meio-soprano executa com espantosa afinação e precisão rítmica vertiginosas passagens em coloratura (seqüência de notas rápidas na região aguda da voz), como em "Un pensiero nemico di pace" de Haendel, ela garante toda a serenidade necessária às árias menos explosivas, como "Caldo sangue" de Scarlatti.

Porém, boa parte da execelência deste novo trabalho Bartoli está também nas mãos de Minkowski, que com a sonoridade autêntica e penetrante dos Musiciens du Louvre garante a sonoridade de acompanhamento indispensável para o melhor desfrute deste tipo de repertório que ainda é encontrado nas lojas em pobres versões para piano e voz.

Um dos grandes momentos do álbum é a ária "Lascia la spina" do oratório "Il Trionfo del Tempo e del Disinganno" de Handel: trata-se da versão sacra da famosa ária "Lascia ch'io pianga" da ópera "Rinaldo", também de Haendel. Na ópera, o amor terreno. No oratório, as reflexões não menos sugestivas de uma personagem chamada Piacere ("Prazer"). Vale a pena contrastar a com uma gravação que Bartoli fez anteriormente versão profana desta ária.

A adaptação de uma música profana para um texto sacro evidencia até que ponto o oratório e a ópera consistiam, na prática, num mesmo gênero cujas diferenças freqüentemente limitava-sem a questão cênica, já que em termos de temática coisas como o amor terreno, e mesmo o erotismo, sempre não raro apareciam em oratórios, ainda que travestido nos trajes do moralismo eclesiástico. É este prazer que só o fruto proibido pode proporcionar que encontramos pela sedutora voz de Bartoli.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

19 novembro 2005

Georges Fauré

Ou "o que esperar de uma pessoa que é anunciada como um compositor?"

Não, não escrevi errado. É Georges Fauré e não Gabriel Fauré. Na verdade, tudo indica que há um parentesco, mas a verdade é que falta provas que confirmem isto por um motivo muito simples: o compositor Georges Fauré não existe.

Na verdade, ele é o personagem vivido pelo ator Gérard Depardieu no filme Green Card (que no Brasil, pra variar, ganhou o meloso subtítulo de "Passaporte para o Amor"), que re-assisti hoje na TV depois de muitos anos.

Junto com a horticulturalista Brontë Mitchell (vivida por Andie MacDowell), ambos entrelaçam suas vidas num casamento por conveniência: ele para conseguir o green card e ela para conseguir habitar um lindo apê com uma estufa num edifício que não permite solteiros.

O tiro sai pelo gatilhos e os ambos se vêem forçados a simular uma vida a dois para os agentes federais, enquanto que no plano particular Brontë faz questão de reforçar seu status de solteirona independente.

Georges é um estereótipo do homem francês e um músico que abandonou sua profissão.

Em dada altura do filme ocorre a cena que justifica a existência deste post: numa festa num apê da high society, as supostas habilidades musicais de Georges ao piano são requisitadas pela anfitriã, que ainda pondera que "It isn't often we have a Fauré in the house."

Georges-Gérard se senta ao piano e fica lá, imóvel. A expectativa é grande: do lado do expectador, em nenhum momento ficou provado que Georges toca piano ou mesmo que seja músico. Dentro da cena, fica a espera de que se rompa um silêncio constrangedor. E de repente...

Clusters em fortississimo, glissandos caóticos, acordes brutais pelos braços de um pianista que parecer estar em possessão demoníca. Um sobresalto ocorre a todos. O vaso que está em cima do Steinway treme. Um sujeito bonachão que dorme numa bergé acorda assustado. Apenas uma jovem e um velhinho se encontram hipnoticamente fascinados pela cena insólita que estão presenciando. E com uma pontiaguda nota, Georges encerra sua furiosa música.

O velhinho começa aplaudir efusivamente, mas pára diante do silêncio repressor de todos os presentes. À velha anfitriã que o fita, Georges diz timidamente "It's not Mozart...". Com um olhar condescendente, responde apenas "I know".

O interessante desta cena é a pergunta, que no olhar da anfitriã se torna a própria resposta: hoje em dia, o que esperar de uma pessoa que é anunciada como um compositor clássico?

Para um ouvido mais incaulto, Georges se passaria por charlatão, se não fosse o fato dele em seguida atacar com uma música "de verdade", com acordes maiores, menores, progressões e cadências.

A verdade é que, exceto apenas por seus familiares e por seus pares, nunca se sabe o que pode sair das mãos ou da mente de um "compositor". Esta figura tão estranha, quando anunciada fora de seu contexto profissional, torna-se uma verdadeira incógnita.

Se anunciar compositor fora de seu habitat é como você se anunciar um ufólogo: todo mundo levemente já ouviu falar disto, mas ninguém realmente sabe o que isto pode implicar. Seja para seus ouvidos, seja para o vaso que está em cima do Steinway.

15 novembro 2005

Rio de Janeiro e a XVI Bienal de Música Brasileira Contemporânea

Impressões de um visitante tardio

Encerrou-se no último domingo, 13 de novembro, mais uma edição da Bienal de Música Brasileira Contemporânea, no Rio de Janeiro. Patrocinada e organizada pela Funarte, há 30 anos o evento é, ao lado do Festival Música Nova, um dos mais importantes gênero. Mas diferentemente do evento paulista, a Bienal é inteiramente dedicada à música moderna brasileira.

Na posição de compositor, viajei a convite da organização para ter o prazer de ouvir minha peça Itinerário, para clarinete solo, tocada pelo grande Paulo Sérgio Santos no encerramento do evento. Ouvir peças antigas é sempre estranho, ainda mais para um compositor como eu, que tende a tratar sua prole como verdadeiros bastardos. Mas foi uma experiência mais do que gratificante reencontrar este velho filho por meio da musicalidade de Paulo Sérgio . Danke schön, herr Santos!

Há muitas coisas a se falar da Bienal e o que colocarei em seguida são, como bem aponta o subtítulo deste post, apenas algumas "impressões de um visitante tardio", que chegou ao Rio numa ensolarada tarde primaveril e que voltou como sempre volta desta cidade maravilhosa, isto é, ansioso pela próxima vez. Mas vamos às impressões.

- A pluralidade estilística continua sendo a mais evidente característica de nossa música contemporânea, e a bienal, um lugar onde todos os "ismos" (nacionalismos, serialismos, etc.) se encontram de forma bastante amistosa.

- O público foi eclético, alegre e descontraído. Os assobios em homenagem à bela mestre-de-cerimônias já virou uma tradição. Sala Cecília Meireles com a platéia bem cheia e mesmo algumas pessoas na platéia superior. Quem ainda diz que música contemporânea não atrai público, mesmo num evento pago e num dia que "deu praia"?

- Dentro do que me foi perceptível, a organização do evento foi bastante competente, selecionando obras de compositores das mais variadas faixas etárias, dos mais diferentes estilos e das mais diferentes regiões do país (incluíndo aqueles radicados no exterior, que não são poucos).

- No libreto deste ano a Bienal compilou o nome de todos os compositores que passaram por ela e em quantas vezes eles participaram do evento. No total, foram 306 compositores. Os campeões de aparições são Murilo Santos, Mário Ficarelli e Ricardo Tacuchian participaram, nada mais nada menos, de TODAS as dezesseis bienais.

- Nem todos os nomes listados continuam a compor, e alguns podemos nos perguntar como foram parar lá, tendo em vista que a proposta do evento é apresentar obras de compositores vivos (ao menos de uns tempos pra cá). Eis algumas aparições curiosas ao longo da história do evento: os compositores "românticos" Alberto Nepomuceno e Frutuoso Viana, o violonista Sérgio Assad, o musicólogo Olivier Toni e os regentes Daniel Havens (ex Banda Sinfônica do Estado de São Paulo), Aylton Escobar (que sim teve uma importante carreira de compositor) e, vejam só, Jamil Maluf, da OER e do Theatro Municipal de São Paulo.

- Impressão pessoal porém compartilhada por outras "testemunhas auriculares" presentes nos outros concertos: as peças foram bem executadas e muitos compositores saíram satisfeitíssimos com as interpretações.

- Mas a vida não é uma mar de rosas, e eis algumas sugestões de quem está reclamando de barriga cheia: > criar eventos paralelos aos concertos (mesas-redondas, workshops, etc.) > fomentar a interação direta entre público-músicos-compositores, aproveitando a infra-estrutura inerente ao evento > edição e difusão do material desta e das demais bienais em CD ou em arquivos públicos via internet.

De resto, fica a expectativa para a próxima Bienal e de outros eventos do gênero.

Post scriptum: hoje, quarta-feira, a OSB, sob a regência de Roberto Minczuk, vai tocar as "Quatro últimas canções" de Strauss, com a voz de Rosana Lamosa. Faltou tempo e dinheiro pra alongar minha estada, mas se eu estivesse lá, não ia perder não.

03 novembro 2005

Broadway no Municipal

Montagem de "Candide", de Bernstein, estréia em São Paulo

A história se passa em meados do século XVIII, mas é com uma ambientação pop e diversas referências à política e aos políticos atuais (que não parecem ter mudado muito desde então) que a história do anti-herói Cândido surge nos palcos paulistanos.

Trata-se do espetáculo musical “Candide”, do compositor e regente norte-americano Leonard Bernstein (1918-1990), que depois de uma temporada carioca no ano 2000, estreou em “versão concerto encenada” na sexta-feira passada – dia 28 de outubro – no Theatro Municipal de São Paulo, sob a direção cênica de Jorge Takla, com a Orquestra Sinfônica Municipal e o Coral Lírico sob a regência de José Maria Florêncio.

Espetáculo musical é, talvez, o termo menos perigoso para definir esta obra de Bernstein, que em 1956 estreou como um musical da Broadway, mas que desde então passou por diversas modificações para as mais diferentes ocasiões, tal como viria acontecer com sua obra mais famosa, o musical “West Side Story” (no Brasil, curiosamente traduzido como “Amor sublime amor”).

Baseado na novela setecentista “Candide ou L’Optimisme” (“Cândido, ou o Otimismo”) de Voltaire, a versão de Bernstein – em colaboração com a roteirista de cinema Lillian Hellman – surgiu como um meio de ironizar subliminarmente toda a perseguição política empenhada pelo senador Joseph McCarthy nos EUA da década de 1950.

Passado quase duzentos anos desde a primeira publicação da novela de Voltaire e mais de cinqüenta desde sua estréia na Broadway, o “Candide” de Takla preserva sua atualidade temática e renova seu frescor com a interessante que tradução de Claudio Botelho neste espetáculo que, coisa rara na cena lírica, conta com os cantores cantando em bom português.

Cantar musicais não é tarefa fácil para ninguém (mesmo para experientes cantores líricos), mas cantar em português é uma tarefa dificílima que foi superada com relativa desenvoltura pelo estrelar elenco desta produção, que teve como protagonista o tenor Fernando Portari (Candide), que realizou de forma muito feliz a caracterização do cândido herói voltairiano que, no fim das contas, tem muito da melancolia encontrada em diversas personagens do repertório lírico, tal como constatar no belamente interpretado “Candide’s lament”, ainda no 1º. ato.

Apesar do título da obra evidenciar um protagonista, em “Candide” isto não quer dizer uma predominância deste no palco, o que torna responsabilidade sobre os papéis ditos “secundários”.

O barítono Sandro Christopher destaca-se pelo seu cômico Dr. Pangloss, e junto com a soprano Rosana Lamosa (Cunegunda), Sebastião Teixeira (Maximilian), Dênia Campos (Paquete) e com o tenor Paulo Queiroz e o baixo Carlos Eduardo Marcos constituíram um elenco que conduziu de forma bem-humorada a trupe que circunda o confuso Candide ao longo de sua trajetória de provações.

Um dos grandes momentos da noite foi a incendiária atuação da mezzo-soprano Regina Elena Mesquita (Velha Senhora) e do hilariante quarteto de “señores” (Diógenes Gomes, Sandro Bodilon, Miguel Geraldi e Sérgio Weintraub) no número “I am easily assimilated” (“Camaleoa”), evidenciando toda a energia inerente à partitura de Bernstein.

O musical norte-americano é um descendente direto da ópera européia, mas uma das grandes diferenças entre ambas é que, no musical, o cantar é menos “empostado” que na ópera, o que acarreta na necessidade de amplificação eletrônica da parte vocal, o que nem sempre é bem visto tanto pelos cantores como pela audiência lírica. Em “Candide” a amplificação vocal foi sutil e cumpriu sua função de, discretamente, auxiliar os cantores.

Entretanto, ela falhou no que concerne à amplificação da orquestra: a distribuição dos diferentes instrumentos do conjunto em apenas três grupos de alto-falantes dispostos de forma chapada nas laterais e ao alto do palco atribuiu artificialidade ao timbre e à espacialização da orquestra, principalmente em momentos de maior sutileza tímbrica. Faltou aí o conceito de “surround”, tal como feito nos musicais da atualidade.

Apesar deste problema, nada compromete o “Candide” paulistano, um espetáculo que, além de divertido, que conta com a música de um dos grandes músicos do século XX, ao contrário da grande maioria dos musicais da Broadway e do Teatro Abril.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

02 novembro 2005

O compositor e sua prole

Considerações sobre a Peça para Piano II

Ontem me encontrei com a pianista Tânia Lanfer para resolvermos uns problemas burocráticos e ensaiarmos (i.e., ela toca, eu escuto) a peça que ela me encomendou para seu TCC na USP, junto com outras obras de outros jovens compositores: além deste que vos escreve, tem também Bruno Ruivaro, Gláucio Zangheri e Maurício de Bonis.

Aproveitamos que na sala onde iríamos fazer o ensaio haviam quatro especiais alunos meus de história da música moderna e fizemos um pequeno recital, que no fim das contas, acabou servindo como complementação da aula de "música textural" (termo esquisito, mas outra hora me explico melhor) dada no dia anterior. Uma partitura recheada de clusters e indeterminação rítmica talvez seja uma boa forma de visualizar até que ponto mudar seu referêncial musical da nota musical para a escuta tímbrica resulta numa música talvez incomum (se comparado ao feito mais comumente).

É sempre desafiador, interessante e edificante botar uma peça à prova, com músicos escutando-a numa situação na qual há total liberdade de expressão. Uma breve explicação de minhas (más) intenções para com a Peça para Piano II e vamos lá: dona Tânia vestindo suas luvas e em seguida golpeando sem parcimônias o teclado do piano com clusters de palma-de-mão, de antebraço, de punho.

Rolou até os merecidos aplausos, mesmo numa ocasião tão caseira e informal. Não tinha como não ser aplaudida.

E, para O Criador, ouvir o que os outros têm a dizer sobre a peça é sempre, sempre muito interessante. Não sei se gostaram ou não, mas conforme vamos vivendo o mundo da música fica mesmo cada vez mais difícil o discernimento do que verdadeiramente gostamos ou deixamos de gostar. Assim sendo, o sentimento de saber se uma pessoa gostou ou não fica também relativizado. São benéfices (ou maldição?) adquiridas conforme vamos adquirindo repertório.

Esta foi a segunda "apresentação" da peça, a primeira no maravilhoso Steinway da dona Ilma, num especialíssimo sarau em seu apartamento em que rolou até a Sequenza para violoncelo de Berio (!). Mas a prova final ainda está por vir: 11 de dezembro, no número 1313 da Av. Paulista. Até lá, outras águas rolarão em ares guanabarenses...

28 outubro 2005

Baixando clássicos pela internet

"Baixar" clássicos na internet é baixaria?

Numa era em que circuitos - e alguns curto-circuitos - nos cercam cada vez mais, em que a troca de dados via internet virou uma coisa corriqueira e em que grandes gravadoras estão botando habilidosos advogados no encalço do pessoal que anda se esbaldando ao "baixar" música de graça na internet como então, nós - apopléticos, apoteóticos e apocalípticos apreciadores de música clássica -, podemos ou devemos lidar com isto?

Para os passageiros que estão embarcando agora na nau cibernética, esclareço: sim, é possível fazer um considerável acervo clássico baixando arquivos pela internet. E aí surgem duas perguntas: 1) O que eu devo fazer para baixar música? 2) Eu devo fazer isto?

Adão e a maçã...

Para baixar música pela internet é necessário que você instale um software que serve como uma espécie de intermediário (interface) entre o fornecedor da música e o receptador dela, no caso, você! (Qualquer semelhança dos substantivos aqui empregados com aqueles utilizados no jargão policial é mera coincidência. Ou não.)

Existem dois principais softwares de troca atualmente: o Kazaa e o eMule. Ambos são gratuitos e você pode adquirí-los clicando no link. Como minha experiência limita-se ao eMule - por ser mais fácil de manusear e por não deixar meu PC lento - todos os comentários se remeterão a este software.

Depois que você instalou o software, o eMule possui um menu chamado "busca". Nele você escreve o nome de algum compositor, intérprete, orquestra, o que for, e após ordenar a busca em poucos segundos uma lista imensa de arquivos aparecerá. São arquivos em formatos de audio (a partir do qual você pode gravar um CD), de vídeo (a partir do qual você pode gravar um DVD), de texto (desde librettos de ópera a ensaios acadêmicos) e de imagem (partituras, fotos, etc.).

Tudo como se você estivesse numa prateleira de supermercado. Você olha, escolhe e coloca em seu carrinho, com a vantagem que você não pagará nada por ele: basta dar o comando para "baixar" o arquivo e esperar para que ele esteja disponível em seu PC (alguns são transferidos em poucos minutos, outros levam dias, tudo depende do tamanho, da procura e de outros fatores).

"Como isto é possível?" ó caro leitor deve você se perguntar. Isto é possível porque alguém em algum lugar deste planeta, cometeu o pecado original, no caso, se deu o trabalho de comprar um CD original, passou seu conteúdo para o computador e, ao fazer isto, o colocou no caótico acervo da rede internacional de computadores.

No eMule, toda vez que você baixa um arquivo ele automaticamente fica à dispósição dos outros usuários. Tendo em vista a quantidade de gente conectada a estes softwares (na casa dos milhões) faça as contas da quantidade de coisas que você pode encontrar.

Quantidade não é qualidade, certo? Às vezes. Veja só o é possível garimpar no cyberespaço:
- Os mais recentes lançamentos mundiais, alguns que sabemos que jamais serão lançados no Brasil, isto é, que terão um não convidativo preço um produto importado.
- Gravações antológicas, tais como todos os quartetos de Beethoven com o Quarteto Alban Berg, todos os lieder de Schubert com Dietrich Fischer-Dieskau e muito mais.
- Sabe aqueles caríssimos CDs importados de música antiga? Então, estão todos lá.
- Todas as partituras de J.S. Bach, bem como todas as sinfonias de Mozart, Beethoven, Brahms e etc.
- DVDs completo de óperas.
- Etc., etc., etc...

Bem, feita a minha parte de serpente, mostrando as delícias de um fruto proibido (aforisma do grande Millôr Fernandes: "Há mais delícias no espírito de porco do que espírito nos jardins das delícias"), vamos ao outro lado da história:

Tiro-no-pé ou subverção mercadológica?

Quando se fala da caça-às-bruxas contra àqueles que baixam música sem pagar nada está subentendido no debate a questão do direito autoral. Mas, exceto por compositores de do século XX em diante, para quem, então, pagar os direitos da Pastoral de Beethoven? Das cantatas de Bach? Dos madrigais de Monteverdi?

Em relação ao clássicos a questão não está circunscrita à autoria da música, mas sim nos direitos da interpretação das obras gravadas, das quais as gravadoras e os selos musicais são donos: devemos pagar pelo trabalho de René Jacobs, de Nicolaus Hannoncourt, da Cecilia Bartoli, de Jordi Savall, de Maurizio Pollini, de Nelson Freire.

As gravadoras, não raro, pagam vultuosas quantias a esses nomes na certeza de que mesmo fazendo um repertório já conhecido estes artistas são atraentes o suficiente para fazer com que um sujeito que já tenha três ou mais gravações da La Traviata compre mais uma com uma soprano russa que é moda no momento (neste exemplo me refiro ao novo lançamento da Deutschegrammophon com Anna Netrebko).

Toda vez que se baixa uma música sem pagarmos o direito de interpretação tiramos um pequeno tijolo do edifício que sustenta o cotidiano musical.

E aí termino este longa postagem com algumas perguntas, por assim dizer, retóricas:
- Vale a pena usurparmos o direito de um artista?
- Vale a pena pagar 1/4 de nosso atual salário mínimo em um CD?
- Estou mesmo prejudicando alguém?
- Por estar apenas "baixando" tenho eu alguma culpa nesse cartório?
- É justo enfraquecer a indústria fonográfica clássica e, com isto, botar em risco toda uma tradição?

Decifra-te se puderes!

09 setembro 2005

Beethoven à brasileira

Osesp aborda obras do compositor alemão em CD e em concerto.

Passado 178 anos desde sua morte, mesmo nos dias de hoje, é ainda difícil avaliar a real amplitude da obra de Ludwig van Beethoven (1770-1827). Nascido na cidade alemã de Bonn, Beethoven aprendeu composição com grandes nomes do período clássico, tais como Joseph Haydn (1732-1809) e Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). Nos manuais de história da música, Beethoven é considerado um compositor de transição entre os períodos Clássico e Romântico (aproximadamente, concernentes aos séculos XVIII e XIX, respectivamente). Porém, a importância de sua obra jamais se limitou a uma mera “ponte” entre duas formas de compor.

Praticamente desde sua morte, a música de Beethoven passou a ser importante referência para compositores das mais diferentes épocas e estilos. Franz Schubert tinha Beethoven quase como um deus. Richard Wagner credita às suas sinfonias toda sua base musical e moderno Arnold Schoenberg elabora uma consistente lista dos aprendizados que tirou dos estudos de suas peças. Mesmo na babel musical da era contemporânea, não é muito difícil detectar ecos do grande mestre alemão.

Beethoven é um dos raros exemplos da história da música (se não o único) em que praticamente toda sua produção é canônica, isto é, parte integrante e inexorável do seleto rol de obras primas sobre o qual está construída a noção de tradição, noção que há séculos têm levado o homem às salas de concerto e teatros ao redor do mundo.

A importância conferida às obras de Beethoven as tornam obrigatórias no repertório de qualquer músico ou conjunto. Nenhum pianista conquista credibilidade sem ter encarado ao menos uma boa parte de suas 32 sonatas (e não são raros aqueles que se dedicam a enfrentar todas). Nenhum quarteto de cordas pode-se considerar maduro sem ter vivenciado a verdadeira teia estilística das obras que escreveu para esta formação. Nenhuma boa orquestra pode se considerar como tal sem ter percorrido todo o ciclo das nove sinfonias.

Os três CDs que a gravadora carioca Biscoito Fino têm distribuído desde o final do mês passado são uma documentação de uma parte do trabalho da consolidação da excelência artística que a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) vêm batalhando desde o início de sua reestruturação em 1997, levada a cabo pelo maestro John Neschling e, até bem recentemente, contando com importante apoio do maestro Roberto Minczuk, atual diretor do Festival de Inverno de Campos do Jordão e da OSB (Orquestra Sinfônica Brasileira, sediada no Rio de Janeiro).

De uma forma geral, os CDs lançados até agora abordam uma faceta pouco conhecida – mas nem por isto desinteressante – da obra sinfônica de Beethoven ao selecionar para dois CDs quatro de suas sinfonias menos populares (isto é, as Nos. 1, 2, 4 e 8) e duas aberturas orquestrais (“Egmont” e “Coriolano”), todas estas regidas por John Neschling entre os anos de 2000 e 2004. A exceção fica por conta do CD dedicado à aclamada “Nona Sinfonia”, gravado em 2004 sob a regência de Roberto Minczuk. Todas as faixas do CDs são combinações de diferentes apresentações realizadas ao vivo na sede da orquestra, a Sala São Paulo.

Mas, afinal, qual a importância do projeto de CDs de Beethoven com a Osesp? No plano internacional, nenhuma, pois o que não falta no mercado são gravações de suas sinfonias, e apenas muito poucas propõem diferenciais que possam se destacar das demais. As gravações da Osesp não apresentam algo realmente instigante, apesar de algumas diferenças perceptíveis para os beethovianos mais argutos, tais como algumas notas e mesmo trechos diferentes na “Nona” (em virtude da mais recente edição elaborada sobre esta sinfonia) e a maior proximidade com as velocidades metronômicas originalmente indicadas por Beethoven em suas partituras, em geral mais rápidas do que as famosas gravações de Hebert von Karajan (esta característica está mais perceptível nas gravações conduzidas por Neschling).

Esta falta de apelo internacional demonstra-se consciente à própria Osesp na medida em que os CDs de Beethoven serão lançados apenas nacionalmente, ao contrário de outros seis, totalmente dedicados a compositores brasileiros – isto é, Villa-Lobos, Francisco Braga, Francisco Mignone e Camargo Guarnieri – que foram produzidos e lançados nacionalmente e internacionalmente pelo selo sueco Bis, estes sim contribuições singulares à música brasileira e clássica como um todo.

Porém, se você estiver montando uma discoteca básica (na qual as sinfonias de Beethoven não podem faltar) os CDs da Osesp são uma alternativa boa e barata. Um primeiro, porém certeiro passo para o universo sinfônico beethoviano que pode inclusive ser conferido ao vivo nos dois próximos fins-de-semana, quando a orquestra, sob a regência de Neschling, interpretará as sinfonias Nos. 5, 6, e 7 e a abertura “A Consagração da Casa”. Estes concertos que serão gravados e fazem parte do projeto que tem por objetivo o ciclo integral das sinfonias de Beethoven, também a ser lançado pela Biscoito Fino. Um programa imperdível, na medida em que ouvir Beethoven nunca é demais.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

A vida entre a mediocridade e o onírico

O Japão além dos sushis de Haruki Murakami.

Não há gueixas, nem luta de samurais com espadas afiadas ou cerimônias religiosas em templos milenares. Ao invés disso, há prostitutas de alto padrão, empregos tediosos e uma estranha culinária à la “tofu com pizza”, sempre regada a muita cerveja e whisky.

Atualmente com seus 56 anos, o escritor japonês Haruki Murakami vem desde a década de 1980 ambientando seus romances no Japão da atualidade, um país industrializado imerso num esquema social “altamente capitalista”, como ele mesmo faz questão de ressaltar. Seus personagens são seres que vivem sob a brutal opressão deste sistema, materializada em forma de uma terrível solidão, potencializada pelo estilo de vida caótico e impessoal dos grandes centros urbanos, como Kobe e Tóquio. A ambientação está mais próxima do filme “Encontros e desencontros” (dirigido por Sofia Coppola) do que do Japão “cidade cenográfica” dos filmes de artes marciais.

Como, no entanto, é possível continuar a vida numa sociedade tão hostil e ainda assim tentar ser feliz? Dançando! “Enquanto a música estiver tocando, você deve continuar a dançar”, é o mote de um dos mais recentes lançamentos do escritor no Brasil, a epopéia particular de um narrador sem identidade em “Dance dance dance” (Estação Liberdade, 503 págs., R$ 58, Tradução do japaonês Lica Hashimoto e Neide Hissae Nagae), lançado originalmente em 1988.

A história tem como ponto de partida o estado de coisas que encerra uma outra obra de Murakami, “Caçando Carneiros” (Estação Liberdade, 335 págs., R$ 39), último livro da chamada “Trilogia do Rato”, dos quais os demais títulos – “Ouça o cantar do vento” e “Pinball 1973” – ainda permanecem sem tradução para o português.

Em “Dance dance dance” a história volta a se desenvolver do ponto de vista de um narrador anônimo – um desanimado escritor free-lancer que qualifica seu próprio trabalho como o de um “limpador de neve cultural”, isto é, o que faz aquilo o que ninguém quer fazer. Porém, com um agravante: o protagonista tem plena consciência que, ao contrário de um limpador de neve verdade, ninguém o notará caso ele deixe de fazer seu serviço.

A partir dos constantes chamados que a prostituta Kiki realiza em seus sonhos, nosso anti-herói nipônico volta a um dos palcos de “Caçando Carneiros”, isto é, a cidade de Sapporo e seu decadente e misterioso Hotel Golfinho, que doravante se encontra totalmente modificado, engolido pelos confortos que o capitalismo e a corrupção modernas podem proporcionar.

Neste “novo” hotel, novos personagens entram na vida do escritor: uma bela e um tanto neurótica recepcionista e uma adolescente para-normal às voltas com uma mãe famosa e extremamente relapsa, que a esquece no hotel. Há também o re-encontro com um velho conhecido, o bizarro “homem-carneiro”, que se encontra confinado num quarto escuro e mofado escondido numa dimensão onírica do hotel. É dele o conselho de não parar de dançar – a dança como metáfora da própria vida é algo existente em diversas tradições orientais – pois é somente por meio dela que, talvez, seja possível alcançar a felicidade. Talvez.

Enquanto tenta “dançar” (pois sempre paira a dúvida se está dançando direito), o protagonista vaga nas ruas congestionadas de Tóquio e Honolulu, no Havaí, ao som de bandas como Beach Boys e Rolling Stones. Re-encontra um antigo colega de classe (hoje um famoso ator de cinema e comerciais) e conhece outras garotas de programa. Entre a espera compassada do passar vida, mortes e assassinatos acontecem. Mas se enganará quem ver estes fatos como elementos de uma trama de suspense. A morte é apenas como mais um elemento ordinário de uma existência em que, de um lado, está a realidade e mediocridade do cotidiano, e de outro, a dimensão mítica e divina destinada a cada ser humano, que mesmo sem saber porquê, continua em sua busca pela felicidade.
Acompanhando o lançamento de “Dance dance dance” está a tradução de “Norwegian Wood” (Objetiva, 356 págs., R$ 49), que junto com “Minha querida Sputnik” (Objetiva, 236 págs., R$ 34,90) encerram o incompleto rol de obras de Murakami disponíveis em português, um dos autores mais vendidos no Japão e com ampla aceitação nos EUA, onde já se encontra disponível seu mais recente romance, “Kafka on the shore”. Por aqui, fica a espera ansiosa de mais traduções do samurai pós-moderno da literatura internacional.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

10 agosto 2005

O que é, afinal, a tal "música nova"?

O duelo entre o novo e o antigo é algo presente na história de todas civilizações. Seja numa horda de bárbaros profanando templos romanos, seja na eleição democrática de um presidente por oposição a um regime ditatorial, a análise do continuum histórico nos mostra que a superação de um determinado status quo por uma nova ordem é o comportamento que, desde tempos imemoriáveis, vem movendo a humanidade. Nem sempre o novo obtém, num primeiro momento, um amplo consenso. Mas uma vez ocorrido, uma nova ordem é estabelecida, até o momento que o novo fica velho e espera a sua vez de ser superado.

Num certo sentido, toda história da arte se desenvolve na análise da sucessão/superação dos períodos estilísticos que a compõe (a arte do Renascimento veio a substituir à da Idade Média, e por sua vez, foi sucedida pelo Barroco, e assim por diante). No caso específico da música observamos também a presença do mesmo processo. Entretanto, ao fecharmos nosso foco em alguns dos seis grandes blocos em que ela é geralmente dividida – Idade Média, Renascimento, Barroco, Classicismo, Romantismo e Era Moderna, ou Modernismo – constataremos que a noção de “novo”, por vezes, não surge por meio de eufemismos estilísticos, mas sim de uma maneira direta e terminologicamente literal.

É, por exemplo, o caso do termo “ars nova” (em latim, “nova arte”) cunhado em 1322 pelo compositor francês Philippe de Vitry para designar um novo tipo de escritura polifônica no período que hoje denominamos Idade Média. Desde então, tudo o que é anterior a isto passou a ser conhecido como “ars antiqua”. Outro exemplo marcante é o termo seconda prattica, utilizado no século XVII pelo compositor italiano Claudio Monteverdi em um texto intitulado “A segunda prática [musical], ou a perfeição da música moderna” (Seconda prattica overo la Perfettione della moderna musica), no qual ele responde às críticas feitas a algumas composições suas, consideradas um tanto ousadas para a época. Mais uma vez, o duelo entre o novo e o antigo está em cena, e como bem indica o título do texto de Monteverdi, a noção de modernidade está intrinsecamente associada ao “novo”.

Novo e moderno são dois termos muito utilizados ao longo da história da música para se definir uma determinada atualidade. Para o poeta E.T.A. Hoffmann (1776-1822) seu colega de contemporaneidade Beethoven era um moderno, enquanto Mozart e Haydn eram “românticos”. Isto é, com o passar do tempo, os termos vão assumindo significados diferentes.

O que seria, então, a música nova ou a música moderna de nossa atualidade? Para compreendermos melhor isto, é necessário voltarmos às primeiras décadas do século XX. Este período da história da música é caracterizado, entre outras coisas, pelo uso mais constante de harmonias dissonantes, isto é, uma conjunção de notas de maior tensão sonora (em oposição à consonância, de menor tensão). Isto ocorreu em parte pelo desenvolvimento do próprio sistema tonal, que nada mais é a linguagem musical consolidada no século XVII e que é utilizada por compositores mesmo nos dias de hoje, principalmente na música popular em geral. A música na virada entre os séculos XIX e XX é fortemente caracteriza pelo “cromatismo”, que podemos entender como o início do processo de “desconstrução” desta linguagem.

Um das mais importantes correntes musicais deste período é designada como dodecafonismo. Criada na década de 1920 pelo compositor austríaco Arnold Schoenberg (1874-1951), o movimento teve como principais seguidores Alban Berg e Anton Webern, este último autor de uma série de conferências que leva significativo nome de “O caminho para a Música Nova”. Por seus empreendedores, o dodecafonismo seria a nova música que iria suplantar uma prática mais tradicional. Entretanto, o dodecafonismo jamais foi obteve uma ampla aceitação junto ao público de concertos (uma audiência ainda hoje extremamente conservadora), e mesmo entre os compositores, houve muitos que foram trilhar novos caminhos por outras sendas (um nome de relevância a ser lembrado é o do compositor russo Igor Stravinsky).

O fim da II Guerra Mundial, em 1945, trata-se de um período onde ocorreu as mudanças mais radicais na história da música. É a partir da década de 1950 que a noção de “Música Nova” se concretiza por meio de diversos festivais europeus dedicados à música de vanguarda, tais como os das cidades de Darmstadt e Donaueschingen (ambas na Alemanha). É quando surgem em cena compositores como Luciano Berio, Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, John Cage e Luigi Nono, entre outros ícones da modernidade.

Hoje em dia, ao invés de separar uma prática passada de uma atual, a noção de “Música Nova” é apenas a designação de mais um dos infinitos estilos presentes na babel musical de nossa modernidade. Uma atualidade onde não há qualquer consenso estético junto ao público, onde o que impera é a “música-produto” de fácil digestão (e comercialização), onde a arte vira entretenimento e cuja cultura ainda está nas mãos de marketeiros e de autoridades estatais inoperantes. O que virá depois da “pós-modernidade”? Esta é a pergunta que será deixada sem resposta

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

25 julho 2005

Début

[um diz:]
"- Muito bem [...] Deve ser bom tocar."
[o outro responde]
"- É, se você sabe tocar bem. Mas, para tocar bem, você tem de ter um bom ouvido. E, quando você tem um bom ouvido, você acaba deprimido só de ouvir o que você mesmo toca."

Haruki MURAKAMI: Caçando Carneiros, p.303.