20 maio 2006

Freire toca Brahms

CD duplo do pianista brasileiro com concertos de Brahms é lançado no Brasil.

Natural da pequena Boa Esperança, interior de Minas Gerais, o pianista Nelson Freire é uma figura como poucas no universo clássico. Em meio a um ambiente repleto de intrigas, fofocas e carreiristas ávidos para ascender ao estrelato, Freire é uma daquelas figuras que se mantém à parte de tudo isto, dedicando-se com afinco apenas àquilo o que interessa: a música.

Menino prodígio que desde os quatro anos dava recitais solo e já aos oito solava um concerto para piano e orquestra de Mozart, acompanhado pela Orquestra Sinfônica Brasileira, a trajetória de Freire foi marcada por prêmios e principalmente muitas apresentações no exterior (apesar de jamais ter fixado residência fora do Brasil). Seja sozinho, acompanhado das mais renomadas orquestras e regentes ou em pequenas formações de câmara – entre as quais seu duo com a também excepcional pianista argentina Martha Argerich – Freire conquistou platéias e admiradores (muitos deles músicos), fato que o torna um dos músicos mais requisitados em atividade.

Entretanto, entrevistas, festas e grandes eventos sociais – expedientes comuns na agenda de qualquer grande músico – são solenemente ignorados. Numa época em que freqüentemente carreiras artísticas são forjadas por meio de inserções na mídia, a introspecção de Freire é quase um “gol contra”, não fosse o fato de seu espantoso talento musical superar qualquer barreira que sua personalidade possa eventualmente imputar.

Apenas recentemente sua timidez foi vencida pelo cineasta João Moreira Salles para a produção do filme “Nelson Freire: um filme sobre um homem e sua música”, lançado em 2003 (já disponível em DVD) e que veio a se configurar com um dos documentários sobre música clássica mais belos e sensíveis já feitos.

Prestes a completar 62 anos, Freire goza de uma reputação mundial que beira a unanimidade. Detentor de uma musicalidade ímpar, apenas nos últimos anos o mais renomado pianista brasileiro da atualidade tem freqüentado de forma mais regular os estúdios de gravação: Freire jamais grava uma obra sem ter a certeza de que ela esteja realmente pronta.

Desde o ano passado foram lançados dois álbuns dedicados a obras solo de Chopin (entre elas os “Études” opus 10 e 25) e um outro a Schumann (com o “Carnaval” e as “Cenas Infantis”, entre outras), resultado de anos de estudo e apresentações em público. Como não podia deixar de ser, já se tornaram gravações antológicas, obrigatórias em qualquer discoteca que se preze.

É para este mesmo caminho que deve seguir o álbum duplo “Brahms: The Piano Concertos” (Decca, 96 min., R$ 54, nacional) no qual Freire é acompanhado pela excelente orquestra do Gewandhaus de Leipzig, sob a regência do maestro italiano Riccardo Chailly.

Os dois concertos para piano e orquestra de Brahms – compostos e estreados pelo próprio compositor ao piano em 1859 e 1881, respectivamente – são obras-chave no repertório do Romântico alemão, seja pela importância que desenvolvem na obra do compositor, seja pela beleza que as inseriram no cânone pianístico.

Além disto, estes concertos são conhecidos também por suas dificuldades técnicas, tanto no que se refere à parte solista como à união entre o piano e a orquestra. Nesta gravação de Freire estas dificuldades não são apenas superadas, mas parecem deixar de existir diante de tamanho controle técnico e entrosamento junto à orquestra.

Aliás, é apenas a dimensão musical – e não o fetichismo virtuosístico – que transparece no que Freire chama como “um pedaço [tecnicamente] horrível” do segundo movimento do “Concerto No. 2”, sobre o qual ele comenta no documentário de Salles. Para quem quiser conferir, pegue o CD 2 e vá direto à faixa 2 do e toque a partir do instante 4 min., 51 seg. e ouça por si mesmo a naturalidade quase blasé com que Freire imprime a este verdadeiro pesadelo dos pianistas.

À parte o excelente desempenho que Freire oferece nestas gravações, é importante notar o cuidadoso trabalho realizado por Chailly à frente da orquestra do Gewandhaus. Obras concertantes estão longe de causar paixões em qualquer regente, mas é notável o cuidado com que a parte orquestral foi realizada, seja nos momentos de grande tensão musical ou nos delicados solos instrumentais que pontualmente surgem nestes concertos de Brahms.

De uma forma geral, a beleza deste novo álbum reside no prazer em ouvir uma música tecnicamente tão intrincada de forma tão suave. Aliás, eclipsar a dificuldade técnica por meio de uma inspirada execução é um constante em Freire, cuja música transcorre de forma tão fluída e natural que custa acreditarmos na existência dos desafios impostos pelas partituras às quais ele se detém. Um milagre musical que poucos conseguem fazer.

13 maio 2006

O colorido de uma orquestra de excelência

Escalada para a abertura da temporada 2006 do Mozarteum Brasileiro, a Orquestra Sinfônica da WDR (sigla para “rádio do noroeste alemão”), que se apresentou no país ao longo desta semana, encerra hoje no Rio de Janeiro sua turnê brasileira.

Fundada em 1947 na cidade de Colônia, desde 1997 a orquestra é dirigida pelo maestro russo Semyon Bychkov. Na última terça, quando a orquestra se despedia do público paulistano, foi apresentado um repertório predominantemente russo, excetuando-se a abertura do “Carnaval Op. 92” do compositor boêmio Antonín Dvorák.

Talvez por conta da pouca familiaridade que orquestra tem com a Sala São Paulo, no início do concerto – tanto a peça de Dvorák como o Hino Nacional Brasileiro – estavam com a percussão excessivamente proeminente, encobrindo com um véu ruidoso as nuances que ocorriam no restante do grupo.

No entanto, o equilíbrio estabeleceu-se quando a jovem violinista japonesa Sayaka Shoji subiu ao palco para enfrentar o difícil “Concerto Op. 82” do russo Alexander Glazunov. Difícil não apenas por todos os desafios que uma peça deste gênero reserva ao solista, mas também por se tratar de uma peça cheia de peculiaridades e pouca conhecida do grande público. Shoji, empunhando seu maravilhoso Stradivarius “Joachim”, fez música como dificilmente se ouve com concertistas, ao mesmo tempo centrada em sua individualidade, porém sem jamais se desvencilhar do todo sinfônico, com ouvidos e olhos bem atentos a Bychkov. Sutilezas de uma menina aliadas à intuição musical cujo tempo só tende a melhorar aquilo que já é extraordinário.

Mas tão extraordinária foi a orquestra e seu regente nas “Danças Sinfônicas Op. 45”, do também russo Serguei Rachmaninov, cuja escritura orquestral sempre surpreende por sua técnica e elegância, à parte de toda a fama como compositor “de piano”. Das nuances nas madeiras, nos incrivelmente precisos pizzicati ao vigor dos metais e da percussão tudo nesta peça foi beleza e poesia musical que apenas um grupo orquestral de excelência e experiente pode proporcionar.

07 maio 2006

Orfeu à espera da redenção

Em abril passado o público paulistano se viu na inusitada situação de, num mesmo mês, conferir duas montagens da ópera “Orfeo”, que escrita em 1607 por Claudio Monteverdi.

Levadas ao palco pelo Núcleo de Música Antiga da ECA-USP, e mais recentemente pelo Coral Paulistano, ambas versões assemelham-se pelo suposto resgate do texto original, cada qual à sua maneira e com níveis de competência musical abissais.

O “Orfeo” da USP não propôs espetáculo operístico, mas sim um “estúdio” acadêmico no qual a ausência de apelo cênico seria compensada pelo trabalho musical, que incluía uma série de instrumentos construídos segundo os padrões do século XVII. Entretanto, o que se ouviu foi um elenco vocal mal ensaiado e de qualidade duvidosa em descompasso com um conjunto instrumental que ainda tateava com instrumentos e técnicas pouco familiares.

Já a montagem do Coral Paulistano, sob a regência de Mara Campos, reservou bons momentos musicais, com um elenco solista competente do qual destacaram-se as sopranos Edna D’Oliveira e Rosemeire Moreira. A cargo do papel-título, Luciano Botelho desempenhou sua parte com modesta regularidade. Porém, na ária Possente spirto o tenor não conseguiu superar a intrincada ornamentação prevista para este momento mágico da ópera. O grande destaque desta montagem fica mesmo para a bela cenografia de Naum Alves de Souza e a interessante direção de João Malatian.

Entretanto, o problema comum às duas montagens foi a ausência de um trabalho realmente cuidadoso no plano da instrumentação e da ornamentação. Como a partitura original não subsidia o músico atual das informações necessárias, “recompor” a trama instrumental é algo de suma importância para qualquer montagem desta ópera. A ausência de um orquestrador na ficha técnica destes espetáculos é um indicador de que – guardada as devidas proporções – o discurso musical foi não realizado da forma necessária e que as importantes ornamentações, quando presentes, foram realizadas de forma apenas trivial.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

Festival Amazonas de Ópera encerra a primeira leva de apresentações

A principal magia de um festival de música – seja ele heterogêneo como o de Campos do Jordão ou temático como o FAO – é de, em um curto espaço de tempo, poder comparar as diversas performances de um mesmo artista, ou mesmo repetidas apresentações de um mesmo espetáculo. Neste caso, trata-se de uma oportunidade única de conferir o amadurecimento de grandes óperas muitas vezes realizadas com um prazo de pré-produção extremamente curto.

Tal foi o caso de “Otello”, de Verdi, aqui resenhado na semana passada. A reportagem compareceu à estréia da produção, que apesar da apreciação majoritariamente positiva, teve alguns de seus calcanhares de Aquiles apontados em meio a uma performance musicalmente regular. Porém, quem compareceu a segunda récita da ópera, testemunhou um espetáculo diferente, musicalmente empolgante no qual os grandes problemas foram amenizados (tal como a performance do tenor Denis O’Neill) e outros, apesar de persistirem (tal como o solo de contrabaixos após a “Ave Maria”) perderam importância diante da fluidez que se estabeleceu no palco.

É este amadurecimento que se espera ter ocorrido com o “Otello” de Rossini, que encontra em Manaus sua estréia brasileira. Sob a cautelosa regência do jovem maestro Marcelo de Jesus, esta produção tinha além de todos os desafios de praxe a difícil tarefa de dar vida ao estranho libreto de Berio di Salsa – do qual mal se reconhece a obra de Shakespeare – e à escritura rossiniana, que apesar de bela e encantadora, nem sempre corresponde às necessidades dos ouvidos modernos em torno de uma música trágica.

Assim como no “Otello” de Verdi, o destaque do elenco vocal não fica para o papel-título. Nesta ópera de Rossini, Desdêmona sobressai como protagonista, muito bem desempenhada pela soprano Gabriella Pace. Merece também uma menção especial o tenor Carlos Ullan, a cargo de um difícil Rodrigo. Com problemas de saúde às vésperas da estréia, ficou claro que a ocasião não foi das melhores para o tenor Paulo Mandarino, que interpretou Otello.

No entanto, a parte cenográfica – a cargo da mesma equipe da montagem verdiana – de novo ficou a dever em criatividade e qualidade artística (apenas os figurinos merecem uma menção especial).

Nesta montagem, a direção cênica de Marcelo Lombardero jogou contra as intenções gerais do enredo: se a virtual ausência de affetti nesta partitura de Rossini é em si um problema para que a dimensão trágica da narrativa venha à tona, a trivialidade das movimentações cênicas aliada a uma caracterização semi-cômica de certos personagens afastou ainda mais (quiçá propositalmente) a história de sua vocação dramática.

Para as óperas que em maio ganharão o palco do festival cresce o anseio em torno de uma real simbiose entre a parte musical – esta, via de regra, muito boa – com a parte cênica, que ainda não ultrapassou o status de uma mera distração visual.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]