29 junho 2007

A música de um mestre mulato em prosa

Finalista do prêmio Jabuti deste ano, em “Música Perdida” Assis Brasil romanceia a vida do compositor Joaquim José de Mendanha.

Romance polifônico, de leitura agradável e fluída, o livro “Música perdida”, de Luiz Antonio de Assis Brasil, tem como personagem principal uma figura que, apesar de relativamente comum na ficção universal, é ainda muito rara na literatura nacional, isto é, o compositor.

Um dos principais romancistas brasileiro em atividade e autor de obras premiadas – tais como “A margem imóvel do rio” e “O pintor de retratos” – em “Música perdida” (pelo qual concorre este ano o Prêmio Jabuti de melhor romance) Assis Brasil toma como fio condutor a vida do compositor mineiro Joaquim José de Mendanha (1801-1885), que na vida real é mais conhecido por ser o autor da música do Hino Farroupilha, mais tarde conduzido ao status de hino oficial do Rio Grande do Sul. Em uma laboriosa teia narrativa, na qual a ficção e a biografia se entrelaçam de forma coesa em diversos lugares do tempo e do espaço, o escritor constrói um personagem complexo, no qual valores, deveres e anseios antagônicos travam uma batalha constante ao longo da sua vida.

Música de ficção

É com relativa freqüência que a vida dos compositores clássicos têm sido o mote de diferentes obras de ficção, seja na literatura, na dramaturgia ou no cinema. Reais ou imaginários, é desde meados do século XIX que o compositor é uma fonte para drama e conflitos. Uma vez no campo da invenção literária – e não mais na acuidade histórica da biografia – o compositor é um personagem de grande densidade psicológica, e a vida que gira em torno dele é algo tão denso quanto sua mente criativa, o que faz de sua obra e vida singulares frente à ordinariedade do cotidiano e do cidadão comum. Seja Mozart e Salieri da pequena peça de teatro de Púchkin, o Beethoven do filme de Bernard Rose ou mesmo os fictícios Adrian Leverkühn, de Thomas Mann, e Jean-Christoph, de Romain Rolland, o compositor enquanto personagem de ficção mostra-se um figura complexa e interessante.

Apesar da grande oferta e peculiaridades que a música brasileira oferece como referência, a figura do compositor em sua ficção é ainda escassa, quando não constrangedora (tal como o filme “Villa-Lobos: uma vida de paixão”, de Zelito Viana). Tendo isto em vista, o livro de Assis Brasil revela-se ainda mais surpreendente, na medida em que ele elege o desconhecido Joaquim José de Mendanha como personagem de seu romance.

O nome deste compositor por ser colocado ao lado de outros que, apesar do virtual anonimato no qual se encontram em nossa atual cultura musical, são nomes importantes para história da música brasileira, tais como José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, André da Silva Gomes, João de Deus Castro Lobo, Manoel Dias de Oliveira e José Maurício Nunes Garcia (este também um personagem em “Música perdida”).

Todos são compositores pertencentes ao que se convencionou chamar de “música colonial”, isto é, produzida em meados do século XVIII até os primórdios do XIX, nos então centros de riquezas brasileiros, em especial, as Minas Gerais e o Rio de Janeiro.

A vida do mestre mulato

Nascido Vila Rica, o compositor Joaquim José de Mendanha (que no romance é também chamado pelo apelido de Quincazé) realizou estudos e trabalhos profissionais no Rio de Janeiro, de onde posteriormente partiu para longínqua Capital da Província do Sul, em meio às conturbações que assolavam o Império naquela época.

Mulato, Mendanha faz parte de um tipo que se tornou relativamente comum na música brasileira da época, quando parte considerável os ofícios musicais religiosos e laicos estavam a cargo de músicos oriundos de famílias humildes, e a profissão era um dos principais meio de ascensão social de então.

Em sua imensa maioria, esses compositores realizaram sua formação musical de forma improvisada, apoiando-se muito mais em seu talento do que em um método formalizado. Grande parte de suas produções foram dedicadas à música religiosa, por meio de partituras que seriam executadas por cantores e instrumentistas com uma formação aquém dos músicos que seus contemporâneos europeus dispunham para materializar sua música.

Neste sentido, é notável o cuidado de Assis Brasil ao mostrar ao leitor não só as peculiaridades do cotidiano musical pré-republicano, que em muito se contrasta com estereótipo de luxo e excelência que cerca as práticas européias, mas também como este ambiente foi determinante na vida de seus personagens, tal como fica especialmente claro nas falas de Nunes Garcia, para quem a consciência de nossa rusticidade musical chega ao ponto da abnegação intelectual. “Se deseja ser compositor no Brasil, domine seu talento”, diz a certa altura ao protagonista Quincazé.

A frase, de certa forma, ilustra uma das idéias principais do livro, qual seja, o perpétuo estado de ansiedade do artista sempre em meio a forças antagônicas: o poder e o ceder, a nobreza artística e a indigência comercial, a sofisticação da intelectual e o simplismo do público. Mas o antagonismo maior, que por fim é o que faz o protagonista abandonar o cosmopolitismo carioca para a provinciana Porto-Alegre oitocentista, é o choque decorrente entre as obrigações sentimentais juntos aos seus próximos (em especial ao pai e aos seus mestres-tutores) versus a vaidade e a ambição naturais a um jovem artista.

Com sua prosa envolvente e a familiaridade com aspectos históricos e técnicos das práticas musicais, Assis Brasil oferece ao leitor uma obra bela e consistente sobre a música e vida que mesmo que momentaneamente recuperada, estará inexoravelmente perdida devido ao fatalismo que projeta sua sombra sobre os trópicos brasileiros.

Serviço
“Música perdida”, de Luiz Antonio de Assis Brasil
L&PM, 220 págs., R$ 28

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

Música na contramão

Na última década, diversos projetos de recuperação de repertório, e seu respectivo registro fonográfico, têm surgido na cena musical brasileira. Via de regra, estes projetos contam com o patrocínio de grandes estatais, ou mesmo de governos estaduais e municipais. Muitos deles têm se provado de um valor inestimável para a memória de nossa música, na medida em que neles convergem o acurado trabalho de nossos musicólogos e a destreza de bons músicos.

Apesar disto, vez ou outra podem surgir contra-exemplos que, apesar das boas intenções e da pertinência da temática que suscitam, no final das contas em nada acrescentam, quando não acarretam em desinformação.

Tal é o caso do projeto “Mestres Mulatos”, concebido e dirigido por Marcelo Antunes Martins. À frente da Sinfonieta dos Devotos de Nossa Senhora dos Prazeres (na verdade, um grupo de instrumentistas arregimentados ocasionalmente para este projeto), Martins propõe “dar luz à existência” (sic) de compositores “afrodescendentes”. Mas, por fim, a proposta mostra-se uma falácia, tanto do ponto de vista conceitual – ao tentar monocromatizar a história da música brasileira na figura do mulato – como no ponto de vista prático, esbarrando no diletantismo da regência de Martins e nas adaptações de gosto duvidosos das partituras originais (o que, por sua vez, acarreta sua nulidade enquanto objeto histórico e estético). A intenção pode ser boa, mas ainda falta muito para o projeto corresponder de forma adequada à importância histórica dos artistas que ele pretende resgatar.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

22 junho 2007

Japoneses turbinados

Tokyo String Quartet se apresenta com um privilegiado instrumental, composto integralmente por Stradivarius.

Um já é difícil, mas com esforço dá pra conseguir. Dois é um sonho, que apenas de vez quando se torna realidade. Três é quase uma epifania, mas quatro Stradivarius juntos é algo muito próximo do paraíso.

Se você acha que juntar tantos “super-instrumentos” musicais é algo impossível, prepare-se!, pois neste fim-de-semana eles não só estarão juntos como serão tocados por músicos de grande talento e domínio técnico: trata-se das apresentações que o Tokyo String Quartet fará em São Paulo, dentro da temporada do Mozarteum Brasileiro.

Composto por dois violinos, uma viola (instrumento um pouco maior que o violino) e um violoncelo, o quarteto de cordas é um dos mais célebres grupos de câmara da história da música, existindo para esta formação um belíssimo repertório que vem se agigantando desde sua criação, no século XVIII. Os integrantes do Tokyo String Quartet usam em suas apresentações um conjunto de instrumentos Stradivarius que ficou mundialmente conhecido como “Quarteto Paganini”, nome do célebre compositor e violinista italiano que teria reunido em torno de si estes instrumentos.

Fundado em 1969, apesar de seu nome, o Tokyo String Quartet (literalmente, Quarteto de Cordas Tóquio) não iniciou suas atividades na capital japonesa, mas sim em Nova York, onde os fundadores do grupo – todos nascidos no Japão – então estudavam na prestigiada Julliard School of Music. Uma vez nos EUA os violinistas Koichiro Harada, Yoshiko Nakura, o violoncelista Sadao Harada e o violista Kazuhide Isomura (o único da primeira formação ainda atuante no grupo) decidiram batizar seu quarteto com o nome da cidade onde está estabelecida uma das principais escolas de música japonesas, a Toho Gakuen, onde todos foram alunos de Hideo Saito.

Desde seus primórdios o Tokyo String Quartet caiu nas graças do público e da crítica especializada, devido à destreza e dedicação de seus intérpretes. Sua determinação e musicalidade logo lhes conferiram o primeiro lugar em disputadas competições de música clássica, tais como o Coleman Competion, nos EUA, e o concurso de Munique, na Alemanha. Ainda quando seus integrantes eram muito jovens, o quarteto assinou um contrato de exclusividade com o renomado selo alemão Deutsche Grammophon. O prestígio do grupo foi tão longe que apenas sete anos após sua fundação ele foi convidado para ocupar o posto de “quarteto em residência” (uma espécie de patrocínio vitalício) da Universidade de Yale, onde ainda hoje os integrantes do grupo desenvolvem várias atividades, entre aulas, ensaios, apresentações e masterclasses.

Apesar deste início tão promissor, não foi de imediato que os músicos do Tokyo String Quartet tiveram ao seu alcance estas verdadeiras maravilhas da lutheria (nome da atividade de construção de instrumentos) que é o “Quarteto Paganini”. Antes de chegar aos dias atuais, os quatro instrumentos Stradivarius – que a partir de amanhã iluminarão o palco da Sala São Paulo – passaram por um longo périplo através dos séculos...

A odisséia de quatro instrumentos

Tido como as mais perfeitas peças de artesanato, os violinos cremonenses (região ao norte da Itália) foram elevados à condição de “obra de arte” quando, por sua vez, virtuoses como o Giuseppe Tartini, Giovanni Battista Viotti e Paganini alcançaram grande popularidade ao empunhar estas verdadeiras máquinas diante de entusiasmadas platéias. Dentre os diversos luthiers existentes na região entre o final do século XVII e início do XVIII, os instrumentos de Antonio Stradivari (1644-1737) foram os que mais se destacaram, devido à sua sonoridade singular que jamais conseguiu ser imitada por qualquer outro luthier ou aparato tecnológico.

A fama dos instrumentos Stradivarius perpassou os tempos, quando no século XIX Niccolò Paganini (1782-1840), já com a carreira solidamente constituída, resolveu aplicar parte de sua fortuna na reunião de um quarteto de cordas integrado apenas por peças construídas pelo célebre mestre cremonense. Tal empreitada pode ser entendida mesmo como um investimento puramente financeiro, uma vez que para uso próprio Paganini preferia um violino construído por outro afamado luthier cremonense, nascido na família Guarneri.

Porém, a reunião de instrumentos tão famosos mostrou-se algo impraticável em termos de investimento, uma vez que mesmo após da morte de Paganini – que contribuiu para sua valorização do quarteto – não havia em todo mundo um comprador que pudesse adquirir os quatro instrumentos de uma só vez. A solução encontrada por seu filho, Achillo Paganini, foi separar os instrumentos que seu pai a tanto custo conseguiu juntar.

Passado quase um século e meio, foi apenas após a II Guerra Mundial que os instrumentos que compunham o “Quarteto Paganini” voltaram a se reunir, por meio das mãos do negociante Emil Herrmann. Entretanto, Herrmann logo colheu os frutos do esforço dispensado para reunir estes instrumentos, vendo-os em 1946 por US$ 155 mil – uma quantia significativa para época – para Anna Clark, viúva de um rico senador e magnata do cobre norte-americano.

A partir de então o mítico instrumental foi emprestado para diversos grupos estabelecidos nos EUA, tais como o Quarteto da Sinfônica Nacional de Washington, o Quarteto de Iowa e o de Cleveland. Após a morte da proprietária os instrumentos foram doados à Galeria de Arte Corcoran, em Washington, que 1995 os vendeu por nada menos que US$ 15 milhões à Fundação Musical Nipônica, que de imediato os emprestou para os felizardos integrantes do Tokyo String Quartet.*

Relicário musical

Apesar de todo fascínio existente nos instrumentos que os integrantes do Tokyo String Quartet empunham, de nada lhes valeriam não fosse a excelência musical de seus integrantes, que desde a fundação passou por diversas renovações e mesmo uma “ocidentalização” de seu efetivo, que hoje conta com dois japoneses, um canadense e um britânico. Assim, cada apresentação do grupo é uma oportunidade única de entrar em contato direto um precioso relicário musical, seja por conta de seu repertório, pela destreza de seus músicos ou pela magia de seus instrumentos, que por meio de seus sons emanarão séculos história e tradição.

* Em um post de tempos atrás, o OutraMúsica trata de forma mais aprofundada numa resenha do livro “Stradivarius: cinco violinos, um violoncelo e três séculos de perfeição”, de Toby Faber. Clicáqui para ler.

Serviço
Tokyo String Quartet, Mozarteum Brasileiro (São Paulo).
Sala São Paulo, sábado (dia 23) e domingo (24), sempre às 21h.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

15 junho 2007

A chegada do violoncelista pop-star

Yo-Yo Ma é a atração de concorridas apresentações em São Paulo e no Rio.

Com ingressos esgotados há várias semanas, o violoncelista Yo-Yo Ma chega na semana que vem para realizar em São Paulo e no Rio de Janeiro um total de quatro apresentações. Além de encher com boa música os ouvidos dos privilegiados (e uns poucos sortudos) que conseguirem um dos disputados lugar de seus recitais, a vinda de Ma ao Brasil promete também preencher as colunas sociais com fatos e fotos ocorridos nas ante-salas dos teatros. Tudo isto se deve ao fato de Ma ser um dos músicos clássicos vivos de maior projeção internacional da atualidade.

Desde que esta categoria de músicos passou a desenvolver uma relação mais íntima com a indústria fonográfica – bem como com o mass media em geral – muitos deles conseguiram obter projeção e notoriedade similares às dos pop-star. Foi assim, por exemplo, com o “über” maestro Herbert von Karajan, com o pianista Glenn Gould e com os “três tenores” Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti. Mais do que músicos, essas figuras se tornaram celebridades cuja fama ainda hoje extravasa o âmbito clássico, contando com diversas aparições na televisão, livros, cinema e uma infinidade de outros tipos de produtos e espetáculos.

No micro-cosmos do violoncelo, Yo-Yo Ma é atualmente a ponta de uma corrente que começa com Pablo Casals (um dos primeiros a se projetar mundialmente por meio de gravações) e que no momento passa por uma era de transição, devido a morte de Mstisláv Rostropóvitch em abril passado. Apesar da grande excelência e notoriedade de muitos violoncelistas contemporâneos – tais como Antonio Meneses, Mischa Maisky e a finada Jacqueline du Pré – a fama de Ma supera às dos demais não por uma questão de talento ou competência, mas sim pelo direcionamento que ele deu a sua carreira e repertório.

Uma das características mais marcantes da trajetória de Yo-Yo Ma é sua aproximação com as linguagens musicais da cultura popular, em especial a exploração ritmos regionais populares e o cinema, fatores que conferem uma coloração miscigenada à sua música.

Apesar da maior parte da vultuosa discografia da Ma estar dedicada ao repertório clássico tradicional – que desde 1983 já acumula pouco mais de uma centena de títulos – seus maiores sucessos fonográficos correspondem, no entanto, aos álbuns nos quais ele flerta com a música popular.

Em discos como Appalachia Waltz” (1996), Soul of the Tango” (1997) e “Obrigado Brazil” (de 2003, que no ano seguinte ganhou uma versão ao vivo) Ma realiza por meio da linguagem clássica aproximações com certos estereótipos musicais das tradições populares norte-americanas, argentinas e brasileiras, respectivamente. Este tipo de abordagem estilística é conhecida como crossover e tem sido cada vez mais valorizada pelo grande público, apesar de não raro dela resultar um produto de senso estético e musical um tanto duvidoso.

Entrantob, foi pelas telas do cinema que o nome do Ma difundiu-se mundialmente e rompeu não apenas as fronteiras do território clássico, mas bem como da própria música. Vários blockbusters tiveram Ma à frente da performance musical de suas trilhas sonoras originais, tais como “Sete Anos no Tibet” (1997), “O Tigre e o Dragão” (2000) e “Memórias de uma Gueixa” (2005), entre outros. Além disso, Ma é queridinho de Hollywood quando o assunto é um violoncelo enquanto música incidental (isto é, não composta especialmente para filme).

A parceria de Ma com a música de cinema teve como produto um especial álbum totalmente dedicado ao Ennio Morricone (autor de trilhas como “Os Intocáveis”, “Cinema Paradiso” e “Era uma vez na América”) no qual o próprio compositor realizou arranjos escritos especialmente para Ma. Além de Morricone, o violoncelista gravou também um álbum dedicado a John Williams, outro gigante das trilhas sonoras autor de clássicos como “Tubarão”, “Guerra nas Estrelas” e “A Lista de Schindler”.

Mas nada disso seria suficiente não fosse o fato de Ma ter desenvolvido sua carreira nos EUA, terra onde o mercado clássico encontra processos e níveis de profissionalização comparáveis ao da indústria pop. Apesar de nascido em Paris, em meio a uma tradicional família de músicos clássicos emigrados da China, a América foi a pátria onde Ma se naturalizou e encontrou o ambiente que, por fim, propiciou sua ascensão de músico à cidadão do mundo (com direito ao título de Embaixador da Paz da ONU). Na mídia norte-americana Ma pode ser encontrado em situações tão heterogêneas quanto seu estilo musical, tais como a festa do Oscar, os encontros anuais da gigante tecnológica Apple, na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno ou num duo com a secretária estado Condoleezza Rice.

Apesar de sua diversidade estilística, Ma programou para seus recitais no Brasil um repertório tradicional, no qual consta a célebre “Sonata Arpeggione”, de Franz Schubert, além de obras de Dmítri Shostakóvitch e César Franck. Apenas “Bodas de prata” e “Quatro cantos”, compostas pelo brasileiro Egberto Gismonti, representam a faceta eclética que tanto tem marcado a imagem de Ma. No mais, deverá ser o bis a ocasião na qual Ma mostrará seu lado mais popular, e a julgar pelo frenesi que antecede sua aparição, é bom ele caprichar na quantidade de breu a passar no arco de seu violoncelo.

Serviço:
Recitais de Yo-Yo Ma (violoncelo), acompanhado por Kathryn Stott (piano)
> São Paulo: dia 18 de junho, 21h, Congregação Israelita Paulista e 19 e 20 de junho, 21h, Teatro Cultura Artística (todos com ingressos esgotados).
> Rio de Janeiro: 22 de junho, Theatro Municipal do Rio de Janeiro (ingressos esgotados).

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

01 junho 2007

Os últimos acordes da temporada manauara

Obra de Villani-Côrtes é estreada no Festival Amazonas de Ópera, que foi encerrado com concerto lírico de Nuccia Focile.

Após cinco semanas de intensas atividades, encerrou-se sábado passado na cidade de Manaus a décima primeira edição do Festival Amazonas de Ópera (FAO). Por meio dos diversos tipos de espetáculos programados para este ano o evento reafirma sua importância em diversas frentes. No âmbito nacional, o FAO continua a se destacar das demais casas de ópera brasileiras não só pela qualidade de seus espetáculos, mas bem como pelas diversas estréias – nacionais e mundiais – realizadas nessas últimas semanas (respectivamente, “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk”, de Shostakóvitch, e “Poranduba”, de Villani-Côrtes).

Em termos internacionais, após a grande projeção alcançada em 2005 pela montagem de “O Anel do Nibelungo”, de Richard Wagner, o FAO volta a atrair os olhos do universo wagneriano com a polêmica montagem de “O Navio Fantasma” dirigida por Christoph Schlingensief, que anteriormente já havia assinado encenações no teatro de Bayreuth, meca do wagnerianismo mundial. Regionalmente, o evento reafirma sua ampla aceitação, com casa sempre cheia em todos os espetáculos realizados no Teatro Amazonas.

Para a última semana de suas atividades foi programada a encenação em estréia mundial da ópera “Poranduba”, de Edmundo Villani-Côrtes e um concerto de encerramento a soprano Nuccia Focile (foto ao lado). Acompanhada pela Amazonas Filarmônica, sob a regência de Luiz Fernando Malheiro, a soprano italiana encerrou em grande estilo o FAO deste ano, em um concerto com grande ênfase no repertório italiano. Cantando árias famosas de óperas românticas – nas quais se destacaram as belíssimas interpretações de “Sola, perduta e abbandonata” e “Sonde lieta uscì”, de Puccini, e “Pace, pace mio Dio”, de Verdi – Focile demonstrou grande musicalidade, além de um grande domínio técnico, especialmente evidenciado nas passagens agudas com difíceis indicações de dinâmica.

Povos da floresta no palco do teatro Belle Époque

Das três óperas programadas para esta edição ficou a cargo do compositor brasileiro Edmundo Villani-Côrtes a incumbência de propiciar a estréia mundial do evento, por meio de sua “Poranduba”. Nascida a partir de uma proposta realizada pela escritora de literatura infanto-juvenil Lúcia Pimentel Góes (que assina o libretto da ópera), a partitura de “Poranduba” vem sido escrita desde 1995, tendo tomado sua forma definitiva apenas agora, para sua estréia no FAO, que contou com a direção cênica de Francisco Frias e a Amazonas Filarmônica e elenco vocal sob a regência de Marcelo de Jesus.

Dentro de uma perspectiva mais tradicional fica difícil classificar “Poranduba” como uma ópera, devido ao fato de seu libreto privilegiar uma dimensão dramatúrgica fragmentada ao invés do fluxo narrativo contínuo. No lugar de um enredo, temos fragmentos de lendas e mitos de povos indígenas da Amazônia. Neste contexto, a maioria dos personagens são sim porta-vozes de uma “contação de história”, e não o sujeito de um enredo. O próprio personagem-título, Poranduba, limita-se na função de mestre-de-cerimônia, ao invés de ser um personagem propriamente dito. No espetáculo estava à venda um livro-libretto em formato de publicação infanto-juvenil com ilustrações de Glair Alonso Arruda.

Do lado musical, a heterogeneidade estilística da partitura composta por Villani-Côrtes é um reflexo exemplar da linguagem musical que ele vem desenvolvendo ao longo de suas décadas de carreira. Com um discurso harmônio fortemente baseado na linguagem tonal, é notável a clareza com a qual o texto é apreendido depois de musicado, resultado de um cuidadoso trabalho de prosódia musical que praticamente dispensa o trabalho de legendagem. É especialmente bonita a laboriosa orquestração realizada pelo compositor, que perpassa por diversos estilos, desde o sutil colorido impressionista até a energia dos arranjos sinfônicos sob ritmos populares.

Na parte vocal, o barítono Leonardo Neiva ficou a cargo de papel-título. Sem muitas obrigações cênicas, Neiva desenvolveu com competência uma parte musical que frisa as notas graves de seu registro. Nomes recentes na cena lírica brasileira, os jovens Daniel Marchi (Kanassa) e Eric Herrero (Jurupari) tiveram em “Poranduba” a oportunidade trabalhar personagens musicalmente mais complexos. Tal é também o caso das sopranos Tamar Freitas (Ceucy) e Katia Freitas (Saracura), ambas as filhas da terra que aos poucos vão galgando espaço neste concorrido segmento. Porém, o momento de maior comoção musical ficou mesmo a cargo dos “veteranos” Sérgio Weintraub e Luciana Bueno, que desenvolveram belamente as líricas passagens com perfumes villa-lobianos reservadas para o dueto dos personagens Pai e Mãe.

Se um libreto destituído de dramaticidade como o de Poranduba de certa forma tira o peso da direção cênica – aliás, eficientemente realizada por Francisco Frias – foi o trabalho de direção de arte que, por fim, unificou a teia fragmentada do enredo. Rico em referências visuais à cultura indígena amazônica, a direção de arte de Renato Theobaldo e os cenários de Roberto Rolnik Cardoso – aliados à luz de Caetano Vilela – encheram os olhos ao utilizarem cores fortes em elementos cenográficos simples e criativos.

A ópera e o Papa

Entre tantos acontecimentos, polêmicas, críticas e resenhas, no final do festival o assunto que dominava as rodinhas do Teatro Amazonas era o Papa Bento XVI. Explica-se: durante sua visita ao Brasil, o governador Eduardo Braga esteve em São Paulo para a missa de beatificação de Frei Galvão. Na ocasião, Braga teve um breve contato com o Papa, um notório expert em música clássica e que de pronto o indagou sobre o festival de ópera. Mais do que um mero boato – amplamente difundido pela mídia amazonense – a informação foi oficialmente confirmada por fontes ligadas ao Governo. Nos bastidores do evento, espera-se que o fato seja o primeiro passo da realização de um milagre, já que o corte de verbas, a burocracia e as mudanças nas políticas culturais são demônios que ainda atormentam a estabilidade do festival, evento que no âmbito cultural há muitos anos está mais que consolidado e justificado.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]