29 março 2007

"Abraçai-vos, milhões!"

Presença constante em nossas temporadas, a “Nona Sinfonia” de Beethoven continua levando multidões aos teatros brasileiros.

Pouco depois das dez da manhã de um domingo ensolarado já havia uma intensa movimentação no Theatro Municipal de São Paulo. Na escadaria do prédio o vendedor de doces e cambista dizia a uma senhora: “concerto que nem o de hoje não tem mais ingresso não”. Desolada, a senhora continua no boca-a-boca sua busca por um ingresso.

Não seria uma tarefa fácil, pois o que em poucos minutos seria levado ao palco é uma das mais importantes obras da história de música universal e uma das que mais arrasta audiências para as salas de concertos brasileiras, isto é, a “Sinfonia No. 9, em Ré Menor, Opus 125” do compositor alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827). Ou simplesmente a “Nona de Beethoven”, como é tratada de forma mais íntima por todos aqueles que presenciaram as diversas apresentações da obra no Rio e em São Paulo.

E não foram poucas as apresentações. No ano passado testemunhou-se uma verdadeira avalanche de “Nonas” com diferentes orquestras brasileiras nos mais diferentes cantos do país. Seja na versão integral, ou apenas com seu famoso “Ode à Alegria”, a obra máxima de Beethoven continua a ser uma das prediletas do público brasileiro.

O sublime em música

Composta entre os anos de 1818-24, a “Nona” foi mostrada pela primeira vez ao público no mesmo ano de sua conclusão. Uma vez assimilado o impacto inicial, esta obra foi aos poucos ganhando projeção na Europa e no Novo Mundo, adentrando o século XX com o status de obra obrigatória no repertório de qualquer grupo que se pretenda intitular como “orquestra sinfônica”.

Apesar de um sem número de trabalhos acadêmicos dedicados a esta obra prima, não é possível identificar uma causa única ao seu sucesso. É o que defende o músico e pesquisador Daniel Bento, autor de um dos poucos livros dedicado a Beethoven escrito e publicado por um brasileiro. “A ‘Nona’ é um dos mais expressivos exemplos de peça apreendida por seus contempladores em qualquer nível de fruição que se esteja disposto a adotar. Ou seja, proporciona ao músico um trabalho infinito de descoberta; mas também garante uma experiência inigualável ao ouvinte que simplesmente aprecia Beethoven sem saber por quê”.

Este amplo apelo da peça refletiu-se no heterogêneo público que lotou o Municipal paulista domingo passado, ocasião na qual a “Nona” foi interpretada pela Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, conduzida pelo maestro José Maria Florêncio.

Arte para todos

“Abraçai-vos, milhões!”. Este é um dos versos de Friedrich Schiller (1759-1805) que Beethoven utilizou em um dos movimentos da peça. Literalmente, as apresentações da obra congregam pessoas dos mais diferentes perfis, desde o músico profissional até aqueles que estão iniciando na apreciação musical. Muitos destes adoradores da “Nona” perseguem, em grupo, as mais diferentes apresentações, contrastando as versões ao vivo com alguma gravação que lhes sejam caras (as que o mítico maestro Hebert von Karajan realizou na década de 60 é ainda uma das mais citadas).

Já nos corredores do teatro, um grupo de adolescentes esperava com ansiedade para o início do espetáculo. “O grêmio da escola ficou sabendo do concerto e resolveu organizar uma excursão”, diz o estudante secundarista Tiago Siqueira, admirador confesso desta sinfonia a ponto de cantarolar um pequeno trecho da obra, que veria ao vivo pela primeira vez. Ele e mais algumas dezenas de jovens percorram de ônibus os 85 km que separam sua cidade, Valinhos, dos pórticos do Municipal paulistano. Outra que debutava na “Nona” era a pianista Liliane Kans, que entre os incontáveis concertos que já ouviu e tocou ao longo da carreira, nunca tinha tido tempo para apreciar esta peça ao vivo.

Entretanto, não só de marinheiros de primeira viagem estava tripulada a nau beethoveana. Figura sempre presente nas salas de concertos Irene Fuhrmeister confessa ser fã da obra. “Semana passada fui ver a Osusp tocar esta peça e estou aqui para ouvi-la novamente. É uma obra muito querida para mim”.

Outro veterano em “Nona” que prestigiava esta apresentação foi o maestro Abel Rocha. Regente da Banda Sinfônica do Estado e do Coral Collegium Musicum, só no ano passado Rocha preparou seu coro para cantar a “Nona” em sete apresentações diferentes. “É uma peça que sempre atrai muita gente” diz o maestro, instantes antes de presenciar mais uma apresentação da obra (agora apenas enquanto público).

Desafio profissional

Após a empolgante apresentação - apesar de musicalmente irregular (sincronia, cortes, coesão tímbrica entre os naipes...) - público, instrumentistas, cantores e solistas se acotovelavam nos estreitos corredores dos camarins do Municipal. No fundo, todos estavam lá para se confraternizar. Somando-se ao maestro, os solistas do quarteto vocal previsto na partitura eram os alvos mais assediados para as congratulações da audiência. O tenor Fernando Portari, que há anos participa das principais montagens desta obra no Brasil, exclamava entusiasmado “estou pronto pra outra!”. Quando questionada se já não enjoara de cantar tantas vezes a obra a soprano Rosana Lamosa afirma com alegre serenidade: “Cada apresentação é diferente. Sempre acontece uma coisa nova”. Outro veterano na “Nona”, o baixo Lício Bruno recebia os cumprimentos, que dias antes recebeu ao se apresentar com a mesma peça em Bogotá, na Colômbia.

Todos se lembram com emoção de sua primeira vez com a “Nona”. E domingo passado era esta a situação da mezzo Denise de Freitas. “É emoção muito grande, todo aquele público cantarolando com você, te olhando emocionado”. Sua colega Gabriela Pacce, que recentemente também estreou como solista na peça, fez coro aos sentimentos de Denise.

Apesar de uma análise mal-humorada nas temporadas dos últimos anos fazer parecer até tediosa a presença tão constante desta peça, basta que as primeiras notas da peça ressoarem pelo teatro para, então, termos novamente a certeza que cada escuta da “velha Nona” é sempre um experiência única e renovadora.

Ilustrações: 1) Retrato de Beethoven; 2) Manuscrito da Sinfonia No. 9.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

24 março 2007

Clássicos pelo Brasil

Uma pequena análise da temporada 2007

Apesar de março ser o mês no qual oficialmente se inicia a temporada clássica brasileira, é mesmo a partir de abril que a coisa começa a esquentar nas salas de concertos do país. E a coisa promete mesmo esquentar: para este ano a platéia da música concerto será brindada com uma grande diversidade de repertórios e com formações musicais dos mais diferentes estilos e países.

Apesar de a maior parte dessas atrações estarem concentradas no Rio de Janeiro e em São Paulo quem estiver em outras partes no Brasil não ficará desamparado de música. Basta ficar de olho na programação cultural, que nem sempre são divulgadas com a antecedência necessária.

A megalópole sinfônica

A aglomeração urbana entre Rio e São Paulo é mesmo oásis da música sinfônica brasileira. Apesar das temporadas e dos concertos esporádicos existentes em outras capitais brasileiras – tais como Manaus, Belém, Aracaju e Belo Horizonte, entre outras – é mesmo na megalópole do Sudeste onde se pode encontrar de forma mais regular concertos de ótima qualidade artística e repertório variado.

No Rio a cena sinfônica tem suas atenções divididas entre a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), dirigida por Roberto Minczuk, e a Orquestra Petrobrás Sinfônica (OPS), dirigida por Isaac Karabtchevsky. Cada qual com uma atração diversificada, as orquestras cariocas, entretanto, trilham caminhos diversos. A OPS aposta muitas de suas fichas em Beethoven, que ganhou nada menos que cinco programas exclusivos.

Por sua vez, a OSB investe na excelência de seu regente e em convidados de renome na cena clássica, tais como o maestro Kurt Masur, o violinista Pinchas Zukerman, o pianista Nelson Freire e a soprano Eliane Coelho. Isto não quer dizer que a OPS não tenha seus convidados de peso: entre as atrações mais aguardadas está o retorno do compositor e maestro polonês Krzystof Penderecki, que conduzirá seu “Réquiem Polonês”.

Em São Paulo todas atenção acabam naturalmente voltadas para a Sala São Paulo e a orquestra que ela abriga, a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). Dirigida por John Neschling, mais uma vez ela proporcionará a sua audiência uma programação diversificada assim que ela retornar de sua turnê pela Europa, contando ainda com a presença maciça de maestros e solistas convidados que valem a pena serem conferidos.

Porém, o mundo sinfônico paulista não se limita a Osesp, existindo várias opções interessantes fora dos domínios de John Neschling. O Theatro Municipal volta à ativa após a interrupção de sua reforma, ainda sem prazo para ser retomada. Os conjuntos orquestrais da cidade (a Orquestra Sinfônica Municipal e a Orquestra Experimental de Repertório) ocuparão com regularidade o palco do teatro, dividindo-se entre produções sinfônicas e operísticas. Além delas, vale a pena destacar o trabalho eclético que a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo e a Orquestra Jazz Sinfônica vêm desenvolvendo nos últimos anos, constituindo alternativas estilísticas importantes dentro da tradição clássica.

Ópera ao Norte!

Apesar de todo o peso do Sudeste na cultura musical clássica brasileira, mais uma vez é da região Norte do país de onde vêm as atrações mais instigantes em termos de ópera. E mais uma vez é Manaus, agora na décima primeira edição do Festival Amazonas de Ópera (FAO), que conduz o movimento da ópera amazônica, tendo em vista que a cena lírica do Pará passa atualmente por um profundo processo de reestruturação iniciada com a mudança do governo estadual, ocorrida no começo do ano.

Apesar do dramático corte de verbas que o FAO sofreu este ano ele mantém-se vivo e com uma programação interessantíssima. O grande destaque deste ano é o que possivelmente se trata da primeira encenação brasileira da ópera “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk”, de Shostakóvitch, que será conduzido pelo maestro Luiz Fernando Malheiro (também diretor do FAO).

Apesar de sua importância em âmbito nacional e de sua projeção no cenário internacional, o FAO parece ainda não receber das autoridades locais a atenção devida. Tal se deve não apenas pelos significativos cortes de verbas que o evento passsou, mas também pela ausência de uma infra-estrutura profissional de vendas de ingressos e da inexistência de uma política de turismo cultural (nacional e internacional) que poderia ser agregada ao evento.

Música ad infinitum

Muita música que irá acontecer pelo país, pois mesmo para quem está fora da megalópole do Sudeste há, ainda que de forma esporádica, algumas atrações musicalmente relevantes e a preços acessíveis. A exemplo do que ocorreu nos últimos anos, a Funarte promete também para este ano mais uma edição do projeto Circulação de Música de Concerto, que financia espetáculos clássicos em regiões e cidades onde este tipo de prática ainda não se realiza de forma constante. As redes Sesc e Sesi vez o outra promovem eventos em todo o país que também merecem ser observados pelos amantes da música de concerto. Pode ainda não ser o suficiente, mas quem sabe não é a semente de algo possa crescer e nutrir os devaneios artísticos de gerações futuras?

Fotos: 1) Theatro Municipal do Rio de Janeiro; 2) Sala São Paulo e 3) Teatro Amazonas.

DESTAQUES DA TEMPORADA BRASILEIRA 2007

Rio de Janeiro:

Orquestra Petrobrás Sinfônica (OPS)

- Abril: Festival Villa-Lobos (“Choros No. 10” e “A Floresta do Amazonas”). Isaac Karabtchevsky (reg.).
-
Julho: “Réquiem Polonês”, de Krzystof Penderecki (regido pelo próprio compositor).

- Setembro: Karabtchevsky rege a “Sinfonia No. 6”, de Mahler.

- Outubro: com regência de Daisuke Soga, obras de Saint-Säens e Bartók, com solos do violinista David Garret.

Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB)

- Abril: Roberto Minczuk rege obras de Strauss, Wagner, Siqueira e Carrilho, com solos do violonista Yamandú Costa.

- Maio: Kurt Masur rege obras de Wagner, Schuber e Dvorák.

- Julho: A soprano Eliane Coelho canta Strauss, Wagner e Duparc, com a OSB regida por Ronald Zollman.

- Setembro: concerto comemorativo aos 50 anos do violoncelista brasileiro Antonio Meneses, que solará os concertos de Dvorák e Krieger, sob a regência de Roberto Minczuk.

São Paulo:

Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP)

- Junho: “Romeu e Julieta”, de Berlioz, regido por Yoram David.

- Agosto: “Messa di Gloria”, de Puccini, e o dificílimo “Concerto para Violino e Orquestra”, de Ligeti, com solos de Isabelle Faust, com a OSESP regida por John Neschling.

- Outubro: o raríssimo “Concerto” de Busoni será solado por Peter Donohoe, regido por John Neschling.

- Dezembro: Neschling conduz a “Sinfonia No. 9” de Beethoven e a estréia mundial de “Crase”, de Flo Menezes.

Theatro Municipal de São Paulo

- Abril: “Erich Korngold - 50 anos de morte”, com a Orquestra Experimental de Repertório (OER) regida por Jamil Maluf.

- Maio: “Jean Sibelius - 50 anos de morte”, com a OER regida por Lígia Amadio e solos da violinista Liza Ferschtman.

- Junho: Concerto com obras de Villa-Lobos e Kilar Wojciech, com a Orquestra Sinfônica Municipal (OSM) regida por José Maria Florêncio.

- Junho: “Sinfonia dos Salmos”, de Stravínski, e “Stabat Mater”, de Rossini, com a OSM regida por José Maria Florêncio.

Banda Sinfôncia do Estado de São Paulo (BSESP)

- Maio: sob a regência de Ira Levin, o grupo acompanha a violinista búlgara Eugenia Maria Popova no famoso “Concerto” de Tchaikóvski.

- Junho: “Shakespeare”, espetáculo cênico-musical que contará com ator Celso Frateschi, acompanho pela BSESP sob a regência do espanhol Rafael Sanz-Espert.

- Novembro: o grupo estréia o “Concertino” de Mehmari, com solos do pianista Ricardo Castro, sob a regência de Abel Rocha.

Ópera:

XI Festival Amazonas de Ópera (Manaus, de abril a maio)

- “O Holandês Voador” (ou “O Navio Fantasma”), de Wagner, regido por Luiz Fernando Malheiro, com direção de Christoph Schlingensieff.

- “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk”, de Shostakóvitch, regido por Luiz Fernando Malheiro, com direção de Caetano Vilela.

- “Poranbuda”, de Villani-Côrtes, regido por Marcelo de Jesus, com direção de Francisco Frias.

- Gala Lírica com a soprano italiana Nuccia Focile, acompanhada pela Amazonas Filarmônica sob a regência de Luiz Fernando Malheiro.

I Festival Internacional de Ópera da Amazônia (Belém, de julho a setembro)

- “O Guarany”, de Carlos Gomes.

- “L'elisir d'amore”, de Donizetti.

- “La Cenerentola”, de Rossini.

São Paulo

- Junho: “A Italiana em Argel”, de Rossini, com a OER regida por Jamil Maluf, com direção cênica de Hugo Possolo.

- Setembro: “Elektra”, de Strauss (versão concerto), com a OSESP regida por John Neschling.

- Setembro: “A Voz Humana”, de Poulenc, com a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo regida por Abel Rocha.

Rio de Janeiro

- Julho: “L’Orfeo”, de Monteverdi.

- Outubro: “A Dama de Espadas”, de Tchaikóvski.

- Novembro: “Carmen”, de Bizet.

Série de assinaturas:

Mozarteum Brasileiro

- Maio: NDR Big Band, com apresentações em São Paulo, Santos, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Blumenau e Salvador.

- Junho: Tokyo String Quartett (apenas em São Paulo).

- Setembro: Orquestra Sinfônica de Euskadi, sob a regência de Gilbert Varga, com apresentações em São Paulo, Rio de Janeiro e Blumenau.

Dell’Arte (Rio de Janeiro)

- Julho: Coro e orquestra do Teatro Colón de Buenos Aires.

- Setembro: Orquestra de Veneza.

- Agosto: Gustav Mahler Jüngend Orchester.

Cultura Artística (São Paulo)

- Abril: Budapest Festival Orchestra, regida por Iván Fischer.

- Junho: Yo-Yo Ma (violoncelo) e Kathryn Stott (piano).

- Novembro: Orquestra de Varsóvia, regida por Antoni Wit e solos do violoncelista Antonio Meneses.

Festivais de música

38º. Festival de Inverno de Campos do Jordão (SP):

- Julho: sob a direção de Roberto Minczuk o mais tradicional do país terá a mulher como temática para este ano. Várias musicistas (instrumentistas, cantoras e maestrinas) estão previstas em sua programação, além de ser uma rara oportunidade de conferir composições criadas por diversas mulheres ao longo da história da música.

17º. Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga (MG):

- Julho: sob a direção de Luís Otávio Santos – um dos maiores especialistas brasileiros de música antiga – para este ano o evento dará continuidade na exploração do repertório do Classicismo que marcou a edição anterior, executando obras de Haydn e do brasileiro José Maurício Nunes Garcia.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!!!]

20 março 2007

Osesp ao vivo: impressões do olho do furacão

Segunda-feira de manhã meu celular toca. É a Adriana, produtora da Rádio Cultura, me convidando para comentar o concerto da Osesp que eles retransmitirão desde Viena, no dia seguinte.

Topo. Afinal, um convite para ouvir (boa) música raramente deve ser dispensado, apesar de não ter muita certeza de como poderia contribuir para fruição de uma atenta audiência que há dias anseia por este momento. Penso com meus botões que já não atrapalhando já seria muito bom.

Na terça, antes de ir para a rádio, tenho aulas de orquestração para dar na faculdade. Aproveito o embalo e levo a tira-colo as partituras do "Concerto No. 4", de Rachmaninov, e de "La Mer", de Debussy. Concluo que ouvir a orquestra não apenas como "cri-crítico", mas também como músico possa ser uma contribuição mais interessante.

Tudo está tranqüilo, até que ao chegar na rádio me deparo com a energia que está no ar. Aquela energia que costuma existir quando algo de importante está prestes a acontecer: pessoas apressadas correndo de lá pra cá, distribuição de roteiros e papéis, mini-reuniões, etc.

Eu e meus companheiros de empreitada somos conduzidos ao estúdio. Do lado de cá do aquário (isto é, o vidro maciço que divide em dois o estúdio) eu, o caríssimo João Marcos Coelho, o sempre simpático Gilberto Tineti e a anfitriã Gioconda Bourdon. Do lado de lá, uma pequena multidão de técnicos, produtores e operadores se aglomeram para garantirem que tudo sairá como se planeja.

Aliás, planejamento é um palavra extremamente relativizada em situações como esta. Improvisação e capacidade de adaptação acabam sendo mais importantes. Coisas inimagináveis podem ocorrer. E invariavelmente ocorrem: cai entrada, muda depoimento de lugar, alonga o comentário aqui, corta bruscamente acolá. Coisa de equilibrista, que tem como principal guia um letreiro luminoso vermelho escrito "Gravando".

A música começa. Passa o Guarnieri. Acompanhamos o Rachmaninov com a partitura. Ouvindo já fica claro que é difícil, mas com as notinhas ali, diante de seus olhos, ele parece mesmo impossível. É possível aumentar ainda mais a admiração por Freire?

Intervalo. Um pouco de descanso e muito papo bom trocado no estúdio (ainda acho que é justamente o que é dito com os microfones desligados aquilo de mais interessante que pode ocorrer em situações como esta).

Começa o Debussy, e se os ouvidos podem enganar, a leitura da partitura mostra que tudo flui forma bela e musical. Arrepios no "Dialoque du vent et de la mer". Uma besteirinha aqui ou acolá não diminui em nada o prazer da escuta.

Vem o Ginastera, Guerra-Peixe e o Villa-Lobos. Só com o Debussy já teria bastado, mas ouvir um pouco mais não faz mal algum. Acaba o programa. Todos se cumprimentam como se tivessem lá, em Viena. E de certa forma estávamos.

Foto: jardins da Fundação Padre Anchieta, onde se localiza os estúdios da Rádio Cultura FM

04 março 2007

Osesp em aquecimento

Antes de sua partida para Europa, orquestra faz concertos na Sala São Paulo.

Nas vésperas de embarcar para sua turnê européia, a Osesp celebrou o início de mais uma temporada – a décima sob a égide de “Nova Osesp” – com algumas apresentações extra-assinatura no palco de sua casa, a Sala São Paulo, que teve sua lotação esgotada em todas as récitas, oferecendo aos seus freqüentadores uma nova e completíssima loja de livros, CDs e partituras em suas dependências.

Ao longo das duas últimas semanas de fevereiro a orquestra, sempe conduzida por John Nechling [leia a entrevista abaixo], realizou o que se considerar um aquecimento para as apresentações que o grupo fará no Velho Mundo. Tendo isto em vista, podemos encarar como uma corajosa ousadia o repertório programado para esta turnê, por conta presença maciça de obras do grande repertório sinfônico mundial. Trata-se de um repertório que o público clássico já está acostumado a ouvir com as excelentes orquestras européias, e que contará com a presença apenas esporádica de obras impregnadas de ares brasileiros – e talvez por isto menos passíveis de uma análise crítica ao público europeu – tais como “Bachianas Brasileiras No. 4”, de Heitor Villa-Lobos, e a “Abertura Concertante”, de Camargo Guarnieri.

No primeiro concerto do ano, os habitués da Osesp – bem como certas figurões do universo clássico mundial, que vieram conferir in loco o que a orquestra faz em casa – puderam conferir um dos programas que a orquestra apresentará em sua turnê.

Iniciado com a bela “Semsemayá”, do compositor mexicano Silvestre Revueltas, a apresentação ganhou força mesmo com a segunda peça, o “Concerto para Piano e Orquestra No. 2”, do compositor húngaro Béla Bartók. Peça de incríveis complexidades rítmicas (que não tardou a infernizar os instrumentos de sopros e seu regente no primeiro movimento), trata-se de um tour de force singular para o pianista, que paralelamente ao virtuosismo técnico deve lidar com a musicalidade singular de Bartók. E este foi um desafio muito bem cumprido pelo excelente pianista húngaro Dezsö Ránki (na foto ao lado, que durante a turnê alternará com Nelson Freire o posto de solista). Como não se emocionar com o perfume tímbrico emanado do mágico segundo movimento deste concerto?

Com a “Bachianas No. 4”, de Villa-Lobos, a Osesp está mais do que nunca em seu território, porém é com a famosíssima “Pini di Roma”, de Ottorino Respighi, encerrou de forma vibrante sua primeira apresentação pública de 2007. A peça Respighi, compositor italiano cuja obra sinfônica a Osesp irá gravar pelo selo sueco BIS (com quem já realizou diversas gravações de compositores brasileiros), é de deliciosa escuta, e foi bem excecutada pelo grupo, apesar de todas as tensões que uma ocasião como esta necessariamente encerra. Seu final festivo – com trompetes dispostos atrás do público – foi belo e empolgante, deixando desde já sua audiência ansiosa para o retorno do grupo a sua terra natal.

[Este texto, bem como a entrevista com John Neschling, faz parte de um especial do caderno Fim de Semana, da Gazeta Mercantil, sobre os 10 anos da "Nova Osesp", que contou ainda uma matéria assinada por Isabel Braga, Karin Hueck e Vivian Masutti, a propósito do livro-reportagem que escreveram sobre a Osesp (já comentado aqui no OutraMúsica). Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!!!]

Entrevista: John Neschling

Completando nesta temporada 60 anos de idade, John Neschling – regente e diretor artístico da Osesp – não dá sinais de cansanço. Pelo contrário. Quando o assunto é Osesp ele tende sempre a falar em longo prazo, pois “sempre há muito o que fazer”. Foi durante os preparativos de mais uma turnê internacional com sua orquestra que Neschling concedeu a seguinte entrevista ao Fim-de-Semana (caderno da Gazeta Mercantil).

Por Leonardo Martinelli

Como você avalia esta década de trabalho junto à Osesp?

Na verdade foi um grande privilégio, pois ter a oportunidade de construir uma orquestra do zero é algo muito difícil, que só acontece uma vez na vida. Sempre desejei fazer isto em minha carreira, seja lá qual fosse o lugar do mundo. Fico ainda mais contente em estar fazendo isto numa orquestra de meu país.

Depois do trabalho que realizou com a Osesp, o que mais ambiciona para sua carreira?

Eu quero é a Osesp. Carreira não significa nada. Na verdade, a boa carreira significa o prazer de trabalhar com boa música, de você ter uma orquestra que responde a seus anseios, que ela seja um terreno fértil a ser cultivado. O que se pode querer mais na vida? Lógico que sempre é possível ir mais adiante, pensar em outras coisas, mas no momento me dedico somente à Osesp.

O que ainda não conseguiu fazer com a Osesp, seja administrativamente ou musicalmente?


Se analisarmos bem, tudo ainda está no começo. E mesmo a consolidação da Osesp enquanto OS [“organização social”, status que agiliza a burocracia de uma instituição pública em relação ao Estado] é algo muito recente. Mas o que procuramos é mais fluência em nossos processos administrativos e uma melhor segurança financeira. Musicalmente, é um caminho eterno de coisas por fazer, de aprimoramento, e nestes termos ainda somos nenês, se tivermos em mente que as grandes orquestras do mundo têm mais de cem anos de existência.

Dentro do trabalho musical da orquestra, o grupo se realiza melhor no repertório musical do século XIX em diante (algo que fica claro inclusive na programação das temporadas). Quais são os desafios de um grupo ao se debruçar em um repertório como este?

O grande desafio é tocar melhor. Não há nunca limite para tocar bem. Mesmo certas músicas que tocamos muitas vezes, e podemos até achar que não dá pra tocar melhor depois da enésima vez, sim, dá pra sair melhor, muitas vezes só depois da enésima vez. Por outro lado, há um grande desafio que é a exploração de um repertório ainda muito desconhecido, tantos de compositores consagrados como daqueles que ainda estão por ser melhores divulgados. E parte deste novo repertório está na própria música brasileira, que também fazemos em nossas temporadas.

Você já esteve no palco incontáveis vezes, mas dentre todas, há algum concerto que considere memorável?

Tenho vários concertos que considero memoráveis, tanto musicalmente como historicamente. A “Sinfonia No. 2”, de Mahler, que tocamos na inauguração da Sala São Paulo foi um deles. Também de Mahler, incluo a “Sinfonia No. 6” que fiz com a Osesp no Teatro Colón, em Buenos Aires. E, é claro, “Il Guarany”, de Carlos Gomes, cujo papel protagonista foi cantado por Plácido Domingo.

A propósito, Gustav Mahler é uma presença constante nos concertos que rege. Podemos falar de predileção?

De certa forma sim, pois eu tenho uma relação muito íntima com a Viena do século XIX. Fui para esta cidade estudar música e lá cresci ouvindo Mahler e Richard Strauss. Tenho tamanho gosto por esta música que programamos para o ano que vem a monumental “Sinfonia No. 8” de Mahler [também conhecida por “Sinfonia dos Mil”, referência à enorme quantidade de músicos que sua execução demanda].

Quais são as delícias da vida de regente, e quais são os infernos pelos quais também tem que passar?

As delícias vêm ao ultrapassar os 60 anos, e o inferno é chegar até ele.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!!!]