28 agosto 2006

O mandarim escultor de timbres

Pianista chinês de dezesseis anos vence o controverso Concurso Internacional de Piano Villa-Lobos.

Entre os escândalos, trocas de acusações e muitas incertezas quanto a sua legitibilidade, a expectativa inicial em relação ao Concurso Internacional de Piano Villa-Lobos (CIPVL) não era simplesmente saber quem seria o melhor pianista, mas sim se haveria espaço para que a verdadeira música fosse feita em meio a tantos fatos lamentáveis.

Idealizado pelo Ministério das Relações Exteriores, o concurso contou com a realização da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Por sua vez, seu diretor, o maestro John Nesching, convidou o pianista israelense Ilan Rechtman, então seu amigo e parceiro profissional, para cuidar do gerenciamento artístico do evento.

Quando o concurso chegou em sua etapa de divulgação dos candidatos selecionados para as provas eliminatórias em São Paulo, iniciou-se uma tumultuosa troca de acusações de conduta ética (em específico, sobre a controvertida relação de pianistas selecionados) no qual fica-se difícil saber onde mora a verdade, ainda mais num contexto onde o sujo reclama da imundice do mal-lavado. O ocorrido tornou-se um escândalo amplamente divulgado pela mídia imprensa e recentemente ganhou projeção internacional pelas páginas do New York Times.

Apesar do concurso, por fim, ter se realizado, a questão não-musical está longe de ser resolvida e aguarda sua conclusão em alguma delegacia paulistana: recentemente o jornalista e crítico musical Irineu Franco Perpétuo foi vítima de um falsário que se fazendo passar por ele enviou para alguns jurados e candidatos do concurso um e-mail contendo uma suposta entrevista cujo conteúdo vai muito além da mera coleta de depoimentos. Cabe agora à polícia descobrir o autor da fraude para que se possa conhecer a real intenção desta mensagem. De tanta confusão de bastidores, apenas a imagem do presidente do júri, o pianista Nelson Freire, manteve-se intacta.

Mas apesar de toda tensão que circundou o concurso e todos seus participantes, muita música de qualidade pode ser ouvida, e ao menos dentro do rol de pianistas selecionados para as provas do concurso, pode-se ter a certeza que o prêmio máximo foi de fato atribuído àquele que cativou o júri e parte da platéia por sua música arrebatadora, isto é, o adolescente chinês Chun Wang. Poderia estar na lista de excluídos das etapas eliminatórias do concurso algum concorrente a altura de Wang? Talvez, mas a música que este jovem de dezesseis anos mostrou é uma certeza inconteste de que a arte prevaleceu, apesar de chamuscada pelo tiroteio político ocorrido fora do palco.

E foi com segurança e inventividade musical que Wang apresentou-se no concerto dos vencedores, domingo passado, na Sala São Paulo. Ao longo dos últimos tempos os músicos orientais que se dedicam à música clássica são freqüentemente associados a um estereótipo – não de todo injustificado – de alta excelência técnica, mas que, porém, deixam a desejar na sensibilidade artística.

Wang além de ter um domínio técnico excepcional é um grande lapidador de timbres e coloridos pianísticos, tal como pode ser conferido em sua suntuosa interpretação de “El corpus em Sevilla”, de Isaac Albéniz. Mas foi com a virtuosística e delicada “Gaspard de la Nuit”, de Maurice Ravel, que Wang cativou a todos com seu domínio absoluto desta intrincada obra: nuances de dinâmica e timbre, controle do gesto e do tempo musical, qualquer coisa que se diga não é suficiente para descrever a beleza singela que o pianista conferiu a esta que é uma das obras mais difíceis do repertório pianístico. Dentre todas as qualidades artísticas de Wang que se pode enumerar, talvez a mais importante seja a entrega e a simbiose com a música que sua interpretação sugere a quem o ouve e o vê. Como ele, mergulhamos numa experiência artística profunda, onde a música reina soberana.

Foi justamente esta relação com a música o principal diferencial de Wang com sua compatriota que levou o segundo lugar, a também muito jovem Jie Chen, de vinte anos, cuja força e simpatia fizeram dela a predileta no voto popular. Mas apesar de detentora de um talento e de uma musicalidade igualmente inegável – vide sua estupenda interpretação do “Estudo Transcendetal No. 12” de Franz Liszt – Chen ainda se senta ao piano como alguém que tem um grande e difícil desafio a vencer, e apesar de invariavelmente vencer, fica a impressão de algo a mais, algo impalpável e mesmo indefinível, poderia ter ocorrido. Correndo o risco do simplismo, a impressão geral entre os dois finalistas é de que Chen toca piano muito bem e Wang faz música muito bem.

Para quem não ouviu estes novos talentos que a China está lançando ao mundo, para o ano que vem está prometido a apresentação destes dois finalistas em recitais solos e em concertos junto com a Osesp (já em abril o jovem Wang tocará o “Concerto No. 1” de Frédéric Chopin). A presença de chineses no posto mais alto de um concurso internacional é cada vez mais freqüente, resultado de um investimento monstruoso que o governo deste país tem feito nas últimas décadas na construção e manutenção de conservatórios, universidades de música e orquestras. No ritmo que as coisas andam neste lado do mundo, caberá a nós apenas esperar a vinda de novos mandarins musicais para mostrar ao ocidente o quão bela é a música um dia feita por aqui.

Concurso ou Olimpíada musical?

Mal findado o CIPVL, o maestro John Neschling já anunciava oficialmente a realização de uma segunda edição para 2010, bem com a certeza de que o evento prosseguirá existindo com a periodicidade quadrienal. À parte os fatos obtusos que marcaram esta primeira edição do concurso, algumas ponderações sob o formato escolhido também precisam ser feitas.

Ao longo de sete dias, os candidatos não tiveram apenas que provar quem era o melhor músico, mas também quem tinha o melhor preparo físico para esta verdadeira maratona. Horas de ensaio e preparação certamente fazem parte do cotidiano de qualquer bom pianista, mas a carga de trabalho que os candidatos tiveram que enfrentar em um espaço de tempo tão curto está longe de ser a habitual, fato este que acaba por privilegiar os concorrentes mais jovens. Poderia o resultado final ser diferente todo o processo ocorresse em duas semanas, ao invés de uma?

Outro problema foi a presença da orquestra nas etapas que a incluíam na prova dos candidatos. Na semifinal, sob a regência do assistente Victor Hugo Toro, a orquestra quase “derrubou” alguns concorrentes, e mesmo no concerto da finalíssima, com Neschling acompanhando os candidatos em obras concertantes de Villa-Lobos, a pouca familiaridade que o conjunto tinha com as obras foi também um fator que não permitiu a plena fluidez da interpretação musical dos concorrentes, eles mesmos, por sua vez, ainda em estágio de compreensão da obra de Villa-Lobos.

Aliás, a tematização do concurso por meio da obrigatoriedade da execução de peças do compositor brasileiro é uma iniciativa interessante quando pensamos em seus possíveis benefícios, isto é, a divulgação não apenas da música de Villa-Lobos, mas dos compositores brasileiros como um todo. Entretanto, a pouca familiaridade com sua obra não foi apenas um privilégio de quem pisou no palco, já que boa parte dos pianistas estrangeiros que constituíram o júri estavam também a se familiarizar, ao menos auditivamente, com elas.

Premiação do júri:
1º. lugar - Chun Wang (16 anos, China) – US$ 30 mil
2º. lugar – Jie Chen (20 anos, China) – US$ 10 mil
3º. lugar – Romain David (28 anos, França) – US$ 5 mil
4º. lugar – Irina Zahharenkova (30 anos, Estônia) – US$ 2,5 mil

Melhor pianista brasileiro no concurso:
Aleyson Scopel (24 anos) – US$ 2 mil

Júri popular:
1º. lugar - Jie Chen
2º. lugar – Irina Zahharenkova
3º. lugar – Chun Wang
4º. lugar – Romain David


26 agosto 2006

Primor vocal em “La Gioconda”

Apresentada em maio deste ano durante o X Festival Amazonas de Ópera, a ópera “La Gioconda”, do italiano Amilcare Ponchielli, estreou sábado passado sua temporada paulistana no Theatro Municipal de São Paulo, tendo o maestro José Maria Florêncio a frente da Orquestra Sinfônica Municipal e do Coral Lírico.

Mais conhecida do grande público pelo seu bailado A Dança das Horas – a partir de seu uso como trilha sonora no filme “Fantasia” de Walt Disney – “La Gioconda” tem muito mais oferecer ao público do que este pequeno interlúdio orquestral que, no fluxo dramático da trama, acaba até por se tornar um corpo estranho em meio a tanta beleza lírica.

Na estréia da ópera, o papel-título ficou a cargo da soprano Eliane Coelho. Um das mais importantes cantoras líricas brasileira em atividade, Coelho está radicada em Viena, e a beleza de sua voz e sua competência musical fazem desta temporada uma oportunidade imperdível de conferir esta grande musicista em ação. Controle de dinâmica, afinação e expressividade vocal são apenas algumas de suas qualidades que poderão ser conferidas hoje e domingo.

Porém, não é apenas por Coelho que “La Gioconda” merece ser vista. Como um todo, o elenco – que contou com nomes como Lício Bruno (Barnaba), Regina Elena Mesquita (a Cega) e tenor búlgaro Kaludi Kaludow – garantiu a fluidez musical e cênica do espetáculo, que teve o dueto de Coelho com a meio-soprano Denise de Freitas (Laura) como um dos grandes momentos desta montagem.

Apesar não exigir grandes movimentações, a direção cênica de Alejandro Chacón garantiu a fluidez necessária a este longo espetáculo que entre somando-se música e intervalos totaliza quatro horas de duração. Se as vozes do elenco encantam ao ouvidos, por sua vez, os belos cenários de Marcos Flaksman, eficientemente iluminados por Caetano Vilela, saltam à vista do conjunto visual, completado pelos figurinos de Adán Martinez.

Se musicalmente a Dança das horas é apenas um inocente ornamento perdido em meio a um espetáculo lírico, a coreografia que o Balé da Cidade de São Paulo preparou torna-o completamente dispensável. Mas ainda bem o plural da palavra “hora” é utilizado apenas no sentido figurativo neste belo espetáculo que se sustenta por suas qualidades intrinsecamente musicais.

05 agosto 2006

Apoteose da juventude

Concerto de encerramento do Festival de Campos do Jordão revela toda a força dos jovens músicos clássicos.


Para o simples espectador, pode parecer apenas mais um concerto, mas para cada músico presente no palco era o capítulo final de uma jornada de três semanas de convívio intenso com a música e seus caprichosos caminhos. Foi no último domingo, na Sala São Paulo, que foi realizado o último concerto do 37º. Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão, com sua Orquestra Acadêmica – integrada por bolsistas e professores do festival – dirigida por Roberto Minczuk. Não foi um encerramento, mas sim uma verdadeira apoteose da juventude musical. Se de um lado falta experiência, do outro sobra paixão e entrega, e em arte é justamente isto o ponto diferencial do comum para o extraordinário.

Se problemas sempre há, extraordinária foi a capacidade da orquestra em colocá-los em segundo plano, eclipsados por sua beleza sonora, por sua empolgação. Diante de um grupo tão forte, a obra “Ritmetrias – Variações rítmicas sobre um metro contínuo” do Edino Krieger – compositor residente do festival que escreveu esta obra especialmente para a ocasião – soou um mero diletantismo, uma tarefa burocrática muito aquém da empolgação presente nestes jovens artistas.

Mas eles tiveram seu momento para mostrar a que vieram, e ele ocorreu ao longo dos seis movimentos da suíte “O Pássaro de Fogo”, de Igor Stravinsky (obra na qual a presença de estudantes foi mais maciça, especialmente nos sopros). Desde as sutilizas tímbricas e as nuances dinâmicas exploradas em números como “Ronda das princesas” até a energia rítmica da “Dança infernal” estava tudo lá, com capricho e entrega.

Apesar da execução da obra de Stravinsky já ter valido a noite, a “Sinfonia No. 4” de Piotr Tchaikovsky foi também outra boa surpresa, com a orquestra mostrando-se apta a superar grandes desafios musicais e técnicos, como nos pizzicati do terceiro movimento (quando os instrumentos de cordas deixam de tocar com o arco, tocando o instrumento como num violão). Tudo sempre sob a regência igualmente entusiasmada de Minczuk, que regeu todo o concerto de cor. O registro desta verdadeira festa poderá ser conferido no início do ano, para quando está previsto o lançamento do CD do festival.

Ao final deste concerto-celebração, foi anunciada a temática do festival do ano que vem, que será totalmente voltado para as mulheres. Ainda cercado de indefinições, resta-nos a esperança da oportunidade de finalmente ouvirmos grandes musicistas de nosso tempo e compositoras como Barbara Strozzi, Clara Wieck, Alma Mahler, Marisa Rezende, Galina Ustvólskaia, Jocy de Oliveira e Kaija Saariaho. Quem sabe?