22 junho 2008

O reinado de Eiko Senda

Em montagem de "Madama Butterfly", a soprano Eiko Senda é a imperatriz absoluta do Theatro Municipal de São Paulo.

Na carreira de um grande intérprete não é algo incomum que sua figura e arte fiquem associadas a uma obra específica. Entre os instrumentistas e regentes é mais comum que esta associação seja feita com um compositor em específico: Mahler é com Abbado, Rachmaninov é com Horowitz, e assim por diante.

No canto operístico, por sua sua vez, esta associação ocorre não apenas com um dado compositor, mas freqüentemente com uma personagem em específico. Muitos são os fatores que conduzem a esta associação. Registro correto, talento musical, competência dramática e carisma são, sem dúvidas, elementos fundamentais. Mas na verdade não há uma fórmula que explique exatamente o porquê de algumas vozes parecerem criadas para aquela personagem. Há um "Q" a mais que - Deo gratias - reside no intangível analítico.

A estréia que o Theatro Municipal de São Paulo realizou de sua nova montagem de "Madama Butterfly", de Giacomo Puccini (1858-1924), foi apenas mais um dos capítulos que consagram a relação da soprano Eiko Senda com a gueixa trágica Cio-Cio-San. Ainda que o fato da cantora ser japonesa possa ser um fator de relevância, a verdade é que a mágica simbiose entre Eiko e a personagem se explica justamente por este "Q" a mais, algo além do estereótipo étnico-visual ao qual soma-se tudo aquilo que uma grande cantora deve ter (registro correto, talento musical, competência dramática, carisma, etc.).

Numa grande noite, na qual a "imperatriz" Eiko emocionou seu súditos, foi também notável o desempenho de alguns de seus companheiros de palco, em especial a mezzo Silvia Tessuto (Suzuki) e o baixo-barítono Lício Bruno (Sharpless). Ainda que com aparições pontuais, vale também ressaltar o trabalho de Sergio Weintraub (Goro), Pepes do Valle (Bonzo) e Jang Ho Joo (Yamadori), que juntos consolidaram um elenco vocal e cenicamente competentes.

No final das contas, coube ao tenor inglês Paul Charles Clarke conferir ao personagem Pinkerton uma dupla função de "vilão". Não que o cantor seja destituído de um sarcasmo cênico tão apropriado para o personagem, mas o fato é que seu volume vocal mostrou-se aquém do exigido, sendo freqüentemente eclipsado quando em ação com outros cantores.

Nesta nova montagem o diretor cênico Jorge Takla se propôs realizar uma "Madama Butterfly" abstrata (leia entrevista abaixo), que teve na cenografia de Tomie Othake seu ponto de apoio que, no entanto, pendeu mais para o meramente funcional do que para o visualmente inspirado. Posto isto, a direção de movimentos de Susana Yamauchi revelou-se fundamental para a fluidez cênica do espetáculo, aliada à laboriosa iluminação do próprio Takla, um engenhoso itinerário de cores que tingiu o palco do Municipal ao longo da heterogênea paleta de sentimentos puccinianas.

Assim, as pontuais projeções de bambuzais e da bandeira dos EUA mostram-se não apenas dispensáveis, mas de certa forma, contraditórias com a proposta geral. Mas mais dispensável foi a representação em forma de "árvore humana" da cerejeira do quintal de Cio-Cio-San e o kitsch bailado do segundo ato.

Sob a regência de Jamil Maluf, o Coral Lírico e a Orquestra Experimental de Repertório cumpriram com eficiência suas funções, e há de se salientar que não são poucas as armadilhas que a escrita de Puccini reserva aos heróicos soldados do fosso da orquestra.

* * *

Mas voltemos a Eiko Senda. Se de um lado ser eternizada com uma personagem em específico (ainda mais se tratando de Cio-Cio-San) é um honra a poucos concedida, como toda dádiva ela pode facilmente ser convertida em maldição. Então, em tempo, é bom lembrar que Eiko não é Cio-Cio-San. Seu talento vai além de qualquer kimono que ela possa por ventura portar, e mesmo o público brasileiro já teve (e, espera-se, terá) diversas oportunidades de conferi-la em diferentes papéis, desempenhados com iguais esmero e musicalidade.

Foto: Eiko Senda (divulgação TMSP).

O caso Ariadne e o Eldorado amazônico

Para esta temporada de ópera do Theatro Municipal de São Paulo estava previsto para o mês de agosto a apresentação de "Ariadne auf Naxos", de Richard Strauss, a partir de uma co-produção com o Festival Amazonas de Ópera (FAO), que o encenou na edição deste ano sob a direção de Caetano Vilella (leia aqui a resenha).

Pois bem, a tal parceria não ocorrerá por motivos diversos. Alguns deles o diretor Vilella expõe em dois posts de seu blog ("Uma outra 'Ariadne' para São Paulo" e "Ainda sobre 'Ariadne'. Réplica e tréplica"). Em princípio, datas e elencos estão confirmados, mas de fato a interessante montagem de Manaus não virá para Sampa (caberá também competente André Heller a elaboração de um novo espetáculo).

Por outro lado, a não concretização da parceria vem acompanhada de mais um "troféu" recebido pelo FAO. Desta vez trata-se de uma elogiativa matéria da revista francesa Opéra Magazine, tal como informa Jorge Coli hoje na Folha de S. Paulo (na internet, o texto infelizmente está em área restrita).

Como já tratei recentemente, e ao longo dos anos que cubro o FAO, o evento trata-se algo único e necessário para qualquer brasileiro verdadeiramente interessado em música (seja ela de qual tipo for). Claro, a distância será sempre um empecilho para que o grosso da audiência clássica, concentrada no Sudeste, veja com seus próprios olhos e ouça com seus próprios ouvidos aquilo que é um verdadeiro Eldorado da música operística brasileira.

Porém, a real concretização de parcerias é fundamental para que o Eldorado transcenda a condição de lenda e consolide de uma vez sua vocação para marco histórico.

Por ora, resta a quem ainda não pode inspirar os cálidos os ares líricos amazônicos uma pequena amostragem que o regente Marcelo de Jesus (braço direito de Luiz Fernando Malheiro no FAO e na Amazonas Filarmônica) está disponibilizando em seu blog.

16 junho 2008

Entrevista: Jorge Takla

Diretor teatral dos mais requisitados quando o assunto é música, Jorge Takla faz-se mais do que nunca presente nos palcos paulistanos. Além de ter estado recentemente em cartaz com sua versão do musical “West Side Story”, de Leonard Bernstein, Takla estréia no próximo sábado sua nova montagem de “Madama Butterfly”, de Giacomo Puccini (1858-1924), no Theatro Municipal de São Paulo. Em 1994 Takla já havia dirigido esta ópera neste mesmo palco, sob a regência de John Neschling. Para esta ocasião – anunciada como comemorativa ao centenário da imigração japonesa no Brasil – o diretor renovará sua visão da famosa história de amor entre a gueixa e o oficial norte-americano, tal como dá a entender na entrevista concedida ao OutraMúsica, em meios aos últimos ensaios antes da estréia.

Antes de começar a dirigir óperas, que tipo de contato tinha com este gênero?

A ópera sempre esteve presente em minha vida. A primeira ópera que vi eu era ainda criança. Foi “L'incoronazione di Poppea”, de Claudio Monteverdi, numa montagem do festival Baalbeck, no Líbano. Mas a verdade é que fui um privilegiado, pois passei minha adolescência na Europa e nos EUA, o que me possibilitou assistir às grandes montagens da década de 1960-70, justamente o momento em ocorria uma grande reviravolta em termos de direção de ópera por meio do trabalho de diretores como Luchino Visconti e Franco Zeffirelli, entre outros.

E como começou a dirigir óperas?

Apesar de sempre estar ligado à música clássica, tendo inclusive estudado canto lírico, comecei a dirigir ópera meio por acaso. Depois de assistir uma montagem que dirigi do musical “Cabaret”, o maestro Jamil Maluf me convidou para dirigir “As Bodas de Fígaro”, de Mozart, em 1989. Desde então já dirigi um total de doze óperas, oito delas com o Jamil. E quero ainda fazer muitas outras.

Quais as principais diferenças entre dirigir uma peça teatro e dirigir uma ópera?

Dirigir ópera é muito mais gostoso, pois é uma forma muito mais completa. Acho que no teatro sempre acaba faltando algumas coisas que a ópera, por conta da música, sempre acaba finalizando. Se pudesse, só dirigia óperas.

Como foi o processo de concepção da montagem desta “Madama Butterfly”?

Trata-se de um grande desafio, pois é uma ópera que todo mundo conhece. Além disto, é uma ópera que traz consigo uma grande carga de estereótipo, por conta das referências à cultura japonesa. Ela é japonesa, mas ao mesmo tempo, é extremamente italiana. Há, portanto, um contraste, pois o japonês é muito discreto, mais velado, e na ópera a tudo é muito aberto, as emoções são cantadas em alto e bom som. É um choque de culturas, e a obra fala justamente disto, pois a música de Puccini expressa de uma forma ocidental sentimentos orientais.

Por isto um ponto importante desta montagem é evitar os estereótipos (tais como a cerejeira, a casa japonesa, etc.), investindo na sugestão de volumes, de cores, e de certa forma fugindo do realismo, resgatando sua essência pela simplicidade, e não pelo excesso.

Chega a ser uma montagem “simbolista”?

Não. Acho que esta montagem está mais para abstrata do que para simbólica, mas apesar disto, todos os códigos dramáticos e seus personagens estão preservados. Sei que seria mais fácil e confortável cair no estereótipo. Mas para mim a “Madama Butterfly” é uma ópera contemplativa. Não pode existir poluição visual e de movimentos. Investi o mínimo em efeitos chamativos, para buscando sua essência e ficando ao máximo na sombra.

Com tudo mais simples, tudo então fica mais exposto. Os cantores, a orquestra e a própria música ficarão mais expostos, e assim a própria obra fica mais valorizada.

Como é trabalhar a dramaturgia com cantores de ópera?

A diferença do trabalho entre um cantor e um ator é que o cantor lírico tem que ter um entendimento muito musical da obra, pois todas as dicas de interpretação dramática estão na própria música. Muito vezes, com atores, eu fico trabalhando meses sua entonação, a “música” contida num texto sem partitura. O cantor, por sua vez, tem sua tem sua partitura, sua música. Mas isto que é uma vantagem é, de certa forma, também uma desvantagem, pois ele não se pode deixar levar pela emoção, pois pode se prejudicar tecnicamente. Ele não pode se entregar passionalmente a um personagem.

No fundo, não adianta fazer o mesmo trabalho que um ator de teatro, pois a diferença é que no teatro um personagem vai amadurecendo ao longo meses. Na ópera, ele tem que estar pronto já na primeira récita, pois depois de uma semana tudo estará acabado.

Neste sentido, é uma experiência rara a que estou tendo com o musical “West Side Story”, onde observei o processo de amadurecimento cênico muito grande nos cantores.

E se pudesse escolher seu próximo projeto em ópera, qual obra gostaria de dirigir?

“Tosca”, de Puccini, porque é teatro puro.


Serviço:

“Madama Butterfly”, de Giacomo Puccini
Direção cênica: Jorge Takla
Direção musical: Jamil Maluf
Cenários: Tomie Ohtake
Figurinos: Fabio Namatame
Elenco: Eiko Senda/Laura de Souza (Cio-Cio-San), Paul Charles Clarke/Marcello Vannucci (Pinkerton), Silvia Tessuto (Suzuki) e Lício Bruno (Sharpless).
Orquestra Experimental de Repertório e Coral Lírico
Theatro Municipal de São Paulo, dias 21, 23, 25 e 27 de junho, às 20h30; dia 29, às 17h. Ingressos entre R$ 20 e R$ 40.

Jornal Nacional, Nova York e a música clássica brasileira

Afinal, apenas perpetua-se a necessidade dos outros dizerem para nós quem entre a gente é bom mesmo.

O barítono Paulo Szot acabou de ganhar o Prêmio Tony - o "Oscar" do teatro americano - na categoria "Melhor performance de ator principal em um musical" pelo seu trabalho no musical "South Pacific". Antes de mais nada, os mais do que sinceros parabéns a Szot, cantor de primeira grandeza que só pode mesmo encher de orgulho os brasucas clássicos que por aqui há tempos acompanham sua carreira.

Mas o ponto deste texto é outro (como deu pra notar pela fotinho ilustrativa).

Por que diacho a música clássica brasileira só é "notícia" quando ela ocorre no exterior, ou melhor ainda, se for em Nova York?

Szot já teria merecido uma matéria em qualquer telejornal por feitos obtidos muito tempo antes. Mas não. Como sempre, é necessário o reconhecimento externo para que os chefes de redação se convençam não do valor do artista, mas apenas de seu "potencial jornalístico" (afinal, alguém aí já viu no Jornal Nacional alguma matéria sobre o "Oscar" da música clássica brasileira?).

Algo muito parecido aconteceu com o maestro Roberto Minczuk, quando regeu a Filarmônica de Nova York em um grande concerto no Central Park. Lá estava a Rede Globo para cobrir o mais novo talento da música brasileira revelado ao mundo. Mas suas câmeras já deveriam estar ligadas quando ele ocupou ainda adolescente um assento na Gewandhaus de Leipzig, uma das orquestras mais importantes orquestras do mundo.

E o que dizer da quantidade de músicos brasileiros passaram ilesos pelos grandes editorais tupiniquins mesmo quando ocuparam lugar em palcos importantes, tal como o Carnegie Hall de Nova York (o "Oscar" dos teatros de todo mundo...).

É mesma lenga-lenga. Em breve talvez o próprio Jornal Nacional faça uma matéria sobre como a músicos clássicos brasileiros são desvalorizados em sua terra natal, obtendo reconhecimento apenas no exterior. Eles bem que poderiam utilizar uma de suas "não-reportagens" para ilustrar este fato.

09 junho 2008

Antes ir para o céu, Sekeff deu sua última aula

Hoje faz uma semana que toda uma geração de músicos passaram a se sentir órfãos. Na madrugada da última segunda-feira falecia Maria de Lourdes Sekeff Zampronha (1934-2008), ou simplesmente Sekeff, como era carinhosamente chamada por seus alunos e colegas.

Mais do que professora, Sekeff foi uma mulher de atitude, tendo idealizado e realizado diversos eventos e empreitadas acadêmico-musicais ao longo de sua vida. Mais que professora, foi uma mãezona, sempre a chamar seus pupilos com seu inesquecível "meus filhos".

Mas dentre tantas coisas a se falar de uma pessoa como a Sekeff, como aluno fui testemunha do carinho e de seu real comprometimento com a formação de seus aprendizes, além da honestidade e boa-vontade com que realizou sua carreira acadêmica.

Conquistou muito respeito e admiração daqueles que com ela conviveram, o que ficou demonstrado em seu velório, na capela do Instituto de Artes de Unesp. Foi uma bela homenagem, a altura de uma musicista como a Sekeff, ao som do órgão de tubos da escola acompanhado por uma pequena multidão de colegas e alunos. Foi, na prática, a última atividade do IA-Unesp no Ipiranga, pois em breve ele passará a operar em um novo prédio.

Mais simbólico impossível, e de fato fiquei com a impressão de que um ciclo se fechava. Novas portas então se abrem, novos caminhos devem ser trilhado e novos desafios vencidos. Porém, sem jamais perder de vista os ensinamentos de mestres como a Sekeff.

Assim, antes de ir para o céu, a professora Sekeff deu sua última aula: de que a vida do músico nunca acaba ao término do último acorde, pois tão importante quanto uma apresentação, é o quanto sua música fica reverberando nas almas daqueles que foram por ela tocadas.