Na carreira de um grande intérprete não é algo incomum que sua figura e arte fiquem associadas a uma obra específica. Entre os instrumentistas e regentes é mais comum que esta associação seja feita com um compositor em específico: Mahler é com Abbado, Rachmaninov é com Horowitz, e assim por diante.
No canto operístico, por sua sua vez, esta associação ocorre não apenas com um dado compositor, mas freqüentemente com uma personagem em específico. Muitos são os fatores que conduzem a esta associação. Registro correto, talento musical, competência dramática e carisma são, sem dúvidas, elementos fundamentais. Mas na verdade não há uma fórmula que explique exatamente o porquê de algumas vozes parecerem criadas para aquela personagem. Há um "Q" a mais que - Deo gratias - reside no intangível analítico.
A estréia que o Theatro Municipal de São Paulo realizou de sua nova montagem de "Madama Butterfly", de Giacomo Puccini (1858-1924), foi apenas mais um dos capítulos que consagram a relação da soprano Eiko Senda com a gueixa trágica Cio-Cio-San. Ainda que o fato da cantora ser japonesa possa ser um fator de relevância, a verdade é que a mágica simbiose entre Eiko e a personagem se explica justamente por este "Q" a mais, algo além do estereótipo étnico-visual ao qual soma-se tudo aquilo que uma grande cantora deve ter (registro correto, talento musical, competência dramática, carisma, etc.).
Numa grande noite, na qual a "imperatriz" Eiko emocionou seu súditos, foi também notável o desempenho de alguns de seus companheiros de palco, em especial a mezzo Silvia Tessuto (Suzuki) e o baixo-barítono Lício Bruno (Sharpless). Ainda que com aparições pontuais, vale também ressaltar o trabalho de Sergio Weintraub (Goro), Pepes do Valle (Bonzo) e Jang Ho Joo (Yamadori), que juntos consolidaram um elenco vocal e cenicamente competentes.
No final das contas, coube ao tenor inglês Paul Charles Clarke conferir ao personagem Pinkerton uma dupla função de "vilão". Não que o cantor seja destituído de um sarcasmo cênico tão apropriado para o personagem, mas o fato é que seu volume vocal mostrou-se aquém do exigido, sendo freqüentemente eclipsado quando em ação com outros cantores.
Nesta nova montagem o diretor cênico Jorge Takla se propôs realizar uma "Madama Butterfly" abstrata (leia entrevista abaixo), que teve na cenografia de Tomie Othake seu ponto de apoio que, no entanto, pendeu mais para o meramente funcional do que para o visualmente inspirado. Posto isto, a direção de movimentos de Susana Yamauchi revelou-se fundamental para a fluidez cênica do espetáculo, aliada à laboriosa iluminação do próprio Takla, um engenhoso itinerário de cores que tingiu o palco do Municipal ao longo da heterogênea paleta de sentimentos puccinianas.
Assim, as pontuais projeções de bambuzais e da bandeira dos EUA mostram-se não apenas dispensáveis, mas de certa forma, contraditórias com a proposta geral. Mas mais dispensável foi a representação em forma de "árvore humana" da cerejeira do quintal de Cio-Cio-San e o kitsch bailado do segundo ato.
Sob a regência de Jamil Maluf, o Coral Lírico e a Orquestra Experimental de Repertório cumpriram com eficiência suas funções, e há de se salientar que não são poucas as armadilhas que a escrita de Puccini reserva aos heróicos soldados do fosso da orquestra.
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Mas voltemos a Eiko Senda. Se de um lado ser eternizada com uma personagem em específico (ainda mais se tratando de Cio-Cio-San) é um honra a poucos concedida, como toda dádiva ela pode facilmente ser convertida em maldição. Então, em tempo, é bom lembrar que Eiko não é Cio-Cio-San. Seu talento vai além de qualquer kimono que ela possa por ventura portar, e mesmo o público brasileiro já teve (e, espera-se, terá) diversas oportunidades de conferi-la em diferentes papéis, desempenhados com iguais esmero e musicalidade.
Foto: Eiko Senda (divulgação TMSP).
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