27 março 2008

O perpétuo desafio da novidade

Na abertura de mais uma temporada, a Banda Sinfônica dá prosseguimento ao seu desafio cotidiano de conciliar tradição e modernidade numa cidade ainda surda às novas idéias.

Quarta-feira passada a Banda Sinfônica (corpo estável do Estado de São Paulo, integrante do complexo Centro Tom Jobim) deu início a sua série de assinaturas 2008 com um programa que, simbolicamente, reflete às peculiaridades inerentes a este grupo sinfônico (para saber mais das diferenças entre uma banda e uma orquestra sinfônica, visite o site do conjunto).

Antigas relações profissionais que este que vos escreve um dia manteve com o grupo me inviabilizaram de abordá-la criticamente, seja no blog, seja na Gazeta Mercantil. Razões éticas e pessoais naturalmente estariam envolvidas e, conscientemente, ainda não conto com a isenção ideal para falar desta orquestra com a qual aprendi e realizei algumas experiências musicais. Então, leitor, perdoe-me por quaisquer problemas que este texto possa transparecer. Mas feito o alerta, vamos ao que interessa.

Neste concerto de abertura, regido por Abel Rocha, o repertório tangenciou diversas tendências e gostos musicais. Do estupendo modernismo de Messiaen ao simpático academicismo do jovem Puccini, este programa foi caracterizado pela convivência de opostos. Aliás, esta é uma característica própria do grupo, e cabe ao ouvido de cada um decidir se tal convivência é ou não harmoniosa.

O concerto iniciou-se com a "Abertura sobre Ostinato", de André Mehmari, que desde 2007 é compositor em residente do grupo (ação que, no Brasil, apenas a Banda faz questão de manter). Peça sem maiores pretensões, e certamente não representativa do trabalho que o compositor desenvolve com o grupo, o "Ostinato" acabou, por fim, limitando-se à função de prólogo.

Mas, inevitavelmente, todas as atenções da noite estavam voltadas para "Oiseaux Exotiques", de Olivier Messiaen. Escrita para piano solo e pequeno grupo de sopros e percussão, a peça continua a surpreender por sua ousada sonoridade, apesar de ter sido composta há mais de meio século. Tour de force rítmico para o conjunto e para o solista, foi ainda mais admirável a competência com a qual o pianista Jean Louis Steuerman (que ano passado já tinha enfrentado com a Banda o "Concerto" de Stravinsky) enfrentou intrincados seu solos. Pena mesmo a platéia não ter sido insistente o suficiente para garantir um bis deste singular pianista.

O interessante de um concerto de banda sinfônica é que, por se tratar de um agrupamento relativamente recente na história da música, parte de seu repertório constitui de transcrições de obras originalmente escritas para orquestras tradicionais, tal como é o caso do "Prelúdio Sinfônico em Lá Maior", de Giacomo Puccini, que na feliz transcrição de Ton van Grevenbroek adquiriu matizes que conferiram um novo colorido à obra.

Aliás, um novo colorido foi certamente a impressão que o compositor Ronaldo Miranda deve ter sentido ao re-ouvir sua obra "Suíte Tropical". Composta sob encomenda da Banda nos primórdios do grupo, sua reapresentação incorporou não apenas uma série de correções à partitura original mas, sobretudo, encontrou na atual Banda um grupo sonoramente mais coeso, afinado, capaz de lidar com os mais diferentes desafios musicais.

Resta agora à Banda lidar um outro tipo de desafio, isto é, o da resistência do grande público clássico não apenas à palavra "banda", mas principalmente a se propor a ouvir outras coisas, não necessariamente "novas", mas, no mínimo, "diferentes". Et vive la différence!

09 março 2008

Temporada 2008: o começo em diferentes propostas e novos caminhos

Percorrer novos caminhos (literal ou metaforicamente) para dar continuidade ao sonho do deslumbre musical.

Como é de conhecimento de todos, a temporada de concertos brasileira começa na prática, neste mês de março, apesar de alguns poucos eventos servirem como um pequeno refresco para a estiagem musical que nos aflige até que os calores do carnaval passem.

Para quem está sediado na capital paulistana, é natural que o início dos concertos da Osesp funcione como marco de uma nova safra de música. E, neste sentido, este concerto de abertura não poderia ser mais simbólico, ao programar a estupenda Sinfonia No. 2, “Ressurreição”, de Gustav Mahler. Simbólico pela própria idéia de ressureição, renovação, reinício e ciclicidade que não apenas a Sinfonia No. 2 de Mahler sugere, mas toda sua obra. Simbólica porque, nove anos depois de sua inauguração, a Sala São Paulo volta a ser o palco desta majestosa obra. Simbólica porque a própria orquestra segue seu rumo e ciclos, preparando-se para mais uma temporada.

Muitas coisas mudaram e passaram pela orquestra de John Neschling desde então. Se anteriormente o “Projeto Osesp” tinha lá sua fragilidade, hoje ele detém considerável robustez a partir da blindagem política realizada pelo corpo que a gerencia institucionalmente (afinal, ter um ex-presidente da República como seu presidente e protetor e um verdadeiro corpo ministerial como seus guardiões é algo que se mostrou de suma relevância nos últimos tempos). Teria a nau osespiana resistido a tamanhas intempéries sem esta blindagem?

Atualmente trata-se de uma orquestra não só mais madura, com significativa melhoria de sonoridade em todos seus naipes (apesar de deslizes eventuais), mas também uma orquestra mais brasileira. Anos atrás talvez fosse mais fácil fazer um ensaio em russo do que em português. Hoje, os russos se naturalizaram e mais brasileiros integram seu efetivo.

É importante notar que “na outra Ressureição”, de anos atrás, muitos dos músicos que hoje estão nas estantes da Osesp estavam em sua platéia (ou na portaria procurando por um ingresso sobrando). Ajustes a fazer sempre existirão, e caberá às forças envolvidas na base de sustentação da orquestra (maestro, músicos, patrocinadores, público, etc.) planejar a trajetória dos próximos anos.

Mas e o concerto da “Ressurreição”? Bem, as críticas já pipocaram aqui e acolá imprensa afora. Peça maravilhosa, corais (Sinfônica e Paulistano) muito bem preparados, Nathalie Stutzmann talvez melhor do que nunca, Heidi Murphy como uma voz que se deseja ouvir mais vezes por aqui, deslizes nos metais e ótima sonoridade de todo o conjunto orquestral. Neschling, mais uma vez, se saindo muito bem à frente de seus vienenses do Romantismo Tardio (uma já declarada predileção sua).

Mas quando se testemunha a constância de um bom patamar de interpretação musical em meio a um ambiente musical heterogêneo como o brasileiro, o desafio da crítica é, por um lado, se renovar na abordagem dos grandes espetáculos e, por outro, estabelecer uma nova dinâmica para a numerosa gama de espetáculos à nossa disposição.

Pois bem, desafio topado. Se na quinta-feira a idéia foi a pompa e circunstância da Sala São Paulo, com uma excelente orquestra, elenco internacional e uma obra sinfônica de enormes proporções, para o último sábado a proposta era algo diferente.

Vinhedo, 70km da capital paulista. Um mosteiro beneditino em meio ao frescor da mata interiorana, ao invés da sala de concerto na incandescente Cracolância. Ao invés de Mahler, Haydn. Da Ressureição à morte, Daquele que iria ressurgir no terceiro dia.

Tratou-se do início da temporada da série Música no Mosteiro, ocasião na qual o cravista Edmundo Hora (com a participação do tenor Sidnei Alferes) inaugurou seu novo fortepiano (instrumento que precedeu o piano moderno) com a emocionante “As sete últimas palavras de nosso Salvador na Cruz”, que Joseph Haydn compôs para o ofício das trevas na catedral de Cádiz.

Rumo ao interior!, cheguei a escrever em meu depoimento na edição da Revista Concerto passada (Jan/Fev 2008). E este rumo pode lhe oferecer gratas surpresas, como o som único de um instrumento, tal como é o caso do fortepiano e toda a magia de presenciar uma igreja em plenas trevas, iluminada apenas pelo clarão dos acordes haydnianos.

Renovar é preciso e, além daquilo o que é “líquido e certo”, é necessário irmos além. Nem sempre precisamos percorrer alguns quilômetros sobre a estrada escura para nos depararmos com uma grata surpresa, pois não raro a novidade está aí, do ladinho de nós.


04 março 2008

Beethoven, alemão gordo e cervejeiro

Apesar de gostar de música clássica, o escritor Charles Bukowski não perdoava ninguém.

Anos atrás, em meu début na mídia impressa com o artigo "Jovens Compositores no Brasil" (Revista Concerto, No. 81, Jan/Fev 2003), citei uma passagem para mim muito significativa do escritor Charles Bukowski. "Jamais se é um escritor: a gente tem de se tornar um toda vez que escreve". Apenas quem diariamente lida com a criatividade e a inventividade pode saber o que uma frase como esta significa, e no momento Buk resumiu todo um sentimento que encontrei ressonância em muitos outros colegas.

Mas a questão é quem diabos é Charles Bukowski (ou Buk, para os íntimos)?

Nascido em 1920 em Andernach, na Alemanha, aos três anos mudou-se com sua família para os Estados Unidos, onde viria conhecer o lado nada glamouroso do American way of life (que o matou em 1994). Empregos indigentes, facínoras, prostitutas, pensões baratas, porres e brigas são temas nada agradáveis, mas que uma vez presente no dia-a-dia de Bukowski, farão parte de sua prosa e poesia.

Com vários de seus livros traduzidos para o português (e editados no Brasil), é constante a referência a compositores e à música clássica em sua cáustica escrita. Num mundo miserável material e espiritualmente, a música é a única chama capaz de clarear, um pouco, a densa escuridão das trevas cotidiana.

Mas se engana quem achar que Bukowski trata a música clássica como algo sagrado. Ela é apenas um elemento bem-vindo, sobre o qual talvez exista algo mais elevado a se pensar, mas que a ressaca impede de desenvolver. Em Bukowski os grandes compositores são freqüentemente reduzidos à meras caricaturas.

No livro de poemas "The days run away like wild horses over the hills" (Ecco, 1969), Buk faz diversas referências à música e à alguns compositores, em poemas como "a night of Mozart", "to hell with Robert Schumann" e o non-sense (e divertido) "L. Beethoven, half-back", que segue abaixo numa tradução feita especialmente para celebrar o outro lado da outra música. Have fun!

L. Beethoven, half-back*
por Chales Bukowski
(trad. Leonardo Martinelli)

ele apareceu do meio do time;
Ludwig V. Beethoven, bloqueando
o meio de campo. ele estava realmente
estragado. mas ele bebe cerveja
e toca piano a noite toda.
Schiller, seu aloprado, ele
disse. deixe as mulheres em paz.
as mulheres serão sempre as
mesmas. não esquenta, quando você
precisar de uma, ela estará lá.

e Tchaikovsky, ele disse,
tome algumas vitaminas. eu não
ligo que você é uma bicha:
apenas fique longe
de mim. este é o problema
com todos vocês, caras:
vocês são muito
pálidos!

eu tomei um encontrão do G. B. Shaw
e caí perto da linha final;
Beethoven tirou do lance 3 caras,
e quando eu passei
ele disse, eu descolei
duas minas para hoje de noite
não machuque
nada
que você vá precisar
mais tarde...

Eu disparei no campo
cruzando as jardas
como um maluco. B. estava
estudando harmonia, mas
eu duvido se ele consegue
mesmo
fazer isto. ele é apenas
um alemão
gordo e cervejeiro

* Todo o poema está ambientado numa partida de futebol americano. "Half-back" é o nome da posição do jogador que fica na frete dos "fullbacks" e atrás dos "forwards". Poderia ser traduzido como "meio-campo", mas preferi manter o original em inglês.