24 dezembro 2007

Les musiciens / Os músicos

O que é ser músico? Como é a vida de um músico? Como é o cotidiano de um músico? Qual é essência do músico?

Não, caro leitor, não ousarei sequer a tentar a responder estas perguntas. Não só por pura incompetência, mas por, particularmente, não ver o menor valor em qualquer resposta que se proponha objetiva.

E subjetivamente?

Bem, aí é outra história. Também nesse caso me falta competência, mas sobra vontade de tecer algumas linhas conscientemente irresponsáveis. Mas quaisquer palavras que por ventura eu venha a discorrer sobre "os músicos" serão pequenas frente à grandeza com a qual o ilustrador Jean-Jacques Sempé o faz por meio de imagens em sua série "Les musiciens", comercialmente disponíveis e forma de livro ou, graficamente muito melhor, em uma caixa de cartões-postais que você não irá querer enviar a ninguém, simplesmente porque eles são muito bonitos.

Sempé é mais conhecido no Brasil pelas ilustrações que fez para a série "Le Petit Nicolas", em parceria com René Goscinny (os mesmo das aventuras de Asterix). Mas recentemente o público brasuca tem se deparado com suas elegantes aquarelas na capa de duas edições da Revista Piauí.

Quando se debruça sobre os profissionais e amadores da arte dos sons (ainda continua valendo esta definição de música?), Sempé nos proporciona um olhar que vai muito além da mera caricatura ou do simples retratismo. Por meio suas pinçeladas o ilustrador confere diversas dimensões e facetas não apenas ao músico, mas ao seu cotidiano, às suas desventuras, às suas delícias, ao instante único e irreversível que é cada apresentação.

As perguntas acima continuarão sem resposta (ainda bem!). Mas veja só o que só Sempé viu.

* O agrupamento temático abaixo é uma livre interpretação de quem vos escreve (o Sempé não tem nada a ver com isso). Clique em cima da imagem para ampliá-la.


Uma vida em solitude


Música à janela


Travessia


A sólida pequenez no grande vazio





O retrato do indivíduo enquanto músico


19 dezembro 2007

Muito além do Jingle Bells

Descubra o surpreendente tesouro musical baseado na temática natalina.

Chegamos ao final de 2005, e tal como acontece a cada ano, as cidades com seus códigos mostram sinais evidentes de que há algo diferente no ar: luzes enfeitam árvores e avenidas, casas ganham uma decoração especial e cresce nas crianças uma gostosa sensação de ansiedade. Bem, por outro lado, há também filas para os estacionamentos dos shoppings, lojas caoticamente lotadas e uma interminável lista de preparativos que nem sempre está de acordo com a conta bancária (mas isto já é uma outra história...).

É Natal, e Natal é sinônimo de Papai-Noel, pinheirinho enfeitado e – como toda festa que se preze – música: “Noite feliz”, “Batem os sinos”, “Adeste fidelis” e mesmo o jingle publicitário de uma empresa de aviação estão sempre entre os grandes hits do Natal brasileiro.

Porém, por mais que os meios de comunicação áudios-visuais insistam neste pequeno repertório, é bom saber que a música natalina vai muito além do Jingle Bells e das famigeradas melodias tocadas na harpa, tão utilizadas como música de fundo pelos grandes lojistas nesta época do ano.

Desde que o Natal foi “inventado”, o repertório musical a ele dedicado pode ser visto como um pequeno panorama do desenvolvimento dos gêneros musicais praticados no ocidente. Importantes compositores clássicos escrevam obras para ocasiões natalinas, e mesmo no século XX, com o início da era da música popular para consumo em massa, muitas bandas e pop stars não resistiram ao apelo do bom velhinho.

Aperte o cinto de seu trenó e embarque nesta viagem musical.

O natal e suas origens

Para entender o que ocorreu com o repertório natalino através dos séculos é importante saber como esta festa tipicamente cristã surpreendentemente começou.

O Natal só foi incorporado ao calendário da Igreja durante o papado de Júlio I (entre os anos 337-352), ocasião em que se decidiu programar para o dia 25 de dezembro a comemoração do nascimento de Jesus Cristo.

Na verdade, esta data corresponde exatamente com o solstício de inverno romano, dia estabelecido no ano 274 pelo imperador romano Aureliano como a data para a celebração do Natalis Solis (“nascimento do sol” em latim), isto é, o nascimento de Mitras, o deus do sol.

Apesar de no século IV em boa parte do Europa a consolidação do cristianismo ser uma realidade, esta festividade “pagã” continuou a ser praticada pela população sem que o poder já estatal da Igreja pudesse efetivamente fazer algo para detê-lo. Assim, a união entre esta festividade romana com o aniversário de Cristo resultou nesta festa sincrética que viria a se tornar a principal comemoração da cristandade.

Os primeiros exemplos musicais para esta nova festividade cristã, destinaram-se para a sua respectiva liturgia (isto é, a cerimônia religiosa realizada dentro do templo). Anos mais tarde esta cerimônia ficaria conhecida como “Missa do Galo”, uma referência ao pássaro que anuncia o nascimento do novo dia e a concretização da profecia sobre a vinda do Messias.

Nos primórdios da música natalina, o estilo empregado era muito próximo ao do “canto gregoriano”, que é ainda a forma de cantar característica dos monges beneditinos da atualidade.

Entretanto, o aspecto sóbrio deste estilo musical aliado a pouca compreensibilidade do texto cantado em latim fez com que um outro repertório, cantado nas festividades fora do templo, fosse gradualmente se formando na população que circundavam estes templos, dando o passo decisivo para o desenvolvimento da tradição musical natalina.

A celebração fora do templo

Na medida em que, na Idade Média, era vedado o uso de material não litúrgico dentro do templo, foi uma conseqüência natural a criação de um repertório natalino mais alegre destinado às celebrações feitas ao ar livre ou em locais não sacros. Ao mesmo tempo, esta temática tornou-se mais acessível à população, tendo em vista que as canções eram também cantadas em vernáculo (isto é, o idioma de fato falado em uma dada localidade) e não só em latim.

Na França, desde o século IX, há registros de canções populares criadas para o Natal, conhecidas como noëls. Tal como tudo ao que se refere às práticas musicais antigas, ainda é incerta a ocasião em que esta música era praticada. Os estudos musicológicos indicam várias direções: essas canções podem tanto ter sido usadas em procissões como em grandes cerimoniais e banquetes feudais. É também muito provável que estas canções eram utilizadas domesticamente pela população e há mesmo indícios que algumas dessas canções tenham sido cantadas dentro do templo, porém em ocasiões não oficiais.

A tradição das noëls se arraigou de tal forma na cultura musical francesa que ainda no século XVIII era praticado um gênero derivado, as noëls pour orgue, isto é, peças sem parte vocal para serem tocadas apenas ao órgão de tubos, muito comuns nas igrejas da época. Nas noëls pour orgue o organista escolhia algum tema natalino famoso, e a partir de sua melodia, tecia uma série de improvisações que faziam sucesso junto ao público. Algumas destas improvisações foram transcritas em partitura e assim puderam chegar ao nosso conhecimento.

Muitas das primeiras melodias natalinas foram criadas para a música incidental presente nas representações teatrais medievais sobre passagens do Novo e do Antigo Testamento. Sabe-se que nestes espetáculos, hoje em dia designados como Dramas Medievais, fazia-se uso abundante de música para ilustrar temas caros à cristandade, tais como a Anunciação, a viagem dos Três Reis Magos e, é claro, o próprio nascimento de Cristo.

Assim, já em finais da Idade Média, a música natalina de cunho não litúrgico já estava amplamente difundida por toda Europa. Porém, é da Inglaterra que vem o mais antigo exemplo de tradição natalina ainda presente nos dias de hoje: são canções conhecidas como carols.

Natal globalizado

“Jingle Bells” (ou “Batem os sinos”), “We wish you a Merry Christmas”, “Holy Night” (“Noite Feliz”), “White Christmas” (“Natal Branco”) e uma infinidade de outras canções mundialmente conhecidas têm como raiz a tradição das carols inglesas.

Originada de uma forma musical medieval francesa – a carole – em seus primórdios no século XV a carol era um gênero de canção sacra utilizada para diversas festividades cristãs, e só posteriormente tornou-se sinônimo de música natalina. Esta manifestação cultural britânica foi herdada pelos norte-americanos que, a partir da consolidação de seu “império”, difundiu as carols para os quatro cantos do mundo, tornando-a um gênero musical globalizado (se você ainda não se localizou, sabe aquela famosa cena de um coral cantando debaixo da neve que você certamente já viu em algum filme americano? Pois então, eles estão cantando uma carol).

Em outras terras as carols ganharam versões nos idiomas locais (tal como aconteceu aqui no Brasil), e sua simplicidade musical – construída a partir de melodias fáceis de memorizar – revelou-se propícia para incontáveis versões em todos os gêneros e ritmos musicais imagináveis. De versões com instrumentos africanos às batidas do rock este tipo de música natalina ainda se mostra de uma versatilidade a toda prova, usada e abusada nos jingles publicitários que pipocam no rádio e na TV nesta época do ano.

No que tange ao legítimo rock’n roll, valer lembrar que a imortal banda de Liverpool gravou nada menos do que sete “Beatles’ Christmas Album”, o que não deixar de ser mais uma prova de que a música natalina há muito tempo se emancipou da temática religiosa para ganhar contornos de feriado laico (e, dependendo do ponto vista, retornando às suas raízes pagãs...).

Música e espiritualidade

Porém, antes de se mercantilizar no século XX, o repertório musical natalino foi um poderoso meio de expressão da devoção do cristão ao nascimento de seu Salvador. Se hoje em dia a música natalina está diretamente associada à imagem do Papai-Noel, durante o Renascimento e o Barroco ela pode ser associada às inúmeras representações da “Madonna” (isto é, a Virgem Maria com o Menino Jesus no colo) que nos foram herdadas dos períodos em questão.

Durante o Renascimento o motete (forma coral por vezes acompanhada de instrumentos musicais) foi o principal meio de realização do repertório natalino. Alguns dos mais belos exemplos foram escritos pelo compositor italiano Giovanni Gabrieli (1555-1612) que compôs para a Catedral de São Marcos de Veneza (então uma das mais ricas do ocidente) magníficos motetos natalinos como “O magnum mysterium” e “Salvator noster”.

Aluno de Gabrieli, o alemão Heinrich Schütz (1585-1672) escreveu em forma de oratório (uma espécie de ópera, porém sem encenação) a obra “Historia der Geburt Jesu Christi” (ou “História do Nascimento de Jesus Cristo”) dando um passo decisivo para a consolidação da temática natalina no repertório musical luterano.

Aliás, é da tradição luterana que advém o exemplo de música natalina clássica mais tocada na atualidade, isto é, o “Weinachts-Oratorium” (ou “Oratório de Natal”) de Johann Sebastian Bach (1735-1782).

Apesar de ser muito comum a apresentação integral deste oratório em uma única seção, ele foi composto como parte de uma celebração religiosa que se desenvolvia ao longo de vários dias. Divido em seis cantatas, as três primeiras eram destinadas para serem apresentadas durante os três dias do Festival de Natal. Uma outra se destinava para o dia de ano-novo, outra para o primeiro domingo do novo ano e uma última para a o dia da Epifania, isto é, o dia do batismo de Cristo.

Seja em forma de concerto ou integrado a um cotidiano religioso, a beleza do oratório de Bach transcende os dogmas religiosos e freqüentemente é apresentado em templos não luteranos, por fim levando a cabo uma das principais mensagens do Natal que é a integração entre as pessoas.

Assim, neste Natal, independentemente de qual fé cristã se pertença – e mesmo independentemente de fé no cristianismo em si – desperte-se para a beleza e riqueza do fantástico mundo sonoro que se criou em torno da temática natalina. Desligue a TV e seus tediosos programas natalinos (que até o último instante tentarão vender mais alguma coisa para você) e ponha um CD especial ou mesmo ligue em uma das diversas rádios ditas “clássicas” existentes no Brasil para dar uma dimensão muito mais bela a esta época tão especial. Abra seus ouvidos, para então abrir seu coração. E feliz Natal!

Alguns CDs e Rádios on-line recomendados

- http://www.tvcultura.com.br/radiofm/
- http://www.radiomec.com.br/fm/

- “Gregorian Chants, Christmas Chants” canto gregoriano por diversos coros monásticos europeus (Milan, 35668).
- “Chantez Noël” pelo Atlanta Singers regido David Brensinger (ACA Digital, CM 20047)
- “Christmas Carols & Motets” pelo The Tallis Scholars regido Peter Phillips (Gimell, CDGIM 010)
- Heinrich Schütz, “The Christmas Story”, pelo The King’s Consort regido por Robert King (Hyperion, CDA 66398). Este álbum contém também motetes natalinos de Giovanni Gabrieli.
- Johann Sebastian Bach, “Weinachts-Oratorium” pela Academy for Ancient Music Berlin regida por René Jacobs (Harmonia Mundi, HMC 901630/1)

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

17 dezembro 2007

Natal nos trópicos

Apesar de todo aspecto invernal associado à imagem mundial do Natal – neve, pinheirinhos, trenós e toda uma sorte de objetos que ganham conotação alienígena aqui na região dos trópicos austrais – a tradição natalina encontrou no Brasil um terreno fértil em manifestações musicais, associadas aos mais diferentes contextos culturais.

As primeiras manifestações musicais natalinas ocorridas no Brasil datam entre os séculos XVI e XVI, devido à colonização portuguesa e ao trabalho evangelizador da Companhia de Jesus. Os primeiros exemplos de música natalina tiveram como base hábitos e tradições presentes na cultura européia. Isto significa que, com muita certeza, podemos concluir que o primeiro canto natalino entoado por aqui foi na forma de Canto Gregoriano.

Entretanto, os “autos” organizados pelos jesuítas (peças teatrais sacras apresentadas ao ar livre) tinham por costume misturar elementos europeus com indígenas, preservando a linguagem musical do Velho Mundo em textos cantados num dado idioma local. É possivelmente deste encontro que provém os primeiros exemplos musicais natalinos criados em terra brasilis.

Com a consolidação do cristianismo no Brasil, muitas das culturas regionalizadas - caracterizadas pelo sincretismo entre tradições africanas, indígenas e cristãs - incorporaram temas ligados ao nascimento de Jesus Cristo. A folia-de-reis é, certamente, a festa natalina "tipicamente brasileira" mais conhecida de nossa tradição folclórica, consistindo (grosso modo) em grupos de foliões que na época do Natal percorrem as ruas das cidadelas, vila e bairros. Fantasiados do Reis Magos e acompanhados por instrumentos musicais, os foliões vão cantando de porta em porta, diante de um presépio ou outra imagem sacra.

Apesar do forte laço com nossa terrinha, é bem provável que um tipo semelhante de festa natalina já tenha sido praticado na Europa (mais especificamente Portugal), sendo a festa brasileira uma perpetuação desta tradição que, por fim, acabou tomando rumos e características próprias.

Mesmo na música clássica houve tentativas de se abrasileirar o Natal com elementos regionais, tal como o álbum infantil “Aconteceu no Natal”. Composto por Hekel Tavares (1896-1969) em colaboração com o letrista e dramaturgo Joraci Camargo (1898-973), trata-se de uma obra singular na qual surge a curiosa figura de um Papai-Noel negro, já totalmente livre das influências nórdicas (ao menos na cor de sua pele).

Por vezes, o músico brasileiro se sentiu tão à vontade com o Natal que esta temática é freqüentemente relembrada nos bailes de carnaval pela marchinha “Boas festas”, de Assis Valente (1911-1958) que, ao contrário da regra, fala de um Natal dos miseráveis e sem presentes, no qual Papai-Noel “com certeza já morreu, ou então felicidade é brinquedo que não tem”.

Hoje em dia, em uma sociedade de consumo musical amplamente globalizada, muitas são as formas do brasileiro cantarolar o Natal. Desde algum hit internacional, até uma canção natalina interpretada por alguma apresentadora de TV, tudo pode fazer parte desta festa que sempre pendeu entre o sacro e secular.

Entretanto, deste imenso caldeirão, é notável a força com a qual o movimento de canto coral se revela nos abafados ares de dezembro. O canto coral natalino está fortemente arraigado na tradição musical brasileira (pode não aparecer na mídia, mas está), e diversos grupos amadores e profissionais em todo país dedicam parte considerável de seus ensaios a este repertório.

Desde o famigerado "coral da firma" até os poucos grupos profissionais em atividade no país, todos - em maior ou menor medida - dispendem boas horas de ensaios em músicas sobre o nascimento de Jesus.

Se nas lojas e shoppings centers o Natal aquece as coisas, na música ele ainda mostra que, apesar dos pesares, o Natal é ainda chama e labareda para muita lareira. Mesmo nos calores dos trópicos.


14 dezembro 2007

A aventura por novos sons, do passado e do presente

Com concerto que uniu a "música nova" de duas épocas diferentes, a Osesp encerra sua temporada 2007.

Foi uma ocasião rara, na qual, num mesmo concerto, o moderno e o tradicional foram postos lado a lado. Não como elementos antagônicos, mas sim como diferentes manifestações da vontade artística de propor coisas novas.

Em seu concerto de encerramento desta temporada a Osesp optou por reunir a "música nova" de diferentes época, estreando a obra "Crase", do brasileiro Flo Menezes, e levando mais uma vez ao palco a aclamada "Sinfonia No. 9", de Ludwig van Beethoven (cuja aceitação junto ao público brasileiro já foi alvo de uma matéria anterior deste blog).

Encomendada pela Osesp, com "Crase" a orquestra entra pela primeira vez no repertório nacional estilisticamente moderno, que de uma maneira geral, constitui um terreno sobre o qual o grupo ainda tateia (apesar de já proporcionado ótimos momentos com grandes "clássicos" do gênero, como Berio, Messiaen e Ligeti).

Na peça, Flo Menezes continua a desenvolver a poética sob a qual há tempos se debruça, trabalhando de forma intensa a dimensão espacial do som (dispondo músicos e alto-falantes em torno da sala de espetáculos) e a fusão entre sons acústicos e eletroacústico. O resultado foi uma obra trimbricamente bela, fluída, cuja a fruição só pode ser plena desde que imbuído da vontade de se deparar com o novo (como diria John Cage, num trocadinho intraduzível, "happy new ears!").

Em um contexto como este - precendendo uma obra com um apelo tão popular, tal como é o caso da "Nona" - um certo estranhamento por parte do público é mais do que esperado e natural. Mas não foi surpreendente constatar nos cafés, banheiros e lojinhas da Sala São Paulo a boa recepção que a música nova sempre pode ter, desde que corretamente e profissionalmente interpretada.

Neste quesito, palmas à regência de Victor Hugo Toro, regente assistente da Osesp, responsável por trazer à luz mais uma nova música nova.

Quando na segunda parte o titular John Neschling subiu ao palco para conduzir a "Nona", ocorreu aquilo que se espera de uma obra desta magnitude, interpretada por uma orquestra competente (apesar de alguns probleminhas aqui e acolá). Senso comum, a "Nona" é uma obra que, por mais que se ouça, sempre há algo novo a descobrir, desde que se queria ouví-la como música nova. As pessoas se emocionam. As pessoas choram. E assim as coisas caminham.

Happy new year and happy new ears. Every day.

10 dezembro 2007

O espírito em éter: Stockhausen in memoriam

Como muitos já sabem, semana passada morreu o compositor alemão Karlheinz Stockhausen (1928-2007). Os obiturários pulularam na imprensa mundo afora. Mas neste post não quero fazer nada jornalístico ou informativo, mas sim uma singela homenagem, de alguém que, com muito gosto, terá para com o mestre uma dívida que nunca será paga, isto é, o amor pela música moderna e pela ousadia musical.

Até cheguei a esboçar algumas palavras de como sua obra, figura e presença foram e são importantes para mim. Mas, no final das contas, o texto que o compositor Flo Menezes publicou no site Trópico faz muito mais do que eu poderia ter feito. Clique aqui para ler.

Abaixo, uma despedida bem-humorada em homenagem ao mestre.

"Quando foi a primeira vez que lhe avisaram que seu Mozart soa como Stockhausen?"


Álfred Shnittke: o compositor de todas as músicas

Figura pouco conhecida no Brasil, o compositor russo Álfred Shnittke ganha no país sua segunda biografia mundial.

Como toda tradição artística, a música clássica do século XX construiu um cânone musical próprio, isto é, obras tidas como “primas”, representativas das práticas e do pensamento de então. É em torno deste cânone que surge a figura do compositor, e quando falamos deste verdadeiro panteão na segunda metade do século passado, nomes como Olivier Messiaen, Luciano Berio, Luigi Nono, Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez são presenças mais que obrigatórias. Entretanto, este panteão está sempre de portas abertas, e nos últimos anos tem sido notável o crescimento da figura do compositor russo Álfred Shnittke (1934-1998).

Nascido e criado em meio ao frenesi dos anos de chumbo da ditadura stalinista, o papel de Shnittke é ainda ambíguo para historiografia da música contemporânea, na medida em que ela pende entre aspectos que escapam dos valores que celebraram outros compositores de sua geração. É neste sentido que o livro “Shnittke: música para todos os tempos”, de Marco Aurélio Scarpinella Bueno, mostra-se como recurso importante para uma melhor compreensão do compositor.

A ambigüidade da figura histórica de Shnittke reside principalmente em dois aspectos, quais sejam, o social e o estético.

A respeito de seu aspecto social, é comum entender sua obra enquanto símbolo de resistência à opressão soviética, tendo em vista que ela foi realizada em meio a um ambiente político extremamente hostil. Porém, ao contrário do compatriota Dmítri Shostakóvitch (1906-1975) – cuja obra é também símbolo de resistência artística, porém sem nunca refutar o valor dos ideais socialistas – Shnittke sequer se preocupou em manter as aparências, tendo inclusive relevado sua conversão ao cristianismo ainda sob o poder da censura estatal. Se hoje em dia algo assim pode até ser tomado como heróico, vale a pena notar que até meados da década de 1970 era muito forte a orientação esquerdista (e uma natural simpatia pela URSS) da tendência da intelligentsia ocidental.

Pelo outro lado, Shnittke se singularizou frente aos seus contemporâneos ao colocar o poliestilismo como cerne da linguagem musical contemporânea.

Quando o assunto é música na contemporaneidade é inevitável que se pergunte “de qual música estamos falando?”, pois, afinal, é notória a fragmentação ocorrida nas práticas musicais do ocidente a partir do início do século XX. Tal fragmentação é responsável não apenas pelos “ismos” que passam a povoar o universo clássico – tais como impressionismo, dodecafonismo, serialismos, etc. – mas também para a própria consolidação das atividades designadas como música popular.

Neste cenário, onde a heterogeneidade estilística impera soberana, a idéia de unidade estilística só faz sentido quando se fala de um compositor em específico. Não raro a questão torna-se pertinente apenas quando se trata de uma música em específico. Na verdadeira Babel musical que vivemos não há, necessariamente, um grande idioma dominador, mas sim dialetos os quais alguns parecem fazer mais “sucesso” que os outros.

Eis aí o principal diferencial da Shnittke, que com um “estômago antropofágico” muito peculiar, tudo absorve e utiliza como elemento de uma linguagem musical muito ampla, cujas fronteiras são demarcadas por questões de foro íntimo do compositor. Nestes termos, são as memórias musicais familiares, as preferências, os gostos e as lições tomadas na juventude os fatores determinantes para sua poética, e não a orientação (e por que não policiamento) de uma determinada escola. Em Shnittke o estilo musical não é fim, mas sim um meio para realização da música.

Muitos caracterizaram sua música como “pós-modernista” (nem sempre de forma elogiosa). Mas a verdade é que, se na aparência, a música de Shnittke pode soar pós-modernista, em sua essência ela se distância desta corrente, na medida em que em sua obra não é uma refutação ou alternativa do vanguardismo musical, mas sim um tipo raro e valioso de ousadia artística (característica bastante rara nos pós-modernistas).

É no esclarecimento destas e de outras questões que a biografia prepara por Scarpinella Bueno mostra-se enquanto ferramenta importante para uma melhor compreensão do compositor. Médico de formação, o autor empreendeu este trabalho a partir da fascinação sentida pela a obra de Shnittke, curiosamente iniciada a partir de uma percepção nada boa de sua música.

Exemplar na coleta de dados e nas informações oferecidas, o livro tropeça apenas em pequenos cacoetes, ao insistir, por exemplo, na palavra “criar” como sinônimo de estréia de uma obra. Em muitos lugares o ritmo de leitura poderia ter sido mais fluído se o autor tivesse optado por notas de roda-pé (por exemplo, quando mistura no corpo do texto suas preferências discográficas com dados biográficos do compositor). Aliás, as notas de roda-pé que deveriam ter sido utilizadas para referencializar uma quantidade significativa de citações. Uma rápida revisão do vocabulário técnico-musical mostra-se necessária.

Entretanto, estes problemas em nada diminuem a pertinência do livro, que se mostra como um acessível meio de se iniciar pelos caminhos e labirintos babilônicos que a obra Shnittke traz consigo, em quem sabe, por outros itinerários da música moderna.

Serviço:
“Shnittke: música para todos os tempos”, de Marco Aurélio Scarpinella Bueno
Algol Editora, 396 págs., R$ 57