28 outubro 2006

Mozart sob a luz da emoção

Orquestra “Les Musiciens du Louvre” conquista o público brasileiro em concerto memorável.

Aparentemente, o programa em si não trazia nada de excepcional: Mozart, as célebres sinfonias 40 e 41 e o balé final da ópera “Idomeneo” como introdução ao concerto. Trata-se de sinfonias que são em si excepcionais e que por décadas foram exaustivamente gravadas pelas mais diferentes orquestras e regentes. Tamanha repetição parece ter ocultado a cor e o brilho destas obras, então escondidas por detrás do verniz sintético de instrumentos musicais acusticamente “eficientes” e nos moderníssimos equipamentos dos estúdios de gravação.

E, de repente, foi como se uma névoa se dissipasse, deixando a paisagem mais nítida e clara.

Foi esta a experiência que o grupo “Les Musiciens du Louvre” proporcionou esta semana a sua audiência no encerramento da temporada da Sociedade de Cultura Artística. Fundada em 1982 por Marc Minkowski – seu atual regente e quem conduziu o grupo nesta que é sua primeira incursão no Brasil – a orquestra francesa está inserida dentro do segmento por vezes designado como performance histórica, que desde o início de século passado tem por meta o trabalho sobre um repertório anterior ao Romantismo por meio de instrumentos e técnicas de execução historicamente orientadas, isto é, condizentes com os recursos e conceitos existentes à época de sua criação.

O movimento da performance histórica tem uma trajetória própria, cheia de controvérsias e debates. Entretanto, uma de suas questões mais fundamentais é a fronteira entre “execução” e a “interpretação”. Isto é, até que ponto deve-se seguir supostas regras de execução para, então, lançar mão de idéias e gostos individualizados, necessariamente arbitrários e injustificáveis sob o idealismo no resgate da intenção original do compositor (como se isto fosse concretamente possível e mesmo relevante)?

Nestes termos, a beleza do concerto residiu justamente na transcendência da performance histórica à condição de interpretação musical: viva, idiossincrática e emocional.
De um lado, a importância de utilizar instrumentos históricos ficou evidente no re-equilíbrio da balança tímbrica orquestral, em especial, nos instrumentos de sopros de madeiras, que ora soaram mais sutis, ora imprimiram uma nova cor aos tuttis. Por sua vez, as cordas encontraram um delicado equilíbrio, fugindo tanto da lentidão paquidérmica das orquestras tradicionais como da sonoridade asséptica de certas execuções que se norteiam por critérios históricos.

Tudo isto possibilitou ao grupo uma agilidade que foi intensamente trabalhada por Minkowski. Regendo de cor, ele não apenas acelerou a velocidade geral dos diferentes movimentos, mas também brincou de forma inteligente e emocional com elas (vide sua estupenda interpretação do segundo movimento da sinfonia 41).

Às favas se aqui ou acolá uma trompa não atacava a nota de maneira precisa ou se a afinação do oboé parecia vacilante. Num ideal de música calcado pela visceralidade da experiência artística, minúcias como estas são apenas as pequenas imperfeições que toda perfeição deve, necessariamente, trazer consigo.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

O "problema" da ópera no Brasil

Estréias de espetáculos dão novo fôlego à produção cênica nacional.

Num mar que raramente está pra peixe, foi uma verdadeira bonança: em menos de um mês vimos estrear nada menos que três óperas compostas por compositores brasileiros e, fato de relevância, produzidas e apresentadas em solo nacional: no final de setembro estreou em São Paulo “A Tempestade”, de Ronaldo Miranda e, no Rio de Janeiro, “Kseni: a Estrangeira”, de Jocy de Oliveira (que fez este mês uma pequena temporada paulistana). Por fim, esta semana estreou no Theatro Municipal de São Paulo a ópera “Olga”, de Jorge Antunes, que poderá ainda ser conferida nas récitas de hoje e de domingo.

O bom comparecimento do público a estes espetáculos demonstra o quanto o gênero está vivo em nossa cultura musical e o quanto os nossos compositores são subestimados por produtores, diretores artísticos e espécies afins. Cada qual com seu estilo e proposta, os músicos brasileiros demonstram que têm muito a contribuir para ópera como um todo. À parte o valor intrínseco que cada uma destas obras trazem consigo, cabe neste momento tão especial analisar como os nossos compositores têm enfrentando o “problema” que é compor ópera em pleno século XXI.

Gênero cujos primórdios datam do início do século XVII, ao longo do tempo a ópera passou por transformações constantes, em parte explicadas pelos diferentes contextos sociais e ideais estéticos inerentes aos diversos períodos e estilos da história da música no ocidente.

No início do século XX, quando a própria tradição da música clássica se viu numa encruzilhada por conta do colapso do sistema tonal enquanto linguagem de vanguarda, a ópera, por sua vez, se encontrou numa situação igualmente instável. Frente ao novo estilo de vida cotidiano e aos diversos tipos de entretenimento eletrônico que gradualmente passaram a dominar a cena artística (incluso aí o cinema) haveria ainda lugar para esta forma tão antiga de narrativa musical?

A resposta dada por diversos compositores foi “sim”. Porém, esta afirmativa trazia consigo a necessidade de desenvolvimento da linguagem operística e a busca de um outro patamar de entendimento de espetáculo dramático-musical. Cabia, enfim, a cada compositor que se aventurasse pelas veredas da ópera dar sua contribuição para a resolução de seu “problema”, isto é, garantir que este gênero tradicional mantivesse seu interesse na contemporaneidade.

A necessidade do desenvolvimento da linguagem operística é o tema do pequeno artigo “Das Opernproblem” (literalmente, “O problema da ópera”), do compositor austríaco Alban Berg (1885-1935), que apesar de escrito em 1928, mantém sua pertinência e pode nos ajudar a entender o porquê da diversidade encontrada nas recentes produções brasileiras.

Quando questionado sobre o que pensava sobre o desenvolvimento da ópera, gênero ao qual legou as obras-primas “Wozzeck” e “Lulu”, Berg respondeu: “a mesma coisa que penso sobre todo o desenvolvimento nas artes: que um dia uma obra-prima apontada para o futuro será escrita e que somente então teremos base para falar de ‘desenvolvimento’ da ópera”. Porém, quais são os elementos que esta messiânica obra-prima deve trazer consigo? Ou em outras palavras, o que seria modernizar a escritura operística?

Berg não responde que elementos são estes, mas sabe muito bem quais não são: “O uso de mídias modernas – tais como o cinema, teatro musical, alto-falantes e jazz – garante apenas que tal obra seja moderna [no sentido cronológico]. Mas isto, na verdade, não pode ser considerado um avanço”.

De fato, o uso novos recursos tecnológicos e mediáticos foi presença marcante em “Olga” e “Kseni”. Mas, apesar disto, seu uso foi em si tradicional, seja no aspecto visual (enquanto simples cenografia virtual) seja no sonoro (enquanto amplificação e ambientação sonora). Mesmo em “Kseni”, na qual uma das cenas prevê o uso exclusivo do discurso musical eletroacústico, este recurso poderia ter sido explorado de forma mais plena, seja em sua dimensão sonora, seja em sua dimensão espacial.

Composta sob encomenda da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo (na ocasião, regida por Abel Rocha) “A Tempestade”, de Ronaldo Miranda, é, entre as três, a que mais se relaciona com a noção tradicional de ópera. Utilizando um tipo de escritura tonal (que em muito a aproximou dos famigerados musicals norte-americanos), seu elo com a tradição é também sustentado pela própria estruturação musical de seus números e pela linearidade de sua narrativa, construída a partir da peça homônima de Shakespeare. Apesar das restrições que as opções de Miranda possam suscitar à luz dos desenvolvimentos pelos quais a música já passou ao longo do século XX, é notável a fluidez de sua escritura com o canto lírico em português.

Aliás, a pouca ênfase no canto é um dos aspectos que mais chamam atenção nas demais produções.

Sob a regência de José Maria Florêncio, a estréia de “Olga” era um dos eventos líricos mais aguardados desta temporada brasileira de ópera. Com libreto de Gerson Valle, o compositor Jorge Antunes pôs em cena a história de vida da militante comunista Olga Benário (representada pela soprano Martha Herr) figura histórica que ganhou projeção nacional a partir da biografia de grandes sucessos literários e cinematográficos.

Mais do que uma ópera no sentido tradicional, a obra de Antunes se relaciona muito mais com o discurso teatral em si, no qual os números vocais surgem de forma apenas pontual. A partir disto, a partitura se aproxima muito mais com a prática da música incidental do que com a ópera propriamente dita. Isto ocorre por conta presença extensiva de diálogos e em recitativos rítmicos nos quais orquestra freqüentemente limita-se a dar um suporte sonoro à cena. Seria uma retomada do antigo ideal da ópera florentina do século XVII, na qual a palavra reinava absoluta sobre a música?

Esta ênfase dada palavra é também marcante em “Kseni”, cuja montagem foi dirigida cênico e musicalmente por sua compositora, Jocy de Oliveira. Das três óperas, “Kseni” é a obra que mais se distancia da noção clássica, na qual a narrativa linear em torno do mito de Medea dá lugar a reflexões sobre elementos simbólicos presentes na leitura deste mito grego. Desta forma, ao invés de teatro, o palco se metamorfoseia num altar dedicado a Medea, onde o músico desenvolve o papel de sacerdote e a ópera ganha dimensão de liturgia secular. Aqui o canto não é canção, mas sim um som ritualístico, acompanhado por um pequeno conjunto instrumental cuja escritura abusa de certos clichês comuns na música de vanguarda.

Mas com tamanha pluralidade artística, qual caminho escolher para levar adiante o desenvolvimento da ópera moderna. Mais uma vez, Berg responde: “Mas tem que sempre haver desenvolvimento? Não é suficiente a oportunidade de fazer uma boa música para um bom teatro ou, melhor ainda, fazer com que o bom teatro surja desta boa música?”. Resta esperar que no Brasil continue-se a dar oportunidades para estas questões continuem sendo feitas, mesmo que fiquemos sem repostas.

Fotos: 1) Fernando Portari e Rosana Lamosa em "A Tempestade"; 2) Martha Herr como "Olga" e 3) Sigune Von Osten em "Kseni".

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]