23 abril 2008

"(P)OPera-pastiche"

[Resenha da cobertura XII FAO, Manaus, 2008]

Em suntuosa produção do XII Festival Amazonas de Ópera, obra de ex-Pink Floyd é marcada por uma sucessão de equívocos

Foi a crônica de uma morte anunciada (que me permita Gabriel García Márquez esta pequena referência/deferência). Mesmo destituído de preconceitos, e pelo contrário, fazendo votos de que o previsível não ocorresse, por fim, não houve o que salvasse a ópera “Ça ira”. Nem todo empenho da produção. Nem toda beleza cênica e engenhosidade de movimentação. Nem todos os talentos musicais a serviços de Roger Waters foram suficientes para conferir valor a sua incursão na ópera. “Ça ira” tem apenas uma função, e esta foi muito bem cumprida: amplificar a repercussão mediática do festival, ou de qualquer outro evento que dela se utilize. No mais, a montagem manauara de “Ça ira” – dirigida por Caetano Vilela – serviu para reforçar aquilo que é senso comum, mas que é sempre salutar reforçar no ambiente naturalmente traiçoeiro da produção artística brasileira. Isto é, Manaus tem competência de sobra para concretizar projetos ambiciosos e cenicamente complexos.

Mas, afinal, quais são os problemas com a ópera de Waters?

Musicalmente pode até parecer que o problema está na presença de elementos da música popular num ambiente tradicionalmente clássico. Mas não. O problema não está na mistura, mas sim nas idéias musicais de Waters, em geral fracas e ingênuas, inclusive dentro das práticas de música popular. Mesmo recauchutado nos arranjos de Rick Wenworth (quem no final das contas pôs a mão na massa de verdade), era difícil atenuar a vocação para a muzak da música que Waters reservou para sua ópera. Em poucas palavras, faltou, ironicamente, rock’n roll em sua aventura pelas sendas líricas.

Em termos de libreto – elaborado por Étienne e Nadine Roda-Gil – a bobagem se multiplica. Dramaturgicamente “Ça ira” não é propriamente uma ópera, mas uma sucessão de situações cênicas que mais se assemelha à estrutura de um oratório (tal como ex-Beatles Paul McCartney faz em seu “Liverpool Oratorio”). Até aí sem problemas, não fosse o fato desta forma de discurso ter sido utilizada para oferecer uma visão extremamente simplista e piegas da Revolução Francesa. Aí o que era frágil desmorona de uma vez.

Com cantores de ópera desempenhando uma partitura não operística (aquém de suas possibilidades musicais) e em situações também não operísticas (aquém de suas obrigações como “ator”) tornam ainda mais relativa a apreciação de seus desempenhos. Deixa pra lá. Para eles o futuro certamente lhes reserva oportunidades melhores.

Desta forma, fica ainda mais preemente a importância do trabalho cênico do “Ça ira” manauara. Rico e luxuoso, com excelentes soluções cenográficas e belo figurino, foi sua parte visual que, por fim, conferiu ao espetáculo o ponto de atenção para o público. Neste sentido, a vertiginosidade da movimentação de palco elaborada por Vilela não deixa de ser um paralelo do que ocorre nos vídeos clipes modernos, que para fazerem o ouvinte abstrair da nulidade musical, fazem do aspecto visual o elemento de maior relevância. Então o ouvido cede lugar aos olhos, e a música torna-se um fenômeno visual, e então colocada em segundo plano. É o que, aparentemente, sempre ocorrerá com “Ça ira”.

Foto: Arlesson Sicsú

Todos os textos da cobertura XII Festival Amazonas de Ópera foram realizados em Manaus, a convite da direção do evento.

22 abril 2008

A queda do Walhala

[Crônica da cobertura XII FAO, Manaus, 2008]

O castelo-tumba da ópera manauara já não abriga mais os deuses da ópera, agora pouso dos mandarins chineses

Não deixa de ser esquisito, mas sim, no meio da floresta amazônica tem uma cidade, e no centro desta cidade tem um hotel chamado Taj Mahal. Fica ainda mais esquisito se lembrarmos que o célebre monumento indiano é o mausoléu que o imperador Shah Jahan edificou em memória de sua esposa favorita. Se o mausoléu é o lugar do repouso eterno, o Taj Mahal manauara, no entanto, é menos ambicioso, proporcionando aos seus hóspedes apenas o descanso efêmero dos mortais, zelados pelo “duty manager” Matuzalem, que por anos a fio jamais abandonou seu posto, apesar de nunca alguém tê-lo visto (ao menos nenhum outro nome foi lido na plaquinha abaixo). Eis um gerente que, de fato, é uma lenda.

Fundado em 1991 por Kishin J. Harjani (informação insistentemente colocada nas placas do lobby do hotel) o Taj Manaus, ops, o Taj Mahal foi por anos a casa temporária do verdadeiro pelotão que anualmente se põe a serviço do FAO. Junto com o Teatro Amazonas, tornou-se um lugar em si mítico ao longo destes anos de festival: se suas paredes falassem, elas nos diriam muito mais que uma análise dos portamentos e das coloraturas dos cantores que já se hospedaram nele.

Atualmente apenas a imprensa se hospeda nele. Antigo Walhala dos deuses da ópera manaura (o castelo da mitologia nórdico-germânica, presente no enredo do “Anel do Nibelungo”, de Wagner), o Taj Mahal foi preterido pelo conforto e a estrutura dos modernos hotéis de redes, mesmo que estes contem com a inconveniência de uns 20 minutos de carro de distância do Teatro Amazonas.

Mas tão mítico quanto o Taj Mahal é seu vizinho gastronômico, o restaurante e pizzaria Scarola (sic), que em momentos especialmente aborrecidos de sua clientela musical era momentaneamente batizado de chicória (afinal, mudando o nome da escarola, ela não fica mais tão gostosa). E para quem pensa que maestros, diretores e cantores se reúnem secretamente numa sala reservada no teatro para comemorar seus feitos artísticos, em muito se engana. O Scarola foi o palco de muitas celebrações, pois depois das ovações no teatro era da sacadinha do famigerado “bistrô” que os artistas recebiam os aplausos acalorados de seus colegas: Brunhilde, Otello, Wotan, Freia, Poranduba, Lady Macbeth, Siegfried, Desdêmona, Werther, Mime e toda uma infinidade de cantores-personagens foram calorosamente aplaudidos ao entrarem no Scarola, esquivando-se da fumaça da grelha estrategicamente colocada na entrada.

Mas os tempos são outros, e apesar dos deuses manauras estarem longe de seu crepúsculo (e espera-se que este lusco-fusco jamais chegue), sua antiga morada não mais lhe serve de abrigo. Mas quando um ninho é abandonado por um pássaro logo vem outro e ocupa seu lugar. Aos poucos o antigo Walhala manaura ganha ares de Cidade Proibida, com a chegada cada vez mais intensa dos mandarins do extremo oriente, tal como fica claro nesta foto tirada secretamente, com a porta entreaberta, de um cômodo escondido localizado no térreo...


21 abril 2008

Ariadne auf Manaus

[Resenha da cobertura XII FAO, Manaus, 2008]

Prólogo

Uma ópera dentro da ópera. Música que antes da ópera, não é música de ópera, mas música além-ópera. E dentro da ópera, abre-se a janela para uma outra sub-ópera. Cantores que, antes de cantar a ópera dentro da ópera, são um híbrido artístico, um “não-cantor-ator”. Confuso? Talvez, mas é esta complexidade estética que faz da ópera “Ariadne em Naxos”, de Richard Strauss, uma obra singular no repertório lírico mundial. Multireferencial por natureza, a obra encerra vários níveis metalingüísticos, inclusive do próprio compositor, Strauss, que se auto projeta no personagem Compositor. Será que tudo o que ouvimos é Strauss ou também há um “não-Strauss”, cuja música atende à demanda destes níveis metalingüísticos?

Seja lá qual for a resposta, o fato é que a encenação de “Ariadne” demanda um grande esforço criativo para enfatizar estes diferentes níveis narrativos, algo que a montagem do XII FAO de fato conseguiu concretizar, e que o público paulistano terá a oportunidade de conferir na temporada do Theatro Municipal, no mês de agosto.

Sob a direção cênica de Caetano Vilela (que também assina a concepção e a iluminação da montagem) a “Ariadne” de Manaus apostou no antagonismo visual para realçar o embate entre o artístico e o vulgar, entre o divino e mundano, auxiliados pelo fundamental trabalho de figurino de Olintho Malaquias e pelo cenário de Renato Theobaldo e Roberto Rolnik. Mas é importante notar que nem apenas de contrastes pautou-se a montagem de Vilela, tal como fica claro no dueto da segunda parte entre o personagem Tenor com a Primadonna, no qual o uso de cadeiras de rodas e muletas auxiliam o discurso do libreto de Hugo von Hofmannsthal.

Na parte musical, foi notável o desempenho da Amazonas Filarmônica, sob a fluída regência de Luiz Fernando Malheiro. Certamente trata-se de um conjunto com potenciais múltiplos, mas por ora parece evidente que o fosso do teatro é o lugar de onde advém o que eles fazem de melhor.

A Ópera

No que tange ao elenco vocal, a “Ariadne” manauara foi marcada por contrastes. De um lado, vozes inadequadas ao lado de desempenhos deslumbrantes. Neste sentido, deslumbramento é a palavra que melhor define o impacto da participação da soprano Celine Imbert, no papel do Compositor. Detentora de uma voz reconhecidamente bela, Celine também imprimiu ao seu personagem uma bem definida caracterização dramática.

Também muito boa foi a participação do tenor Geilson Santos, que bem dosou comicidade e musicalidade como o Professor de Dança. Da mesma forma foi bem desenvolvido o papel de Primadonna pela soprano Virginia Correa Dupuy, que desempenhou personagens diferentes a cada parte do espetáculo (isto é, a Primadonna antes e durante a “ópera” dentro da “Ariadne”), aliados a um desempenho vocal eficiente. E nada como um dia após o outro: Michael Hendrick enfim mostrou suas possibilidades musicais, além de suas virtudes cênicas, no papel do Tenor.

Dos conjuntos vocais, destaca-se a coesão tímbrica e dinâmica das cantoras Gabriela Pacce, Elaine Martorano e Edna d’Oliveira. Sejam ninfas, damas ou valquírias – não importa – com este grupo a beleza (latu sensu) estará sempre assegurada. Muito eficiente cenicamente, mas ainda por ter uma melhor presença dinâmica, foi a participação do conjunto masculino, integrado por Leonardo Pace, Thiago Soares, Lucas Debevec-Mayer e Flávio Leite, que travestidos de astros do rock, por fim também cativaram a platéia.

Se por um lado o elenco vocal mostrou-se majoritariamente belo, ou no mínimo muito eficiente, pelo outro seu calcanhar de Aquiles concentrou-se, numa perna, pelo Mestre de Música de Francisco Frias, e na outra, pela Zerbinetta de Rosana Schiavi, que por motivos diversos, não se mostraram adequados às exigências de seus personagens, conferindo-os mais uma “caricaturização” do que uma caracterização dramática.

A voz do diretor

Só o tempo dirá se Manaus inaugura uma nova fase da direção cênica operística brasileira, mas o fato é que neste ano o programa dos espetáculos traz como novidade um texto do diretor cênico com as intenções e idéias de seu trabalho, ao lado das notas do programa e da sinopse da história.

Numa época na qual a realização cênica é cada vez mais valorizada, a proposta não deixa de ser interessante, já que não raro as montagens podem chegar a um nível de abstração ou de referências não relacionadas à trama que, por vezes, fazem destes espetáculos verdadeiros enigmas ao grande público, que espera da crítica a “explicação” daquilo que se mostrou ininteligível.

No caso da “Ariadne” de Manaus, a conotação política reclamada por Vilela* mostra-se cenicamente tênue, quiçá dispensável. Mas mesmo assim, a possibilidade de tornar ainda mais pública estas intenções, estabelecendo um diálogo ainda mais forte com o público, revela-se algo promissor para o debate estético e a fruição artística das óperas.

* Poucas horas depois da publicação deste texto, o diretor Caetano Vilela publicou em seu blog uma resposta sobre as observações aqui realizadas. Clique aqui ou acesse http://caetanovilela.blogspot.com

20 abril 2008

O desafio mahleriano

[Resenha da cobertura XII FAO, Manaus, 2008]
Em obra na qual o equilíbrio entre a sutileza e o vigor é desafio supremo, fica-se na expectativa de melhor desempenho para a segunda récita.

Como já é tradicional no Festival Amazonas de Ópera (FAO) as apresentações das óperas programadas ao longo do evento são, por vezes, intermediadas por concertos líricos. Este é o caso da "Canção da Terra", de Gustav Mahler, levada ao palco neste último dia 19 (após as primeiras apresentações de "Ça ira" e "Ariadne auf Naxos"), e que será reapresentada no dia 23.

Acompanhados pela Amazonas Filarmônica, sob a regência de Luiz Fernando Malheiro, o famoso ciclo de lieder ("canções", em alemão) de Mahler foi materializado pelas vozes da mezzo Denise de Freitas e do tenor Michael Hendrick.

Obra de intensa carga sentimental, sua partitura reserva aos seus intépretes desafios de várias naturezas. Mas a mais proeminente talvez seja o estabelecimento de uma relação de equilíbrio entre a sutileza e o vigor nos mais diferentes níveis e relações, próprios da escritura por contrastes de Mahler. Neste sentido, este equilíbrio é algo que ainda precisa ser concretizado na interação das vozes com a orquestra, que não raro encobriu os cantores, em especial, o tenor na primeira canção ("Das Trinklied vom Jammer der Erde") e a mezzo na quarta ("Von der Schönheit").

Em termos de vozes, não deixou de ser irônico notar que elas tiveram melhor desempenho em seus "registros opostos", isto é, os agudo do tenor Hendrick de fato não se fizeram presente quando eles foram exigidos, e o grave da mezzo Denise foi justamente a região na qual sua voz tornou-se quase inaudita. Por outro lado, é notável o desempenho e a beleza da voz da cantora nas passagens agudas da peça.

Mas os problemas não se limitaram às vozes, e mesmo parte do efetivo orquestral terá o que trabalhar para a próxima récita da obra, em especial os instrumentos de sopros madeiras, que à parte seus regulares desempenhos enquanto solistas, como conjunto ainda buscam a afinação adequada. Mas como o mundo é feito de contrapartidas, foi notável a qualidade sonora dos naipes de cordas, em especial os violinos, com um timbre bonito e coeso.

19 abril 2008

Pelos ares, em busca do canto

[Crônica da cobertura XII FAO, Manaus, 2008]
Sobre pessoas que cruzam o céu do país, fazendo da paixão lírica também seu objeto de trabalho

Chega o mês de abril, época em que tradicionalmente se inicia o Festival Amazonas de Ópera. Mas antes disto muita gente está, há meses, em intensa labuta, ensaiando, administrando, regendo, costurando, tocando, iluminando, enfim, trabalhando por tudo aquilo sem o qual uma produção operística não pode existir.

Porém, paralelamente ao pessoal que está diretamente envolvido com as óperas, há também aqueles que fazem dela seu objeto de trabalho, mas que neste caso consiste em observar, comparar, estudar, entender, refletir, explicar e, por fim, escrever sobre tudo o que está acontecendo no palco e em seu entorno. Sim, caro leitor, trata-se do trabalho dos jornalistas e/ou críticos, que como aves migratórias, preparam suas trouxas e saem de seu habitat natural rumo aos ares quentes e úmidos da Amazônia.

E como é comum com as aves migratórias, elas sempre saem em bandos, e este ano não foi diferente, com várias delas partindo juntas da vertiginosa Sampa rumo ao Norte. O bando já foi maior, mas mesmo reduzido, está fortemente representado por nomes como o de Nelson Kunze, editor-chefe da Revista Concerto, que há anos acompanha in loco o desenvolvimento dos mais diferentes eventos musicais em todo país. Também integrante do bando é João Luiz Sampaio, repórter do Estado de S. Paulo cuja paixão pela ópera foi se agigantando em sua vida. "Don Carlo" que o diga! Em estado de pura concentração estava Irineu Franco Perpetuo, crítico musical e tradutor que em pleno vôo estava a labutar mais um artigo para um dos veículos que colabora (Folha de S. Paulo, revista Bravo!, etc.). "Sensacional!" ;o)

Tinha também este que vos escreve, mais uma ave neste bando que, finda a estação de ópera, tem a satisfação de voltar para o seu habitat e falar para quem queira ouvir que a música é possível em qualquer lugar que realmente se queira, pois afinal, se "tudo vale a pena, se a alma não é pequena", tudo é possível para quem não acredita no finito. E amante da ópera que se preze jamais acredita que tudo acaba com o cair do pano...

16 abril 2008

Manaus 2008

Em sua 12a. edição, o Festival Amazonas de Ópera se divide entre a inovação e a tradição.

Ontem, 15 de abril, o Festival Amazonas de Ópera (FAO) deu o primeiro passo de mais uma etapa de sua existência, ao abrir a edição deste ano com a ópera "Ça ira", de Roger Waters (que já integrou da banda de rock inglesa Pink Floyd). Sob a direção artística do maestro Luiz Fernando Malheiro (auxiliado por um fiel séquito de músicos e produtores) o evento contará ainda com a apresentação de novas produções de "Ariadne auf Naxos", de Richard Strauss, "Maria Golovin", de Giancarlo Menotti e "Turandot", de Giacomo Puccini. Além das produções da casa, o FAO faz sua parte no processo de parceria de produções operísticas brasileiras, ao levar a Manaus a montagem paulistana de "João e Maria", que em contrapartida abrigará em agosto a montagem manauara de "Ariadne auf Naxos". Além das óperas, apresentações musicais variadas serão levadas ao palco ao longo do festival, que se encerra em 31 de maio.

Trata-se de um tour de force, no sentido mais verdadeiro que este galicismo pode expressar. Orquestra, cantores, maestros, técnicos, produção, governo e patrocinadores há meses se desdobram para colocar em pé este que é não apenas o principal evento lírico brasileiro, mas sobretudo um dos principais eventos musicais do país.

Para este ano o FAO volta a investir na fórmula que lhe têm assegurado o sucesso de crítica e de público há vários anos, isto é, desdobramento entre a inovação e a tradição. Por um lado uma ou mais montagem de um espetáculo que saia da grande tradição operística (seja pela proposta de encenação, seja pela ópera em si). Pelo outro, óperas famosas já cativas no gosto do grande público.

No ano passado a fórmula foi colocada em prática ao encenar-se uma controvertida montagem de "O navio fantasma", de Richard Wagner, pela concepção do diretor alemão Christoph Schlingensieff. Somou-se a este espetáculo o ambicioso (e bem sucedido) projeto de encenar a inquientante "Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk", de Dmítri Shostakóvitch, paralelamente a projetos mais "acessíveis" como a ópera "Poranduba", de Villani-Côrtes e uma série de concertos.

Este ano a ousadia está, evidentemente, em programar a ópera de um rockeiro para abrir o evento. É certo que a ousadia se refere muito mais a todo o contexto e exotismo que cerca o "Ça ira" de Waters do que pela música em si, mas mesmo assim o FAO acerta novamente o alvo ao se manter como um festival de ópera que, de uma maneira muito própria, é muito mais do que um festival de ópera.

A partir do próximo sábado, estendendo-se até do dia 22 de abril, o OutraMúsica cobrirá esta primeira grande leva do XII FAO, realizando não apenas resenhas dos espetáculos realizados durante este período, mas também lançando um olhar crônico sobre os bastidores e o entorno do evento e, com sorte, realizando entrevistas com alguns nomes que, de uma forma ou de outra, põem pra girar a roda desta grande festa da música lírica brasileira. Até lá!

Serviço:

XII Festival Amazonas de Ópera
(site: www.amazonasfestivalopera.com)
De 15 de abril a 31 de maio
Realização: Secretaria de Estado da Cultura do Amazonas
Patrocínio: Bradesco Prime e Lei de Incentivo à Cultura
Co-patrocínio: Petrobrás

10 abril 2008

A vida enquanto metáfora

Em sua versão do mito de Épido, o escritor japonês Haruki Murakami acaba por transcender a mera metáfora.

A tentação é grande, talvez mesmo inevitável, mas por mais pertinente que isto possa parecer, reduzir o livro "Kafka à beira-mar", de Haruki Murakami, a uma metáfora moderna do mito do rei Épido, imortalizado na tragédia de Sófocles, é uma interpretação demasiado limitadora e insuficiente.

Publicado originalmente em 2005, e agora disponível no Brasil (Alfagura/Objetiva, R$ 55, 571 págs.), o livro tem como foco narrativo a vida do adolescente Kafka Tamura, um pseudônimo para um nome verdadeiro o qual jamais saberemos ao longo do livro. Fugindo da sina edipiana, Kafka (aqui, uma dupla referência, tanto ao escritor Franz Kafka como no sentido literal, "corvo") foge de sua casa para tentar salvar sua vida, esquivando-se do pecado incestuoso. Paralelamente, temos a curiosa de história Oshima, que se inicia num tempo narrativo diferente, até chegar sincronicamente ao tempo de Kafka Tamura.

Elaborado com uma prosa engenhosa, nas aparências Murakami mira na metáfora edipiana, mas tem como verdadeira meta um alvo maior, isto é, a própria existência humana enquanto metáfora. Mas, afinal, o que a vida metaforiza? Esta é uma pergunta que não será respondida, ou melhor, a resposta reside nas entrelinhas na percepção individual de cada leitor (e daí justamente seu valor).

Personagens inusitados (tal como Coronel Sanders, dos restaurantes KFC, e o Johnnie Walker da famosa marca de whisky) e curiosos, bem como situações igualmente inverossímeis, pululam aqui e acolá, e estas referências que Murakami faz a elementos da vida moderna ao longo de sua obra
(por vezes flertando com o surrealismo) lhe tem rendido, por vezes, uma também reducionista rotulação de "escritor pop".

Porém, apenas quem quer deixa-se enganar pelas aparências, pois os ícones da cultura pop e do capitalismo cumprem na obra de Murakami o papel de mera metáfora (é claro).

A crítica musical em Murakami

O rótulo de "escritor pop" explica-se também por Murakami sistematicamente ambientar seus romances com diversos gêneros de música popular, em especial, o rock. Freqüentemente seus personagens estão ouvindo bandas e cantores de sucesso, mas sempre que muzak, isto é, como uma música de fundo, vazia, que nada acrescenta à trama ou mesmo a um personagem.

Mas não deixa de ser interessante notar que é por meio da música clássica que pontos importantes de sua trama e personagens encontram seu ponto de mutação. É o que ocorre em
"Kafka à beira-mar", onde o caminhoneiro Hoshino vivencia uma pequena epifania a partir da escuta do "Trio Arquiduque" de Beethoven. Não bastasse isto, Murakami tece neste livro uma das mais sintéticas e precisas impressões sobre a natureza estética da música do Romantismo, que cito abaixo a guisa de conclusão, sem maiores comentários. Leia e veja e vale ou não a pena conferir.

"Na minha opinião, as obras de Schubert foram feitas para desafiar regras preestabelecidas e para perder. Essa é a verdadeira natureza do romantismo, e a música de Schubert é, nesse aspecto, a quinta-essência do romantismo" [pág. 140]


06 abril 2008

O bem-vindo retorno de Falstaff

Produção original de 2003, o "Falstaff" do Municipal paulistano ainda tem muito o que mostrar.

É senso comum que o Brasil ainda não detém uma cena operística condizente com a efervescência cultural de seus centros urbanos. Se parte desta escassez é explicada pelos custos necessariamente altos que mesmo a mais simples montagem de ópera demanda, logo mostra-se urgente tornar mais perene as montagens realizadas no passado recente.

É por este caminho que se envereda a atual temporada de ópera do Theatro Municipal de São Paulo, iniciada pela remontagem de "Falstaff", de Giuseppe Verdi, uma produção original da casa estreada em 2003. A temporada ainda revisitará a produção de 2004 de "Colombo", de Carlos Gomes, e levará ao palco duas co-produções de casas co-irmãs: o elogiadíssimo "O castelo do Barba-Azul", de Béla Bartók (produção do Palácio das Artes, Belo Horizonte), e "Ariadne em Naxos", de Richard Strauss (produção do Festival Amazonas de Ópera que estreará este mês na capital manauara). Mas nem só de repetecos vive o Municipal, que também produzirá novas montagens, entre as quais, "Madame Butterfly", de Giacomo Puccini.

Mas voltemos ao Falstaff. Ópera singular dentro da produção verdiana, ela é marcada por uma escrita parcamente cantabile (ao menos para os padrões verdianos), na qual os momentos onde se pode finalmente poderia se esperar uma "bela ária" ou dueto são necessariamente interrompidos por outros desenvolvimentos da trama. Esta peculiaridade acaba por delegar aos cantores um peso ainda maior sob sua desenvoltura dramática, agravada pelo fato de se tratar de uma ópera buffa (afinal, fazer rir não é lá das tarefas mais fáceis para ator algum).

Neste sentido, só resta mesmo elogios ao trabalho musical e cênico empreendido pelo baixo-barítono Lício Bruno, na pele (e banhas) do glutão Falstaff. Com um trabalho corporal bem elaborado, Bruno conferiu ao personagem de Shakespeare a comicidade necessária, aliada ao seu desempenho vocal, algo que o cantor já havia feito de forma magistral no passado com outro personagem shakespeare-verdiano, isto é, o Iago do "Otello", na montagem de Manaus.

Apesar de a cargo de papéis menos exigentes, foram também exemplares as performances de Leonardo Estévez (como Ford), e o quarteto das "alegres comadres de Windsor", integrado por Regina Elena Mesquita, Laura de Souza, Flávia Fernandes e Edinéia de Oliveira. Neste ponto, é importante notar o bom trabalho do diretor José Possi Neto na obtenção de um espetáculo alegre e fluído.

De uma maneira geral o maestro chileno Rodolfo Fischer conduziu de forma competente a Orquestra Sinfônica Municipal e o Coral Lírico, e mesmos certos problemas (tal como a leve falta sincronia entre vozes e orquestra no final do primeiro ato) não foram suficientemente comprometedores pois, ao final de tudo, os risos e a alegria a tudo redimem.

Foto: Lício Bruno, como Falstaff (à esquerda) e Leonardo Estévez, como Ford.

01 abril 2008

Notícias musicais de um 1o. de abril

Deu hoje nas principais agências de notícias do mundo:

- Berlim (Agência Reuters): A orquestra filarmônica local anuncia que, como parte das medidas de contenção de custos irá, reduzir seu número de violinistas, violistas, violoncelistas e contrabaixistas. Para que não haja perda de volume, os músicos restantes terão seus instrumentos amplificados ou mesmo substituídos por outros de outros naipes, caso em um dado momento da peça eles não estejam em serviço. Músicos e professores de orquestração irão recorrer na justiça.

- Paris (Le Monde): Atendendo a um pedido pessoal do presidente Nicolas Sarkozy, a justiça francesa entrou com um processo contra um restaurante que utilizava o hino francês, a Marseillaise, como música de fundo para seus clientes. Alegando questões comerciais, o dono do estabelecimento, Jean-Jacques du Je Ne Sais Quois, diz que não irá substituir a música, tendo em vista que a horda de turistas japoneses só se convencem que estão apreciando um típico Ratatouille (o prato, não o filme) quando ao som da "alegle (sic) canção flancesa (sic), né?", corrobora um satisfeito cliente.

- Madrid (El País): Depois de meses de investigação, a polícia espanhola finalmente prendeu José Guardanapos, há seis meses investigado como o autor de inúmeros roubos envolvendo partes de instrumentos musicais. Em sua casa a polícia encontrou sete bocais de trompetes, três palhetas de oboé, oito cordas de violinos e uma campana de tuba (que no momento do flagrante era utilizada como parte de uma rústica bacia de escalda-pés). Apesar de inofensivo, os crimes de Guardanapos ocasionaram em prejuízos incalculáveis (extamente 600 mil Euros) para a cultura musical local. O caso mais grave ocorreu com o oboísta franco-andaluz Ramón Dieu, que teve sua palheta usurpada por Guardanapos instantes antes de solar um concerto de Mozart. Em sua defesa, Guardanapos alega que tudo o que fez "foi pela música e amor à arte". Num exame psiquiátrico preliminar não foi constatada qualquer anomalia em Guardanapos.

- Bayreuth (Süddeutsche Zeitung): Pesquisa recentes no arquivo pessoal do compositor Richard Wagner resgataram um diário secreto no qual ele relata o seu encontro, em Veneza, com o compositor italiano Giuseppe Verdi. Segue a transcrição de um trecho: "Ao cabo de diversas horas de um papo interminável (que moral tenho eu para falar disto?) confidenciei a Giu-giu [tratamento carinhoso que Wagner dava a Verdi] 'Meine amici, no fundo, no fundo eu queria mesmo é ter nascido na Itália', ao que ele, de pronto, respondeu 'Santo Deus, eu então teria ido plantar café em Araraquara'. Não entendi muito bem o que ele quis dizer, pois não faço idéia do que é este [sic] Araraquara". Estudiosos acreditam tratar-se de um texto apócrifo, provavelmente uma vingança de Hans von Büllow, que além de pianista (que eventualmente se dedicava ao corno di basseto) era um talentoso calígrafo.

- New York (New York Times): Está encontrando muita resistência na comunidade operística local a estréia da mezzo-soprano colombiana Shakira Isabel Mebarak Ripoll no tradicional Metropolitan Opera House, em sua nova montagem de "Carmen", sob a direção de Gerald Thomas. Celebrada no universo "pop", ou "popular", com árias como "Pies Descalzos" e "Whenever, Wherever", a mezzo tem encontrado resistência no high-society musical novaiorquino, que alega que a mezzo não tem o preparo para este tipo de repertório. Em sua defesa, a mezzo afirma que tem pleno domínio de cena e técnico, e que já fez muito duetos, tais como com a soprano norte-americana Beyoncé Knowles e o tenor espanhol Alejandro Sánchez Pizarro. Os patronos do Met prometem mover mundos e fundos (inclusive os falsos) para impedir que a colombiana encarne a famosa cigana de Bizet, que ainda não se manifestou sobre a polêmica. "Genial! Genial!", são os comentários do diretor Gerald Thomas a respeito da polêmica.

- Araraquara (OutraMúsica): Foi encontrado nos antigos registros de hóspedes da Hospedaria do Onça (demolida em 1930) a assinatura do compositor alemão Richard Wagner. O documento, hoje pertencente ao arquivo municipal da pequena cidade paulista, data de finais do século XIX, e exames preliminares confirmam a autenticidade da assinatura. Músicos, pesquisadores e musicólogos agora concentram seus estudos no motivo que teriam levado o famoso compositor à pequena cidade (à época ainda mais menor de pequena ainda). Há fortes indícios de que, seja lá qual tenha sido o motivo, ele não estava relacionado à música.