Em sua versão do mito de Épido, o escritor japonês Haruki Murakami acaba por transcender a mera metáfora.
A tentação é grande, talvez mesmo inevitável, mas por mais pertinente que isto possa parecer, reduzir o livro "Kafka à beira-mar", de Haruki Murakami, a uma metáfora moderna do mito do rei Épido, imortalizado na tragédia de Sófocles, é uma interpretação demasiado limitadora e insuficiente.
Publicado originalmente em 2005, e agora disponível no Brasil (Alfagura/Objetiva, R$ 55, 571 págs.), o livro tem como foco narrativo a vida do adolescente Kafka Tamura, um pseudônimo para um nome verdadeiro o qual jamais saberemos ao longo do livro. Fugindo da sina edipiana, Kafka (aqui, uma dupla referência, tanto ao escritor Franz Kafka como no sentido literal, "corvo") foge de sua casa para tentar salvar sua vida, esquivando-se do pecado incestuoso. Paralelamente, temos a curiosa de história Oshima, que se inicia num tempo narrativo diferente, até chegar sincronicamente ao tempo de Kafka Tamura.
Elaborado com uma prosa engenhosa, nas aparências Murakami mira na metáfora edipiana, mas tem como verdadeira meta um alvo maior, isto é, a própria existência humana enquanto metáfora. Mas, afinal, o que a vida metaforiza? Esta é uma pergunta que não será respondida, ou melhor, a resposta reside nas entrelinhas na percepção individual de cada leitor (e daí justamente seu valor).
Personagens inusitados (tal como Coronel Sanders, dos restaurantes KFC, e o Johnnie Walker da famosa marca de whisky) e curiosos, bem como situações igualmente inverossímeis, pululam aqui e acolá, e estas referências que Murakami faz a elementos da vida moderna ao longo de sua obra (por vezes flertando com o surrealismo) lhe tem rendido, por vezes, uma também reducionista rotulação de "escritor pop".
Porém, apenas quem quer deixa-se enganar pelas aparências, pois os ícones da cultura pop e do capitalismo cumprem na obra de Murakami o papel de mera metáfora (é claro).
A crítica musical em Murakami
O rótulo de "escritor pop" explica-se também por Murakami sistematicamente ambientar seus romances com diversos gêneros de música popular, em especial, o rock. Freqüentemente seus personagens estão ouvindo bandas e cantores de sucesso, mas sempre que muzak, isto é, como uma música de fundo, vazia, que nada acrescenta à trama ou mesmo a um personagem.
Mas não deixa de ser interessante notar que é por meio da música clássica que pontos importantes de sua trama e personagens encontram seu ponto de mutação. É o que ocorre em "Kafka à beira-mar", onde o caminhoneiro Hoshino vivencia uma pequena epifania a partir da escuta do "Trio Arquiduque" de Beethoven. Não bastasse isto, Murakami tece neste livro uma das mais sintéticas e precisas impressões sobre a natureza estética da música do Romantismo, que cito abaixo a guisa de conclusão, sem maiores comentários. Leia e veja e vale ou não a pena conferir.
"Na minha opinião, as obras de Schubert foram feitas para desafiar regras preestabelecidas e para perder. Essa é a verdadeira natureza do romantismo, e a música de Schubert é, nesse aspecto, a quinta-essência do romantismo" [pág. 140]
2 comentários:
leonardo, cheguei aqui por uma indicação do joão, que sabe que sou fã confessa do murakami. li todos os livros dele, e acompanhei várias resenhas do lançamento no Brasil do Kakfa on the Shore. te digo, que vc foi um dos poucos que, na minha opinião, realmente entendeu o livro. parabéns.
um beijo!
ei, chegou seu comentário sim, no blog atual mesmo, não no blogspot. obrigada!
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