22 janeiro 2006

Os 250 anos do “Escolhido”

Na próxima sexta-feira se comemorará o nascimento de Mozart, um dos maiores compositores que o mundo já conheceu.

Johannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus Mozart. Este é o nome de batismo de um dos mais talentosos músicos que se tem notícia. Se preferir, pode simplesmente chamá-lo de Wolfgang Amadeus Mozart, nome legado à posteridade no qual a palavra Theophilus é utilizada na forma latina de Amadeus. O significado da palavra é evidente, mas bem que poderíamos interpretá-lo da forma inversa: ao invés de um “ama-Deus” seu incrível e precoce talento dá mesmo a entender que Mozart sim foi especialmente amado pelo criador do universo, e assim abençoado com um dom cujas façanhas se confundem com sua própria história de vida.

Nascido às oito horas da noite do domingo de 27 janeiro de 1756, no No. 9 da Getreidegasse na pequena cidade austríaca de Salzburgo, desde tenra idade Mozart se viu envolvido com música. Seu pai, o violinista e compositor Leopold Mozart foi um dos grandes nomes de seu tempo, e seu método de violino é, ainda hoje, uma referência muito utilizada quando se trata de conhecer a técnica de execução de instrumentos de arco do século XVIII.

Tão logo começou a dar sinais de seu excepcional talento – sua primeira composição foi escrita quando ele tinha apenas cinco anos – seu pai logo tratou de inserir o infante Mozart no mercado musical, agendando apresentações nas mais diferentes casas reais da Europa. Hoje em dia é lugar comum acusar o pai de vender a infância do filho, mas vale lembrar que, para a época, Leopold nada mais fez que o convencional, tendo em vista que os filhos eram desde muito cedo vistos como uma força de trabalho, e caso este fosse abençoado como algum dom especial – tal como era evidente no jovem Wolferl (seu apelido familiar) – um meio de obtenção riquezas (no Brasil, algo muito semelhante ocorre atualmente nos campos de futebol de várzea...).

Sua história de vida é, de um certo ponto de vista, comum: teve um conflituoso relacionamento com o pai, tinha uma natural tendência à desobediência às autoridades em geral, alguns relacionamentos amorosos, mulher e filhos, conflitos profissionais e uma enfermidade que, por fim, encerrou precocemente sua vida, aos 35 anos de idade.

O que, no entanto, vêm seduzindo biógrafos, musicólogos e o público ao longo destes dois séculos e meio são os milagres musicais transcorridos a partir de sua pena: além da precocidade musical em si – sua primeira ópera foi estreada quando tinha apenas 12 anos – Mozart ficou muito conhecido não só pela facilidade em compor, mas também pela incrível velocidade com que o fazia e pelo grau de perfeição obtido logo na primeira versão que, em geral, prescindia de revisões.

Esta facilidade na composição, que dava a impressão de que Mozart apenas colocava no papel um ditado musical proferido por uma voz celeste, contribuiu de forma decisiva para o surgimento do mito do compositor com dotes divinos. Transposto para a esfera mitológica, foi necessário inserir na biografia de Mozart um antagonista à altura, e o papel de algoz do “escolhido” coube não a um mero e rigoroso patrão – tal como é retratado Hieronymus Colloredo, então príncipe-arcebispo de Salzburgo – mas sim a um dos mais famosos e influentes compositores da época, o italiano Antonio Salieri (1750-1825).

Na Grécia clássica a diferença entre mito e história era inexistente. Posteriormente surgiu a diferença entre uma história “de verdade” e outra, digamos, ficcional. O caso entre Mozart e Salieri tem sido, desde então, um exemplo de que nem sempre estamos interessados em saber o que de fato ocorreu, e a rivalidade profissional entre eles – que de fato existiu – foi transformado num drama que desde o século XIX vêm seduzindo escritores e dramaturgos.

Mozart e a “Gangue do Lobo”

A música e o talento singular de Mozart chamou a atenção de grandes escritores em épocas ainda muito próximas de sua morte, antes de sua mitificação no século posterior. O poeta E.T.A. Hoffmann (de quem algumas histórias são utilizadas na famosa opereta de Jacques Offenbach “Os contos de Hoffmann”) dedicou à Mozart várias linhas à sua vida e principalmente à sua obras musicais (Hoffmann é também um importante crítico do século XVIII). Diferentemente da classificação dada pela atual historiografia da música, Mozart era para Hoffmann um importante compositor romântico, cujos avanços musicais foram imprescindíveis para o surgimento da então moderna e revolucionária música, simbolizada por ninguém menos que Ludwig van Beethoven.

Porém, tão logo o conceito de história da música passou, no século XIX, a supervalorizar o conceito de gênio a biografia de Mozart foi resumida à sua precoce genealidade e à dramatização de suas desavenças profissionais com Salieri (em tempo, tal desavença residia no fato de Salieri ser o compositor oficial da corte vienense, um dos cargos mais elevados da época e muito almejado por Mozart).

Em 1830 o dramaturgo russo Alexandre Puchkin (1799-1837) leva ao palco a peça “Mozart e Salieri” no qual o compositor italiano é transformado num envenenador. A hipótese de envenenamento de fato foi um boato que existiu na época, apesar do agravamento da síndrome renal ser a evidente causa mortis de Mozart. Em 1898 o também russo Rimski-Korsakov compõe uma ópera sobre o texto de Puchkin, dando o passo decisivo para a perpetuação da lenda.

Já em finais da década de 1970 o dramaturgo inglês Peter Shaffer (1926) faz sua versão para o “duelo” entre Mozart e Salieri na peça “Amadeus”, que em 1984 ganha às telas numa aclamada versão de Milos Forman ganhadora de oito oscars. Nela Salieri (o fantástico Murray Abraham) não é mais retratado como um assassino, mas sim um invejoso candidato a homicida que vê seu plano interrompido pela intervenção divina.

Consumido por seu estereótipo, a vida e a obra de Mozart veio a encontrar uma versão ficção interessante e sublime apenas em 1991 (ano em que se celebrava os 200 anos da morte de Mozart), na sofisticada obra do escritor inglês Anthony Burgess “Mozart & the Wolf Gang” (literalmente, “Mozart e a Gangue do Lobo”, trocadilho com o prenome do compositor).

Mais conhecido como autor do romance “A Laranja Mecânica” – que em 1971 também viria a tornar um sucesso do cinema sob a direção de Stanley Kubrick – Burgess (1917-1993) não era “apenas” um escritor, mas também um músico e compositor com grande conhecimento de história da música que fica evidente ao longo de sua obra literária.

Em “Mozart & the Wolf Gang” Burgess tem como ponto de partida um insólito e espectral encontro entre os compositores Beethoven, Mendelssohn, Bliss, Prokofiev e Wagner (a tal “Gangue do Lobo”) que se reúnem para fazer uma homenagem ao mestre de Salzburgo com uma ópera sobre sua vida. O livro – que mistura a escrita dramatúrgica com a prosa – é pleno de inspirados diálogos cheios de acidez e perspicácia musical e intermediados por outros encontros insólitos. Rossini, Berlioz e Stendhal fazem sua apreciação da essência da música. Schoenberg tem um desentendimento com Gershwin quanto à mediocridade da música e do libreto elaborados para a tal “ópera”. Lorenzo da Ponte (libretista na vida real de óperas de Mozart) tem uma interessante conversa com o escritor inglês Henry James, e mesmo o próprio autor da obra, Burgess, tem o bizarro diálogo consigo mesmo, Anthony.

Sem tradução para o português, o livro pode ser uma empreitada difícil devido à grande quantidade de referências musicais. Mas mesmo assim, sua leitura é recomendada não só pela temática mozartiana, mas também pelo sofisticado trabalho literário realizada sobre a mítica vida de Mozart.

Mozart e, enfim, sua música

Mitos e lendas à parte, Mozart sim foi um grande compositor e um marco na história da música ocidental. Não desmerecendo a real grandeza de sua obra e seu inegável talento sua genialidade tem, no entanto, uma explicação “racional”.

A segunda metade do século XVIII – período de nascimento e morte de Mozart – o estilo musical vigente na Europa encontrava num avançado grau de estabilização. Isto quer dizer que este o artesanato da composição musical era realizado por meio de uma série de regras e convenções musicais amplamente consolidadas, que apesar da singularidade inerente à cada objeto artístico, estes eram construídos a partir uma série de hábitos e clichês que faziam parte do cotidiano de qualquer músico mediano.

Este estilo de composição é hoje designado como Clássico, e a consolidação deste estilo durante a vida de Mozart explica, em parte, sua profícua produção, na medida em que o trabalho de composição tinha ainda um forte aspecto artesanal na qual diversas etapas da criação musical podia, inclusive, ser feita por outra pessoa. Vários são os documentos musicológicos que comprovam isto, e o caso mais famoso é justamente o da sua missa de Réquiem, que apesar de não ter sido completada por Mozart (que falecera antes) foi posteriormente concluída por seu aluno Franz Xavier Süssmayer a partir de seus esboços.

A genialidade Mozart não reside apenas na quantidade e rapidez com que ele compunha, mas sobretudo nas pequenas inovações presentes a cada partitura.

Mozart compôs toda sua obra sobre o alicerce das convenções clássicas, compartilhada por diversos contemporâneos seus. Invenção como sinônimo de revolução e superação de todas as convenções é próprio da estética clássica. Mozart, no máximo, a caricaturou, tal como na “Brincadeira Musical” – na qual a orquestra termina a obra num divertido e grotesco acorde escrito propositalmente errado – e na curiosa “Musikalisches Würfelspiel”, na qual o pianista tem que “montar” a partitura a partir de uma seqüência numérica gerada por lances de dados.

Apesar de baseada nas convenções clássicas, cada obra tem algo de novo, de inovador e inusitado, o que inviabilizam sua análise e apreciação por meio de algum modelo fixo. Apesar de “previsível” no estilo, cada obra de Mozart é singular nas filigramas de sua escritura, que quando tocadas dão aquela já convencional – porém sempre atual e real – impressão perfeição, através da qual não raro vislumbramos o quão sublime a arte pode ser.