19 março 2006

Clarões de uma música celestial.

OSESP abre sua temporada com uma bela apresentação do "Réquiem" de Verdi.

Quando assunto é o Réquiem do compositor italiano Giuseppe Verdi (1813-1901) é lugar comum falar do estilo operístico por ele empregado nesta música escrita para uma liturgia católica, isto é, a missa dos mortos.

Estreada em 1874 para celebrar a memória do escritor italiano Alessandro Manzoni (autor do famoso romance “Os Noivos”), em sua “Messa da Requiem” Verdi se vale da escritura vocal-orquestral pela qual sua obra – totalmente voltada para a ópera – viria a ser conhecida: uma escritura musical que aprofunda o poder dos sentimentos em questão, que imprime uma carga explosiva a cada “parole armonizzate” que parece concentrar em si o mote dramático toda uma existência. Escrever um Réquiem como se fosse uma ópera é um fato que ainda pode causar estranhamento – quiçá reprovação – ou suscitar uma mera curiosidade.

Ninguém diz que uma “ópera-missa” é a única coisa que poderíamos esperar. Afinal, não foi privilégio de Verdi empregar na música sacra um estilo de composição notoriamente secular: desde a Renascença, passando aí inclusive pelo famoso Réquiem de Mozart, a “promiscuidade estilística” entre o sacro e o secular é um fato comum. O caso Verdi talvez chame mais atenção devido ao insuficiente fato de seu Réquiem ser sua única obra não operística de prestígio.

Dada a devida contextualização, o Réquiem de Verdi é pleno de uma música luminosa, com seus clarões de ira e tristeza que exigem um efetivo orquestral e vocal gigantesco para que sua grandeza possa ser realizada. A abertura da temporada 2006 da OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) foi uma oportunidade única para presenciar no Brasil toda a mágica desta partitura, na medida que o Coro da Fundação Príncipe de Astúrias (Espanha) veio em auxílio ao ainda numericamente insuficiente Coro da OSESP.

A competente regência do maestro John Neschling garantiu a beleza desta partitura, ao realçar os contrates de escritura e sentimentos em números de caracteres tão distintos como o sepulcral “Requiem aeternam”, o terno “Agnus Dei” e o furioso “Dies irae, dies illa” que Verdi, abrindo mão do roteiro litúrgico oficial, repete ao longo da obra, quem sabe aí dando sua visão pessoal sobre o mistério da morte.

O quarteto vocal solista escalado desempenhou tão bem seu papel que fica difícil escolher um destaque. Teve a soprano Hasmik Papian em seu belo canto clemência no “Libera me”, acompanhada do coro. Teve a beleza da voz grave e presente da meio-soprano Mzia Nioradze. Teve a discreta, mas bela presença do tenor Miroslav Dvorsky. E teve a volta do baixo Francesco Ellero D’Artegna, que se reabilita com o público paulistano depois de sua mesfistofélica apresentação no “Fausto” de Gounod, no ano passado.

A orquestra, com sua já habitual competência e potência sonora, se destaca como um todo. Porém, vale ressaltar a força e a vivacidade com a qual os naipes de metais e de percussão imprimiram nos momentos mais catárticos do Réquiem, que apesar de toda sua temática ligada à morte, renova a alma de cada vivo presente a uma apresentação tão cheia de luz como a que se pode presenciar na Sala São Paulo.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

12 março 2006

Clássicos nacionais em som e imagem

Lançamentos de DVD de músicos brasileiros são os primeiros passos de um mercado ainda incerto.

Desde a explosão do DVD, no início desta década, como uma mídia visual prática, impulsionada pelo barateamento dos aparelhos tocadores e home-theatres, praticamente nenhum nicho da famigerada indústria cultural deixou de abocanhar uma fatia deste mercado milionário.
O mercado clássico foi também brigar por seu pedaço, relançando alguns registros famosos e descobrindo na cultura operística um filão interessante e relativamente barato, na medida em que à produção basta “apenas” a tarefa de documentar um espetáculo totalmente voltado para o palco.

No Brasil, mesmo no auge da era do VHS na década de 1980, não se estabeleceu uma prática de produção vídeo musical, o que em parte refletia a situação penúria que a própria cena clássica brasileira enfrentava, com orquestras desorganizadas, grupos de câmara de ocasião e a total ausência de uma política cultural.

Apesar dos pesares, a cena musical clássica brasileira atual está bastante forte e consolidada, e esta verdadeira reviravolta explica, em parte, o lançamento de dois DVDs clássicos que marcam este início de temporada. Cada qual com uma proposta artística e estética totalmente própria (quase antagônicas), os vídeo-álbuns do grupo Quaternaglia e do compositor Flo Menezes são os sinais de que mesmo o universo alternativo daquilo que dentro da grande indústria fonográfica é em si alternativo tem seu espaço e, principalmente, seu público.

Fundado em 1992, o quarteto de violões Quaternaglia é um das principais referências internacionais desta peculiar formação instrumental, e atualmente é integrado por Fernando Lima, João Luiz, Fabio Ramazzina e Sidney Molina. Com quatro primorosos CDs em sua discografia –inclusive um distribuído apenas na Europa e nos EUA – o grupo inicia sua experiência em vídeo com um registro de seu “concerto-show” dado no auditório do Instituto Cultural Itaú de São Paulo, que financiou a produção do DVD.

O repertório abordado é aquele pelo o qual o grupo tem obtido destaque na cena musical, isto é, totalmente brasileiro, misturando obras de compositores renomados – como Tom Jobim, Egberto Gismonti e Paulo Bellinati – com jovens atuantes como Paulo Tiné, Sergio Molina e Douglas Lora. Tudo a típica mistura clássica/popular que naturalmente permeia o repertório violonístico.

Seguindo os atuais padrões, o DVD conta também com uma faixa de “extras” no qual se encontram interessantes depoimentos de integrantes do grupo e de músicos que de alguma forma se envolveram com sua trajetória, o próprio Gismonti, o recém falecido Ricardo Risek e o violonista Henrique Pinto.

Com uma proposta totalmente oposta, o compositor paulistano Flo Menezes faz também sua estréia em vídeo, lançando em DVD o registro de duas recentes composições em ocasiões especiais. A primeira trata-se da peça “Pulsares” para sons eletroacústicos, piano solista (Nahim Marum) e grupo orquestral, na ocasião, a estréia brasileira interpretada pelo Percorso Ensemble regido por Ricardo Bologna. Aqui, ao contrário da grande maioria dos DVDs clássicos, a parte visual não se limita ao registro, mas é em si uma elaboração artística que se soma à música, que no entanto jamais desvia a atenção para o ato da escuta. A divisão da tela em 18 quadros simultâneos imprime à visão uma percepção polifônica do fenômeno visual que, curiosamente, acaba por remeter ao fenômeno sonoro puro, uma visão que convida ao fechar dos olhos.

A segunda peça do álbum trata-se da estréia mundial de “labORAtorio”, em concerto comemorativo aos 450 anos da capital paulista no Theatro Municipal de São Paulo, que além da parte de sons eletroacústicos contou também com solos da soprano Martha Herr, do Coral Paulistano, sob a direção de Mara Campos, e da Orquestra Experimental de Repertório sob a regência de Jamil Maluf.

Ainda que o diminuto tamanho das legendas com os textos cantados e as referências à forma musical utilizadas na peça não ajudem o espectador, toda a parte sonora faz por si valer a ocasião. Nesta obra, Menezes faz um verdadeiro caleidoscópio das escrituras vocais presentes na música ocidental, utilizando diversas citações de clássicos como Claudio Monteverdi e Orazio Vecchi, além da reconhecida referência peça “Laborintus II” do compositor italiano Luciano Berio. A escuta deste DVD faz toda diferença caso tocado um home-theater com sistema 5.1, na medida em que os sons “passeiam” de um canto ao outro da sala.

Nos extras, o compositor discorre sua obra num documentário feio por Ana Guimarães. A linguagem técnica utilizada por Menezes pode parece um tanto hermético para o ouvinte pouco habituado às particularidades da música contemporânea, mas em todo caso vale para conhecer um pouco do pensamento “radical” do compositor, como pode ser conferido na entrevista abaixo os nos seguintes links (Flo Menezes; Sidney Molina)

Serviço:
Concerto de lançamento do DVD Quaternaglia
Data: 30 de março, quinta-feira, 21h
Local: SESC Ipiranga
Participação especial: Paulo Bellinati
Preços: R$20,00; R$10,00; R$7,00
Endereço: Rua Bom Pastor 822
Tel: 3340-2000

DVD “Flo Menezes: Pulsares e labORAtorio”
Em distribuição pela loja “Clássicos”: www.lojaclassicos.com.br e (11) 5535-5518.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

Flo Menezes, compositor e diretor do Studio PANaroma de Música Eletroacústica

Depois de ter produzido diversos CDs de música eletroacústica, o que o levou a realização deste DVD?

Um dos principais motivos foi que a atual tecnologia dos aparelhos eletrônicos possibilitou realizar, num ambiente doméstico, um aspecto muito importante de minha música, que é a sua dimensão espacial. Antes, para ter a percepção das diferentes fontes sonoras, era necessário ir a um concerto de música eletroacústica, com diversos alto-falantes espalhados pelo teatro. A tecnologia do home-theater permite algo parecido numa simples sala de TV.
Como foi trabalhar a união entre imagem e música?

Quando concebi o projeto tinha duas possibilidades. Uma era fazer um trabalho meramente documental, apenas o registro de um acontecimento, no caso, os concertos onde as minhas obras “Pulsares” e “labORAtorio” foram executadas. Este é o caso da maioria dos DVDs clássicos. A segunda, pela qual optei, foi a busca de um discurso visual que, aliado à música, desse também sua contribuição artística ao projeto. Para isto chamei as artistas Branca de Oliveira e Ana Guimarães, que garantiram com muita competência a simbiose entre a parte visual e a musical.

Como analisa a relação das instituições musicais brasileiras – tais como os teatros e as orquestras – para com a música de vanguarda?

Particularmente, penso que estas instituições são de suma importância e defendo sua existência. No entanto, é preciso reconhecer que não há sempre reciprocidade delas para com a música atual. Mas creio que isto esteja mudando, na medida em que cabeças mais abertas estão passando a dirigir estas instituições. O próprio projeto que envolve a obra “labORAtorio” não teria sido possível o maestro Jamil Maluf e a Orquestra Experimental de Repertório. Por sua iniciativa, a Orquestra Municipal de São Paulo estreará este ano, pela primeira vez na América Latina, uma obra importantíssima de Karlheinz Stockhausen. A OSESP e o maestro John Neschling, bem como a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo e o maestro Abel Rocha, estão também incentivando a produção atual ao encomendar peças a compositores atuantes.

Como você vê o papel da vanguarda musical num contexto no qual o público majoritariamente está interessado no antigo e no já conhecido?

Hoje em dia a palavra “vanguarda” caiu em desuso. Mas é preciso deixar claro: termos como “vanguarda” e “gênio” são historicamente datados, perseguidos pelos conservadores e, num certo sentido, ultrapassados. Ambos estão indiretamente associados à estética do Romantismo, mas é preciso reconhecer que estão absolutamente vívidos e válidos, e que são mesmo imprescindíveis na evolução das artes e das ciências.

Apesar de a música de vanguarda não marcar presença na maioria dos concertos é importante ressaltar que há um público considerável interessado neste tipo de música, algo que testemunho, por exemplo, pela quantidade de gente que procura os materiais que produzo.

Além de seu “ativismo” com a música de vanguarda você é também bastante lembrado por sua considerações bastante hostis à música popular, tendo inclusive afirmado que, “afinal, é melhor fazer música popular do que sair matando gente por aí”. Qual sua visão sobre a música popular nos dias atuais?

Vejo esta questão de dois pontos de vista. Primeiramente, pelo prisma do músico, quanto menos chance ele tiver para se desenvolver tecnicamente, mais ele estará vinculado a uma expressão de tipo popular. Neste contexto, respeito aquele músico que transparece um caráter genuíno dentro dos moldes aos quais ele está, de alguma forma, atado. Por outro lado, há diversos músicos que tiveram chance de se aprimorar artisticamente, mas que se deixaram atrair pelas regras do mercado e pelas graças da indústria cultural. Estes faço questão de desprezar.

Em segundo lugar, em relação à música propriamente dita, me interessa refletir e discutir sobre a linguagem e suas técnicas expressivas, sempre dentro de uma perspectiva “transgressiva”. Não condeno a noção de progresso, mas introduzi uma outra mais atual: “trans-gresso”. Para mim é como se existissem duas músicas, a “Música” e a “música de mercado”, sendo que esta última que não tem nada a ver com a música histórica e artisticamente interessante. Particularmente, nunca concordei com a idéia de um hibridismo de erudito e popular. Você acaba não fazendo bem nem uma coisa, nem outra.

Sidney Molina, violonista do grupo Quaternaglia.

Umas das grandes peculiaridades do Quaternaglia é que, ao contrário da grande maioria dos grupos de câmara que executam um repertório pré-existente, em torno de suas atividades foi criado um repertório novo, praticamente cativo ao grupo. O que o motivou isto?

Na verdade, consideramos isto uma fase de nosso trabalho. Nosso primeiro álbum, por exemplo, apenas uma peça foi composta especialmente para nós, sendo o restante dedicado a obras de grandes compositores clássicos, como cubano Leo Brouwer, e com transcrições para quatro violões de peças de Heitor Villa-Lobos e Igor Stravinsky. Já no segundo disco passamos para um repertório totalmente diferente, dedicado às transcrições de música antiga, uma época em que a indicação da formação instrumental não era parte da composição musical e por isto foi possível sua adaptação para a nossa formação. Apenas posteriormente é que nosso trabalho começou a despertar o interesse de compositores que então passaram a escrever um repertório criado especialmente pra nós. E tivemos a sorte de contar com grandes músicos como Egberto Gismonti e Paulo Bellinati. Este trabalho posteriormente estendido a compositores de uma nova geração, ao mesmo tempo em que passamos a resgatar do esquecimento verdadeiras obras primas, como um quarteto de Radamés Gnatalli.

Qual é a diferença em trabalhar a obra de um compositor vivo?

Nós sentimos que os nossos critérios de interpretação, como a leitura da partitura e o emprego da técnica instrumental, não são os únicos que irão determinar o resultado final. Quando um compositor que acompanha nosso trabalho estabelece-se uma relação que defino como uma “saudável tensão”. Nem sempre o compositor aceita todas as sugestões iniciais do grupo. Por outro lado, o compositor nem sempre está a par das problemáticas de um quarteto de violão e a partir daí estabelecemos um diálogo para obter um melhor resultado musical. Curiosamente, é a partir deste processo conflituoso que surge uma interpretação musical mais madura, para somente então ser apresentada e gravada.

Apesar do direcionamento notoriamente clássico do grupo, o violão é por natureza um instrumento ligado à cultura popular. Como é lidar com este aparente antagonismo?

Acredito que um importante ponto de diferença de nosso grupo é que todos nós possuímos formação clássica, principalmente no que se refere à técnica do instrumental. Temos como referência grandes violonistas clássicos, como Andrés Segovia, por exemplo. Pelo outro lado, há um amplo leque de relacionamento entre o popular e o erudito que cotidianamente temos que lidar em nosso repertório, e como intérpretes, temos que estar preparados para lidar as diversas facetas desta união. O que nos interessa é justamente uma escritura musical que ponha estas diferenças e semelhanças em pauta, que trate destas questões, destes antagonismos.

No ano passado, o Quaternaglia realizou sua quinta turnê pelos EUA. Como foi a recepção do público norte-americano diante da proposta toda particular do grupo?

Além de uma ótima receptividade junto ao público fomos muito bem recebido pela crítica especializada local, com diversos artigos e resenhas sobre nossos concertos (coisa rara de acontecer aqui no Brasil). Creio que os pontos contaram ao nosso favor são nossa ênfase ao trabalho camerístico, a nossa constante busca por uma cor e sonoridade própria e a própria questão do repertório.

Para a nossa surpresa, nosso repertório tem sido muito bem aceito, inclusive as obras dos jovens compositores, tais como Paulo Tiné, Douglas Lora, Rodrigo Vitta, e Sergio Molina. E isto mesmo diante de clássicos do repertório violonístico mundial. Curiosamente, muitas obras originalmente escritas para nós estão sendo gravadas e apresentadas por outros grupos estrangeiros como, por exemplo, o renomado Los Angeles Guitar Quartet, que já gravou três peças de nosso repertório.

07 março 2006

Um músico entre dois mundos

Os cem anos de Radamés Gnatalli e sua música entre o clássico e o popular

O que o “Concerto No. 1 para Piano e Orquestra” de Tchaikovsky, os choros de Pixinguinha e a novela Roque Santeiro têm em comum? Aparentemente nada poderia ligar coisas tão distantes, a não ser o talento excepcional de um dos maiores músicos que o Brasil já conheceu. Trate-se do compositor, pianista e arranjador carioca Radamés Gnatalli, que este ano, se vivo, comemoraria cem anos de idade em 27 de janeiro (mesmo dia de nascimento de outro aquariano famoso, W. A. Mozart).

Filho de músicos imigrantes italianos, desde tenra idade Gnatalli teve um contato íntimo com a música, que estudou ao longo de sua infância na cidade de Porto Alegre, aperfeiçoando-se na tradição clássica com aulas de piano e viola erudita no Instituto de Belas Artes. Porém, já no início da década 1920, o músico já possuía domínio de dois importantes instrumentos da tradição popular brasileira, isto é, o cavaquinho e o violão.

Após trabalhar esporadicamente em orquestras de cinema e de bailes, Gnatalli investiu na carreira de pianista concertista, interpretando difíceis obras de compositores como Franz Liszt e Johann Sebastiann Bach, além do famigerado concerto de Tchaikovsky com o qual solou com sucesso no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sob a regência de Francisco Braga (mais conhecido como o compositor de nosso Hino à Bandeira).

A propósito desta apresentação na então capital da República, Gnatalli travou contato com um dos grandes nomes da música popular de então, o pianista e compositor Ernesto Nazaré (autor de sucessos como “Odeon” e “Brejeiro”).

Se até então, toda sua história de vida estava marcada pela confluência entre a música popular e clássica (característica esta até hoje muito presente nos músicos de nosso país). No entanto, foram as condições do mercado musical clássico da época que impediram Gnatalli a se firmar como concertista clássico. Afinal, se hoje em dia – com todas as facilidades de meios de comunicação e mídias digitais – já é difícil fazer deslanchar a carreira internacional de um músico de talento, imagine isto numa época em que somada a toda dificuldade de estabelecer contato com exterior, constata-se a virtual inexistência de um verdadeiro mercado musical clássico nacional.

No entanto, seria injusto afirmar que o caminho que Gnatalli percorreu em sua carreira deveu-se apenas à falta de oportunidade como concertista: apesar de caprichoso, o destino, por fim, mostrou-se musicalmente generoso para com ele (e principalmente com nós, que podemos apreciar sua obra).

Ao longo da década de 20, Gnatalli envolveu-se em inúmeras atividades clássicas e populares, viajando com uma constância incrível entre o eixo Rio-Porto Alegre, período fundamental em sua formação como arranjador – com diversos trabalhos realizados para as orquestras que pipocavam nos populares cine-teatros – e como compositor clássico, estreando diversas obras em teatros “sérios”, como o São Pedro de Porto Alegre.

É a partir da década de 1930 que Gnatalli passa a viver mais intensamente a pulsante música popular carioca que então começava a se difundir, incluindo aí nomes como Manuel da Conceição, Lamartine Barros e Pixiguinha, este último por quem Gnatalli tinha um carinho especial (“era genial e foi o melhor flautista e compositor de choro que eu vi até hoje”), realizando diversos arranjos de seus choros. Em 1932 Gnatalli foi contratado pela gravadora Victor, que além de arranjos, passou a gravar sua composições próprias, como os choros “Urbano” e “Espritado”.

Porém, é em 1934 quando ocorrerá um dos principais fatos de sua carreira, ocasião em que assume o cargo de dirigente de orquestra da recém fundada Rádio Nacional, instituição na qual prestou 30 anos de serviço, que incluía desde a regência da orquestra da instituição, a arranjos, composições, solos e complementação do corpo instrumental da orquestra, numa rotina de factótum musical que poucas pessoas teriam capacidade de desempenhar.

A fama de seu talento e competência musical logo atravessou as fronteiras do país, e em 1941 passou oitos meses em Buenos Aires, onde comandou o programa “Hora do Brasil” (nada a ver com seu homônimo brasileiro lançado em 1939 pelo governo Vargas).

Em 1943, por fim, ganhou na Rádio Nacional um programa só seu chamado “Um milhão de melodias”, logo se tornando um sucesso de público e a oportunidade que Gnatalli tinha para divulgar composições próprias, além de prestar homenagens às suas referências musicais, como o próprio Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Zequinha de Abreu e Chiquinha Gonzaga.

Seu cotidiano na Rádio Nacional foi o meio que o conduziu para incipiente televisão brasileira, que em seus primórdios, baseava suas atrações nos formatos dos programas de rádio de então. Foi assim que ele, na década de 1960, trabalhou como arranjador para a TV Excelsior e posteriormente para a TV Globo, onde realizou, entre inúmeros trabalhos, a música incidental da novela “Roque Santeiro”, de 1986, então um marco na teledramaturgia nacional.

Ao longo das décadas em que seu trabalho com a música popular se firmou como seu ganha-pão, paralelamente Gnatalli foi construindo um repertório clássico – ou mais precisamente, não comercial – que, ainda de forma tímida, ganhava espaço com diversas obras estreadas em vida, muitas delas inclusive no exterior (tal como sua “Brasiliana No. 1”, executada em 1945 pela orquestra da BBC de Londres).

Na verdade, é com Gnatalli que a distinção entre arranjo e composição passa a ser uma mera (e freqüentemente ineficiente) ferramenta de classificação entre uma música derivada de um tema popular e outra construída a partir de materiais originais.

Por um lado, Gnatalli passa a dar a seus arranjos de música popular uma sofisticação digna das melhores partituras acadêmicas. Pelo outro, sua música clássica está embebida em um rico cabedal de influências rítmicas e melódicas da música popular urbana. São essas características que gerariam uma escritura híbrida – de certa forma, já presentes em algumas obras de Heitor Villa-Lobos – que viria a marcar toda uma geração de grandes músicos-arranjadores, como Tom Jobim, Francis Hime, Cyro Pereira e Nelson Ayres (para ficarmos em apenas alguns nomes).

Morto em fevereiro de 1988, Gnatalli não foi apenas mais um grande nome da história da música brasileira. Mais do que isto, sua obra desbrava caminhos ainda poucos explorados, e sua escritura musical é e será a matriz de muitas gerações de músicos brasileiros que quiserem trilhar “o caminho do meio”.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

Entrevista com o violonista Paulo Porto Alegre (continuação da matéira sobre Radamés Gnatalli)

Em virtude de seus cem anos de nascimento, janeiro foi um mês em que a obra Radamés Gnatalli foi explorada maciçamente (por assim dizer) através da mídia e por concertos. Passada a enxurrada, o Sesc Ipiranga de São Paulo continua uma série mensal que até maio (ver quadro) apresentará uma significativa parcela da obra de câmara de Gnatalli. O curador Paulo Porto Alegre – compositor, violonista e ex-aluno de Gnatalli – fala sobre sua relação com o mestre e sua música.

Qual foi a maior lição que você tirou dos anos de aprendizado com Gnatalli?

Foi a que não existe diferença entre música popular e música clássica. Isto é uma coisa da cabeça das pessoas. Eu mesmo, que comecei tocando música popular, tinha esta divisão. E foi o Gnatalli quem me mostrou que é possível fazer os dois tipos de música, sem prejuízo nenhum para os dois lados. Pelo contrário!

Isto é uma característica da música brasileira ou podemos falar desta mistura em outros países?

Internacionalmente, existiram no século XIX as escolas nacionalistas de composição, que utilizaram quase que exclusivamente sua cultura folclórica, apenas se aproximando de um tipo de música “mista”. Mas o passo decisivo foi Gnatalli quem deu, que se diferencia dos demais ao utilizar a música popular urbana (como o choro, o samba e a bossa-nova) como fonte de inspiração e não a música folclórica. Ele foi o único que trabalhou isto seriamente.

Como você analisa a obra de Gnatalli no contexto atual?

Infelizmente a obra dele é ainda desconhecida. Por um lado, sempre existiu um preconceito por parte dos músicos devido ao fato de sua música clássica ser tão popular. Pelo outro, ele sempre foi um sujeito meio desleixado, que nunca batalhou a divulgação e a publicação de sua obra. Por tudo isto, acredito que sua obra ainda não ocupa o devido patamar de sua grandeza musical.

Apesar de sua grande importância para a música popular brasileira, seu nome praticamente não aparece mais neste meio. O que poderia explicar este desaparecimento?

Não é que ele tenha sumido da música popular. Na verdade ele foi absorvido por ela. Se não fosse por ele tudo o que se faz na MPB de hoje seria diferente. Foi ele quem colocou ritmo de samba na orquestra e inventou uma série de outras coisas muito utilizadas hoje em dia. Isto sem contar a quantidade de cantores e intérpretes – como Orlando Silva, Chico Alves e Silvio Caldas – que têm uma dívida enorme com ele.
Entretanto, acho que o Gnatalli foi mesmo esquecido, inclusive por muitos que trabalharam e aprenderam com ele. Pouquíssimos intérpretes – tanto de música popular como de clássica – de fato se mantiveram fiéis a ele e à sua música, tocando periodicamente sua obra, não apenas num ano de comemoração como este.

Por natureza, o violão se encontra na fronteira entre o popular e o clássico. Isto necessariamente exige do violonista um preparo diferenciado dos músicos que se dedicam apenas ao clássico ou ao popular?

Acho que não. Na verdade tenho muitos colegas de violão clássico que não sabem nada popular, e vice-versa. O Gnatalli aproximou os dois mundos, mas nunca os dois lados entenderam isto muito bem, somente aqueles músicos com uma cabeça mais aberta. Acho que nós, violonistas clássicos, deveríamos ter um pouco de vergonha na cara e reconhecer nosso débito com a música popular, que sempre teve o violão como um instrumento nobre.

A questão da identidade nacional, muito presente na composição clássica brasileira é, em geral, circunscrita à influência de temas e ritmos populares. É possível pensar esta identidade por outros caminhos?

Penso que existe uma coisa no Brasil que se chamada cultura popular, que uma das mais fortes do mundo. Esta cultura engloba tudo: música, folclore, comida, dança, etc. Coisas que você reconhece como brasileiras. A música brasileira não está em seus estereótipos musicais – nas sincopas, nos acordes, nos ritmos – mas sim na cultura como um todo. Dá pra fazer música brasileira atonal (tal como Hermeto Pascal faz) ou outras linguagens que por vezes estão bem distantes das práticas populares feitas na rua. Acima de tudo, trata-se de um sentimento, que nos toca e nos é reconhecível.