Quando assunto é o Réquiem do compositor italiano Giuseppe Verdi (1813-1901) é lugar comum falar do estilo operístico por ele empregado nesta música escrita para uma liturgia católica, isto é, a missa dos mortos.
Estreada em 1874 para celebrar a memória do escritor italiano Alessandro Manzoni (autor do famoso romance “Os Noivos”), em sua “Messa da Requiem” Verdi se vale da escritura vocal-orquestral pela qual sua obra – totalmente voltada para a ópera – viria a ser conhecida: uma escritura musical que aprofunda o poder dos sentimentos em questão, que imprime uma carga explosiva a cada “parole armonizzate” que parece concentrar em si o mote dramático toda uma existência. Escrever um Réquiem como se fosse uma ópera é um fato que ainda pode causar estranhamento – quiçá reprovação – ou suscitar uma mera curiosidade.
Ninguém diz que uma “ópera-missa” é a única coisa que poderíamos esperar. Afinal, não foi privilégio de Verdi empregar na música sacra um estilo de composição notoriamente secular: desde a Renascença, passando aí inclusive pelo famoso Réquiem de Mozart, a “promiscuidade estilística” entre o sacro e o secular é um fato comum. O caso Verdi talvez chame mais atenção devido ao insuficiente fato de seu Réquiem ser sua única obra não operística de prestígio.
Dada a devida contextualização, o Réquiem de Verdi é pleno de uma música luminosa, com seus clarões de ira e tristeza que exigem um efetivo orquestral e vocal gigantesco para que sua grandeza possa ser realizada. A abertura da temporada 2006 da OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) foi uma oportunidade única para presenciar no Brasil toda a mágica desta partitura, na medida que o Coro da Fundação Príncipe de Astúrias (Espanha) veio em auxílio ao ainda numericamente insuficiente Coro da OSESP.
A competente regência do maestro John Neschling garantiu a beleza desta partitura, ao realçar os contrates de escritura e sentimentos em números de caracteres tão distintos como o sepulcral “Requiem aeternam”, o terno “Agnus Dei” e o furioso “Dies irae, dies illa” que Verdi, abrindo mão do roteiro litúrgico oficial, repete ao longo da obra, quem sabe aí dando sua visão pessoal sobre o mistério da morte.
O quarteto vocal solista escalado desempenhou tão bem seu papel que fica difícil escolher um destaque. Teve a soprano Hasmik Papian em seu belo canto clemência no “Libera me”, acompanhada do coro. Teve a beleza da voz grave e presente da meio-soprano Mzia Nioradze. Teve a discreta, mas bela presença do tenor Miroslav Dvorsky. E teve a volta do baixo Francesco Ellero D’Artegna, que se reabilita com o público paulistano depois de sua mesfistofélica apresentação no “Fausto” de Gounod, no ano passado.
A orquestra, com sua já habitual competência e potência sonora, se destaca como um todo. Porém, vale ressaltar a força e a vivacidade com a qual os naipes de metais e de percussão imprimiram nos momentos mais catárticos do Réquiem, que apesar de toda sua temática ligada à morte, renova a alma de cada vivo presente a uma apresentação tão cheia de luz como a que se pode presenciar na Sala São Paulo.
[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]
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