O que o “Concerto No. 1 para Piano e Orquestra” de Tchaikovsky, os choros de Pixinguinha e a novela Roque Santeiro têm em comum? Aparentemente nada poderia ligar coisas tão distantes, a não ser o talento excepcional de um dos maiores músicos que o Brasil já conheceu. Trate-se do compositor, pianista e arranjador carioca Radamés Gnatalli, que este ano, se vivo, comemoraria cem anos de idade em 27 de janeiro (mesmo dia de nascimento de outro aquariano famoso, W. A. Mozart).
Filho de músicos imigrantes italianos, desde tenra idade Gnatalli teve um contato íntimo com a música, que estudou ao longo de sua infância na cidade de Porto Alegre, aperfeiçoando-se na tradição clássica com aulas de piano e viola erudita no Instituto de Belas Artes. Porém, já no início da década 1920, o músico já possuía domínio de dois importantes instrumentos da tradição popular brasileira, isto é, o cavaquinho e o violão.
Após trabalhar esporadicamente em orquestras de cinema e de bailes, Gnatalli investiu na carreira de pianista concertista, interpretando difíceis obras de compositores como Franz Liszt e Johann Sebastiann Bach, além do famigerado concerto de Tchaikovsky com o qual solou com sucesso no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sob a regência de Francisco Braga (mais conhecido como o compositor de nosso Hino à Bandeira).
A propósito desta apresentação na então capital da República, Gnatalli travou contato com um dos grandes nomes da música popular de então, o pianista e compositor Ernesto Nazaré (autor de sucessos como “Odeon” e “Brejeiro”).
Se até então, toda sua história de vida estava marcada pela confluência entre a música popular e clássica (característica esta até hoje muito presente nos músicos de nosso país). No entanto, foram as condições do mercado musical clássico da época que impediram Gnatalli a se firmar como concertista clássico. Afinal, se hoje em dia – com todas as facilidades de meios de comunicação e mídias digitais – já é difícil fazer deslanchar a carreira internacional de um músico de talento, imagine isto numa época em que somada a toda dificuldade de estabelecer contato com exterior, constata-se a virtual inexistência de um verdadeiro mercado musical clássico nacional.
No entanto, seria injusto afirmar que o caminho que Gnatalli percorreu em sua carreira deveu-se apenas à falta de oportunidade como concertista: apesar de caprichoso, o destino, por fim, mostrou-se musicalmente generoso para com ele (e principalmente com nós, que podemos apreciar sua obra).
Ao longo da década de 20, Gnatalli envolveu-se em inúmeras atividades clássicas e populares, viajando com uma constância incrível entre o eixo Rio-Porto Alegre, período fundamental em sua formação como arranjador – com diversos trabalhos realizados para as orquestras que pipocavam nos populares cine-teatros – e como compositor clássico, estreando diversas obras em teatros “sérios”, como o São Pedro de Porto Alegre.
É a partir da década de 1930 que Gnatalli passa a viver mais intensamente a pulsante música popular carioca que então começava a se difundir, incluindo aí nomes como Manuel da Conceição, Lamartine Barros e Pixiguinha, este último por quem Gnatalli tinha um carinho especial (“era genial e foi o melhor flautista e compositor de choro que eu vi até hoje”), realizando diversos arranjos de seus choros. Em 1932 Gnatalli foi contratado pela gravadora Victor, que além de arranjos, passou a gravar sua composições próprias, como os choros “Urbano” e “Espritado”.
Porém, é em 1934 quando ocorrerá um dos principais fatos de sua carreira, ocasião em que assume o cargo de dirigente de orquestra da recém fundada Rádio Nacional, instituição na qual prestou 30 anos de serviço, que incluía desde a regência da orquestra da instituição, a arranjos, composições, solos e complementação do corpo instrumental da orquestra, numa rotina de factótum musical que poucas pessoas teriam capacidade de desempenhar.
A fama de seu talento e competência musical logo atravessou as fronteiras do país, e em 1941 passou oitos meses em Buenos Aires, onde comandou o programa “Hora do Brasil” (nada a ver com seu homônimo brasileiro lançado em 1939 pelo governo Vargas).
Em 1943, por fim, ganhou na Rádio Nacional um programa só seu chamado “Um milhão de melodias”, logo se tornando um sucesso de público e a oportunidade que Gnatalli tinha para divulgar composições próprias, além de prestar homenagens às suas referências musicais, como o próprio Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Zequinha de Abreu e Chiquinha Gonzaga.
Seu cotidiano na Rádio Nacional foi o meio que o conduziu para incipiente televisão brasileira, que em seus primórdios, baseava suas atrações nos formatos dos programas de rádio de então. Foi assim que ele, na década de 1960, trabalhou como arranjador para a TV Excelsior e posteriormente para a TV Globo, onde realizou, entre inúmeros trabalhos, a música incidental da novela “Roque Santeiro”, de 1986, então um marco na teledramaturgia nacional.
Ao longo das décadas em que seu trabalho com a música popular se firmou como seu ganha-pão, paralelamente Gnatalli foi construindo um repertório clássico – ou mais precisamente, não comercial – que, ainda de forma tímida, ganhava espaço com diversas obras estreadas em vida, muitas delas inclusive no exterior (tal como sua “Brasiliana No. 1”, executada em 1945 pela orquestra da BBC de Londres).
Na verdade, é com Gnatalli que a distinção entre arranjo e composição passa a ser uma mera (e freqüentemente ineficiente) ferramenta de classificação entre uma música derivada de um tema popular e outra construída a partir de materiais originais.
Por um lado, Gnatalli passa a dar a seus arranjos de música popular uma sofisticação digna das melhores partituras acadêmicas. Pelo outro, sua música clássica está embebida em um rico cabedal de influências rítmicas e melódicas da música popular urbana. São essas características que gerariam uma escritura híbrida – de certa forma, já presentes em algumas obras de Heitor Villa-Lobos – que viria a marcar toda uma geração de grandes músicos-arranjadores, como Tom Jobim, Francis Hime, Cyro Pereira e Nelson Ayres (para ficarmos em apenas alguns nomes).
Morto em fevereiro de 1988, Gnatalli não foi apenas mais um grande nome da história da música brasileira. Mais do que isto, sua obra desbrava caminhos ainda poucos explorados, e sua escritura musical é e será a matriz de muitas gerações de músicos brasileiros que quiserem trilhar “o caminho do meio”.
[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]
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