22 novembro 2007

Santa Cecília, rogai por nós, pecadores...

Afinal, apesar de não parecer, músico também é gente e precisa de proteção.

Dia 22 de novembro é dia de Santa Cecília, padroeira dos músicos. De tabela, nós, os músicos (católicos ou não, cristãos ou não) ganhamos um dia só pra nós. Parabéns aos músicos! Mas não se trata de uma celebração exclusiva, e quem gosta muito de música (melhor, a ama) pode também tomar para si esta data tão especial.

Mas por que, afinal, Santa Cecília se tornou a padroeira dos músicos?

Curiosamente, não há nenhuma razão muito forte para isto. Tida pela Igreja Católica como santa, virgem e mártir, há mesmo dúvidas de sua real existência, já que suas principais hagiografias carecem de base documental suficiente para fazer de sua biografia um fato verdadeiramente histórico. Em todo caso, vale a pena conhecer um pouco da santa que roga por nós, pecadores, ops, quero dizer, músicos e afins.

A hagiografia de Cecília conta que ela viveu na Roma da Antigüidade, sob o papado de Urbano I (175-230 d.C.), época na qual o Império Romano já vivia os sinais de sua decadência e o cristianismo ganhava cada vez mais adeptos (apesar da perseguição que sofriram).

Conta-se que Cecília era filha de uma rica família romana, e foi prometida por seu pai em casamento a um certo Valeriano. Durante as bodas, enquanto os instrumentistas divertiam os convidados com música "pagã" (na verdade, a música cerimonial da religião politeísta romana), a jovem santa entoava cantos cristãos. "Senhor, guardai sem mancha meu corpo e minha alma, para que não seja confundida", é o texto de um dos cânticos atribuídos a Cecília. Esta é a única passagem musical presente em sua história.

Durante a noite de núpcias, Cecília explica ao seu esposo sua condição de cristã e sua vocação para a castidade. Impressionado pelas palavras da santa, Valeriano pede uma prova da existência do Deus único. Cecília diz que apenas após sua conversão ao cristianismo é que ele poderia ter esta prova. Valeriano se batiza, e ao retornar para Cecília a encontra ao lado de um anjo, que coloca sobre a cabeça de cada um deles uma grinalda de rosas e lírios, consolidando a união casta e cristã do jovem casal.

Valeriano convence o irmão, Tibúrcio, a se batizar, e juntos se dedicam à difusão do cristianismo. Perseguidos, os irmão são mortos por ordem de Almáquio, "prefeito" de Roma. O mesmo destino é reservado para Cecília, que em seu martírio sobreviveu três dias com a cabeça semi-decapitada por soldados romanos (diz-se que a escultura na fotografia acima, de Carlo Maderno, foi realizada depois do artista ver o corpo incorrupto da santa. Detalhe, a escultura foi concluída em 1599!)

Santa de grande popularidade durante a Antigüidade e na alta Idade Média, a íntima relação de Santa Cecília com a música só veio a se consolidar no século XV, quando a santa passa a ser oficialmente considerada a padroeira dos músicos.

A cena das bodas pagãs de Cecília pode parecer insuficiente para que a ela seja atribuída a proteção dos músicos. Mas seu simbolismo é, em si, muito forte, pois ilustra bem o cerne da questão que caracterizará a música nos primórdios do cristianismo: o canto devocional (puro e simples) versus a lascívia da música instrumental dos cultos "pagãos".

Independetemente de fé, uma proteção a mais nunca é demais. Assim, viva Santa Cecília! Ou melhor, viva os músicos, e que Deus, ou D'us, ou, va lá, os deuses e seus enviados nos protejam das forças do mal que sempre nos circudam, seja em forma de desafinação, seja em forma da crua e burra burocracia e mediocridade que insistem em nos sufocar. Vade retro!

08 novembro 2007

Efeito Meneses

A arte do infinito no novo CD do violoncelista brasileiro

Já faz muitos anos – algo próximo de duas décadas – que o mercado fonográfico clássico mundial passa por uma crise que, mais recentemente, está mudando a forma de produção e consumo de música clássica. Neste novo cenário os álbuns produzidos por grandes selos, gravados por super-orquestras, conduzidas por super-maestros e amparados por orçamentos polpudos estão praticamente em extinção.

Em seu lugar surgem os pequenos selos, em produções independentes com orçamentos bem mais modestos, fato que não necessariamente acarreta na diminuição da qualidade artística. A grande música orquestral tende a conceder espaço à música de câmara, o que possibilita o registro diferenciado da performance de importantes solistas da contemporaneidade, que tem no repertório solista ou para conjunto a oportunidade de desenvolver aspectos únicos de sua arte. Mesmo as grandes gravadoras têm adotado este conceito antes tão próprio dos selos independentes.

Mas para que esta receita dê certo é fundamental a presença de um grande músico, que goze de ampla popularidade e carisma junto ao público. Neste sentido, é muito animador o fato de dois músicos brasileiros constarem entre os artistas mais procurados nas gôndolas de CDs clássicos das lojas nacionais. Tanto o pianista mineiro Nelson Freire, como o violoncelista pernambucano Antonio Meneses são certeza de boas vendas em um mercado que, além de pequeno, é caracterizado pela super-abundância de títulos importados.

É esta certeza que faz com que o Selo Clássicos, em parceria com o gravadora inglesa Avie Records, lance seu sétimo álbum, o terceiro com Meneses como estrela principal. Em “Mendelssohn - Música para Violoncelo e Piano” o violoncelista retoma a parceria com o pianista suíço Gérard Wyss, com quem já havia gravado um álbum dedicado a obra de Robert Schumann (anteriormente o músico havia lançado um CD duplo solo com as “Suítes” para violoncelo de J. S. Bach).

Se a arte de Meneses – que aos cinqüenta anos firma-se como um dos mais importantes violoncelistas do mundo – em si vale a compra do álbum, a música do compositor alemão Felix Mendelssohn-Bartholdy (1809-1847) não deixa por menos, revelando em sua música de câmara uma faceta muito diferente e instigante daquela tradicionalmente associada à sua música sinfônica, pela qual ele é mais conhecido do grande público. Autor de obras de referência do repertório orquestral – tais como a “Sinfonia Italiana” e a música incidental para a peça “Sonhos de uma noite de verão”, de William Shakespeare – em sua música de câmara Mendelssohn desenvolve de forma intensa uma natural vocação para o lirismo.

Autor de diversos lieder (“canções”, na tradição do Romantismo alemão), Mendelssohn destaca-se também pelas composições de diversas “canções sem palavras”, nas quais a voz humana é sublimada pela imaterialidade semântica da música instrumental. O compositor compôs apenas uma “canção sem palavra” para violoncelo e piano (seu Opus 109, presente no álbum), mas não seria exagerado ouvir o restante de sua produção para esta formação como um duo no qual o violoncelista é metamorfoseado em um barítono que traz em sua voz todo um universo de inflexões sentimentais.

É desta forma, como um grande ciclo de lieder sem palavras, que suas “Sonatas” No. 1 e No. 2 para violoncelo e piano podem ser apreciadas pela arte de Meneses, cujo o virtuosismo nas nuances dinâmicas e nas matizes tímbricas fazem da escuta repetida deste álbum uma necessidade: é impossível apreender Meneses de uma só vez.

A idéia do violoncelo enquanto voz solista é uma característica tão marcante neste repertório que álbum traz ainda arranjos de duas “Canções sem palavras” (Op.19a, Nos. 1 e 6), originalmente escritas para piano solo.

Certa vez o escritor e poeta alemão E.T.A. Hoffmann (1776-1822) escreveu que “a música instrumental é a única música verdadeiramente Romântica, porque o infinito é seu objeto”, e ouvir Meneses enveredando pelas espessuras das partituras de Mendelssohn é um bom meio de entender o que o infinito em música pode significar.

Serviço:
“Mendelssohn - Música para Violoncelo e Piano”
Antonio Meneses (violoncelo) e Gérard Wyss (piano)
Selo Clássicos, R$ 37


Apendix: Melhor que Meneses gravado, só ao vivo.

No início desta semana a Sociedade de Cultura Artística encerrou sua temporada 2007 com duas apresentações da Orquestra Filarmônica de Varsóvia que, sob a regência de Antoni Wit, teve o Antonio Meneses como principal atração, ao programar para suas récitas o “Concerto para Violoncelo” do compositor inglês Edward Elgar (1857-1934).

Peça pouco conhecida do grande público, o “Concerto” de Elgar mostra-se um verdadeiro tour-de-force para o violoncelista, não apenas por sua complexidade técnica, mas também pela heterogeneidade de sua escritura. Há décadas presente no repertório de Meneses, na apresentação da última segunda-feira o músico mostrou porque sua interpretação é referência, mostrando-se à vontade com a obra, deleitando a audiência com sua maestria. E o que pode ser melhor que Meneses senão o próprio ao vivo?

No ano da morte do violoncelista russo Mstisláv Rostropóvtch (1927-2007), não é exagero afirmar que pelo famoso palco paulistano passaram os principais violoncelistas da atualidade, na medida em que, além de Meneses, o público foi agraciado por apresentações memoráveis de Yo-Yo Ma. A temporada termina e fica-se na expectativa de que outros momentos memoráveis estejam presentes no novo ano que se aproxima.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

01 novembro 2007

Bobagem faraônica

Cheia de pretensão, “Aida Monumental Opera” é um espetáculo tedioso e de má qualidade técnica.

Estreou no fim de semana passado, em São Paulo, a temporada brasileira do espetáculo “Aida Monumental Opera”, que ficará em cartaz até 4 de novembro, antes de seguir em turnê para Montevidéu e Buenos Aires. Trata-se de uma montagem em moldes “contemporâneos” (tal como alardeado pelos alto-falantes antes do início da apresentação) da célebre ópera “Aida”, de Giuseppe Verdi (1813-1901).

“Aida Monumental Opera” é um dos empreendimentos do produtor Franz Abraham, cuja empresa Art Concerts notabilizou-se mundialmente pela montagem de espetáculos com forte apelo popular baseado em peças célebres do repertório clássico, tal como a cantata “Carmina Burana”, de Carl Orff, e a ópera “Carmen”, de Georges Bizet. Na teoria, a proposta da “Monumental Opera” é uma renovação da linguagem cênica, apostando no gigantismo do cenário, no uso maciço de novas tecnologias e utilizando como espaço de apresentação não as tradicionais casas de óperas, mas sim ginásios e casas de show.

O mundo da música clássica é notoriamente associado à tradição, consolidada sobre hábitos e valores antiqüíssimos, profundamente arraigados no imaginário e na expectativa do público. Não raro a força desta tradição transforma a música em um objeto de devoção. Desta forma suas apresentações e performances não raro ganham ares de ritual sagrado, sólido e intocável. Mantida a tradição, corre-se o risco de congelar a linguagem e fazer da criatividade elemento indesejável. Neste sentido, novas propostas serão sempre bem-vindas, como importante elemento de renovação e mesmo de perpetuação da tradição.

Entretanto, “novidade” é a última coisa que “Aida Monumental Opera” proporciona. Dirigida por Joseph Rochlitz, o espetáculo é conduzido de forma tediosa, ressaltada pela má qualidade técnica em diversos aspectos.

Para começar, não se deixe iludir pela palavra “monumental”, nem pelas famigeradas fotos de pirâmides dos anúncios do espetáculo, pois quando se entra no local depara-se com um palco de dimensões normais, que inclusive parece bem diminuto frente à área total do Credicard Hall. Comparado o que as casas de ópera tradicionais há décadas já fazem, o cenário desta “super-produção” é mesmo pobre, baseado numa estrutura simples de escadas e duas portas centrais (uma ao alto e no nível do palco), onde observa-se a falta de capricho na fixação dos pisos e no amassado dos tecidos onde serão projetadas as imagens da cenografia virtual. A propósito, vale a pena ressaltar que o uso de “cenário virtual” (cujos elementos cênicos concretamente não existem, mas são projetados em telas dispostas no palco) não é novidade, assim como toda a proposta visual de Pier’Alli, que abusa dos clichês de cultura egípcia antiga. Pirâmides, hieróglifos e outros elementos tornam-se kitsch nos grafismos computacionais gerados por Sergio Metalli. E por falar em kitsch, o tão alardeado uso de labaredas e línguas de fogo ao longo da apresentação resumem-se a isto: a uma tentativa de distração do vazio artístico que impregna todo o espetáculo.

O uso de cenários virtuais requer necessariamente muita habilidade no manejo da luz, já que seu excesso pode literalmente sumir com eles. Resultado: o espetáculo ocorre praticamente na penumbra, e mesmo pelos telões dispostos nas laterais da sala não foi possível acompanhar a expressão dos cantores. Aliás, quem tentou acompanhar o espetáculo pelos telões se deparou com uma equipe mal preparada, que parecia mesmo empenhada em mostrar tudo aquilo que não era relevante. Só não foi mais constrangedor que os bailados, com dançarinos mal sincronizados e com pouco espaço para realizar a dispensável coreografia de Simona Chiesa.

Todos os pecados no âmbito cênico poderiam ser perdoados (ainda que parcialmente) caso se presenciasse uma fruição musical “monumental”. Mas é justamente aí onde reside um dos maiores problemas do espetáculo, já que é oferecida ao público uma dimensão muito pobre da grandeza sonora que Verdi confere a esta ópera.

Tal como é muito comum em espetáculos desta natureza, tanto a orquestra, como o coral e os solistas são amplificados. Isto em si não é problema, mesmo que os mais conservadores torçam o nariz para a microfonação de vozes e instrumentos acústicos. Mas à parte alguns acidentes técnicos, o principal problema foi mesmo a falta de qualidade da amplificação, que beirou a indigência. Numa época onde mesmo equipamentos domésticos propiciam uma experiência sonora mais realista, por meio de vários alto-falantes dispostos estrategicamente na sala, é inadmissível um espetáculo com estas pretensões basear sua difusão na estereofonia, com apenas dois grupos de amplificadores dispostos na boca de cena. Soma-se ainda a péssima qualidade destes alto-falantes, pelos quais se ouvia mais ruídos e chiados do que as nuances dos instrumentos e das vozes. Na realização sonora de Gerd Drücker a música perdeu toda sua profundidade, se transformado numa pálida representação da partitura.

Com tamanho “filtro”, fica mesmo impossível avaliar o trabalho que o regente Walter Haupt realizou com a orquestra arregimentada para o evento. Apesar destes empecilhos, fica muito evidente o quanto os cantores ficam desgastados num esquema de trabalho como este. O que há para se deleitar em vozes que estão sendo utilizadas como animais de carga?

A falta de capricho parece mesmo a principal característica de “Aida Monumental Opera”, pois até no libreto ele se fez presente, em incontáveis erros de ortografia (“molodia” ao invés de “melodia”, “senguinte” no lugar de “seguinte”, “camião”/“caminhão”, “votos du um bom espetáculo”, etc.).

Ao final de tudo surgem uma dúvida e uma certeza. A dúvida: qual o propósito disto tudo? A certeza: nunca subestimarmos o poder da propaganda e das expectativas que elas geram, ao ponto de fazer espetáculos lamentáveis desejáveis objetos de entretenimento e, pior, que geram filhotes ao redor do mundo.

Serviço:

“Aida Monumental Opera”
Credicard Hall – SP
Av. das Nações Unidas, 17955 - Marginal Pinheiro
11 6846 6000

Ingressos de R$ 160 a R$ 320

Novembro: dias 01 (21:30), 02 (22h), 03 (17 e 22 h.) e 04 (15:30 e 20:30)

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]