29 maio 2012

Aforismos decorrentes (e inconseqüentes) sobre o falsificador

Para o leitor regular da revista ou do site Concerto não é novidade todo o barulho que se seguiu à publicação de meu artigo “O falsificador”, a propósito da vinda de André Rieu ao Brasil e o grande sucesso de vendas de seus espetáculos. Especialmente a partir da publicação do artigo no perfil Facebook da Revista Concerto iniciou-se uma grande discussão, com os mais diferentes pontos de vistas e argumentação.

Quando a argumentação faltava ao pró-Rieu, apelou-se mesmo para ignorância. Em meio a tantos comentários virulentos sobre minha pessoa, cheguei mesmo a pensar que estariam importando do Haiti alguns bonecos de vudu meus para serem vendidos na porta do Ginásio do Ibirapuera.

Como cheguei a comentar com um amigo, quando se está no meio de uma polêmica o melhor é manter-se quieto no canto, e tomar os afagos e as porradas que lhe são devidas. Fiquei em dúvida se valeria a pena escrever mais sobre o assunto. Não quero re-articular meus argumentos sobre o pop-star da música clássica: o que tinha a dizer sobre ele e sua proposta está no artigo. Mas a torrente que se seguiu trouxe coisas novas não sobre ele, mas sobre como a questão da música clássica, da crítica e do gosto está sendo debatida no país.

São tantas coisas que articulá-las num texto coeso seria um trabalho penoso para escrever e enfadonho para o leitor. Então, apostarei abaixo na linguagem direta e sintética dos aforismos, inconseqüentes, quase aleatórios, que me passaram pela cabeça a partir de toda esta confusão.

- A importação dos espetáculos do André Rieu faz pensar se já não é hora de retomarmos a reserva de mercado.

- Na prévia do show realizada no programa do Faustão nenhum fã de Rieu se sentiu minimamente ofendido em seu senso patriótico ao ouvir a “Aquarela do Brasil” em versão fiesta mexicana? Ah, não perceberam? Hum, isto explica muita coisa...


- A mistura André Rieu com Michel Teló serviu para provar uma coisa: o que é ruim pode sim ficar muito pior. Os cientistas sociais e musicólogos só não decidiram ainda o que piorou com quem.


- Rieu vem ao Brasil com sua orquestra de “top solistas”. E aqueles violinos desencontrados ficam como?


- O brasileiro, o famoso “homem cordial”, como um dia já definiu Buarque de Hollanda (não o Francisco, nem a ministra, mas sim o pai Serjão), simplesmente perde as estribeiras quando é convidado a estabelecer um mínimo de postura crítica com algo que adora e cultua: entre acusações de frustrado e invejoso rolaram vários pedidos e sugestões para a minha demissão. Ah, esta nossa jovem democracia e nosso imaturo senso de liberdade...


- Não discordo que, como ser humano, tenha inveja. Aliás, já que é para exorcizar, tenho inveja sim! Tenho inveja do Luciano Berio, do Gustav Mahler, de Igor Stravinsky, do Claudio Monteverdi e de um monte de outros compositores. Agora, inveja do André Rieu? Aff...


- Vou dar mais munição para os fãs do Rieu: o Faustão, ex-gordo, fala que o André Rieu é o maior violinista do planeta e todo mundo acredita; eu, que sou gordo e falo que ele é um picareta, ninguém dá a mínima. Posso processar os fãs do Rieu por bulling então?


- Corolário desta situação: na balança das opiniões vence não que tem mais peso, mas quem consegue meter a mão no fiel da balança.


- Das críticas à minha crítica, nenhuma me contra argumentou nos termos que empreguei no texto. Como diria Umberto Eco, quando se é um martelo, vê-se todo o mundo como pregos.


- Tem gente que falou que André Rieu populariza a música clássica. Ué, se é assim, por que ele não fez um show gratuito no Parque do Ibirapuera (a exemplo do que fazem inúmeras orquestras brasileiras e estrangeiras) para dar uma alternativa aos seus fãs que não podem pagar centenas de reais por um lugar em seu show?


- Fala-se com muita naturalidade de “popularização da música clássica”. O que isto significa, afinal? É como falar de bacalhoadização da feijoada? Por que todo mundo que vem com este lero-lero não fala de DEMOCRATIZAÇÃO do acesso à música clássica e à cultura de maneira geral? Por que quando se pensa em algo para o povo tira-se com a maior naturalidade e cara-de-pau o valor e a dignidade do que será oferecido? É esta mesma lógica que explica a indigência das escolas, dos transportes, das moradias e dos hospitais “para o povo”?


- E tem aqueles que, ao defenderem o Rieu, falaram pérolas do tipo “se dá prazer, que mal tem?”, “ele está prejudicando a vida de alguém?” ou mesmo “ah, ele é tão bonzinho!”. Passividade pouca é bobagem...


- Se no alto filosofês tem gente que aposta na inextricável relação entre ÉTICA e ESTÉTICA, fico então pensando que o apelo mundial de André Rieu só pode ser entendido como um mal-agouro. Seria ele o primeiro cavaleiro do Apocalipse?!


- André Rieu e seu violino Stradivarius são prova cabal de que o meio NÃO É a mensagem (e que Marshall McLuhan, que cunhou a expressão “o meio é a mensagem”, revire em seu túmulo).
- Faustão apresentou falou “André Rieu e seu violino mágico”. Mágico?! O violino pode ser, mas ele, nem com macumba ou reza braba.


- Recado do além: ouvi falar que Antonio Stradivari também está se revirando do túmulo.
- Toda a atual discussão entre os prós e os contras Rieu prova uma coisa: o brasileiro só se une mesmo diante da tragédia.


- Quando André Rieu deixar o país ele irá deixar saudades... para seu produtor, para os guardadores de carro do entorno do Ginásio do Ibirapuera, para os executivos da Ingresso Rápido, enfim, para todos aqueles que se refastelaram na usura às custas da humilhação estética e da ofensa ao bom gosto.


¬- Quase terminando: no país em que a frase “os incomodados que se mudem” é tida como verdade popular só reforça a necessidade de subverter um velho ditado “gosto não se discute”. Ora, em arte e cultura vamos discutir o que então?


- Agora para encerrar: sobre o valor da discussão, cito o escritor Salman Rushdie: “No Paraíso, as palavras adorar e discutir significam a mesma coisa”. Enquanto eu adorar a música, não me cansarei de discuti-la.

08 maio 2012

O falsificador

Com a chegada de André Rieu ao Brasil, o autoproclamado popstar da música clássica, levanta-se o debate: afinal, por que não vale a pena escutá-lo?

[Texto originalmente publicado na edição de maio de 2012 da Revista Concerto]

Por Leonardo Martinelli

No final deste mês se inicia no Ginásio do Ibirapuera, na capital paulista, a série de shows que André Rieu e sua companhia farão no país. Originalmente seriam apenas três apresentações, mas a enorme procura ampliou o número para 18, que se estenderão até o início de julho, com ingressos que podem chegar a R$ 400. A mesma dinâmica se observa em outros países, inclusive na Europa e nos Estados Unidos.

Autoproclamado popstar da música clássica, André Rieu é o protagonista de um dos maiores fenômenos da indústria fonográfica da atualidade. Para isso, ele aposta numa fórmula que vem aprimorando desde o início da década de 1990. Tudo começa com um espetáculo de forte apelo visual, no qual os principais estereótipos (reais ou imaginados) que orbitam no universo da música clássica são acentuados a ponto da total descaracterização. Cenários que remetem ao mundo mágico dos desenhos animados, músicos vestindo fraques de cortes extravagantes e musicistas paramentadas como bonecas de porcelana são elementos primordiais de um cenário dantesco.

Em segundo lugar, vem a música. Clássica ou popular, ela é invariavelmente travestida em arranjos paquidérmicos que atuam como um rolo compressor que esmaga aquilo que diferentes linguagens e estilos têm de melhor. Tudo isso é amalgamado pela própria figura de André Rieu, o anfitrião, com uma lábia simplória e um sorriso charlatanesco que arranca suspiros de sua audiência.
Rieu é apenas mais uma das crias daquilo que se costuma chamar de indústria cultural. Pensado como um grande negócio, seus espetáculos não apenas usurpam o patrimônio musical da humanidade. Pior, eles são artisticamente violentados com o propósito de ser mais “palatáveis”. E, pior ainda, dessa forma difunde-se uma ideia falsificada do que são a ópera e a música de concerto.

Há quem alegue que Rieu realiza importante contribuição ao popularizar a música clássica e que seria uma porta de entrada para este mundo. Não é verdade. Primeiro, porque o máximo que ele faz é se autopopularizar por meio da difusão do culto a sua figura (incluindo aí os mais diferentes tipos de souvenires). Sua estratégia visa a estabelecer um circuito de consumo fechado, no qual a compra de um DVD André Rieu conduz a compra de outro DVD André Rieu, e agora, para nós, a um dos caros ingressos de seus show. Nada vindo de fora é tolerado.

Em segundo lugar, é um argumento ingênuo (na melhor das hipóteses) achar que esses produtos atuam como introdução ao universo da arte. Fãs de Harry Poter não serão leitores de Shakespeare. Com o fim da série comercial de livros, ele migraram para outra, por exemplo, os volumes da “saga” Crepúsculo, e assim sucessivamente. Na prática, os atuais fãs de Rieu são as viúvas de Ray Coniff – seu famoso “arranjo” do Bolero de Ravel jamais conduziu seus fãs para a escuta da obra original.

Não se exclui a possibilidade de uma ou outra pessoa eventualmente cultivar um ambiente verdadeiramente artístico a partir do contato com esses enlatados culturais. Mas, comparado ao rastro de mau gosto e desinformação que eles deixam, é um preço alto demais a ser pago. Literalmente, pois é possível fazer coisas muito mais interessantes com a colossal quantidade de dinheiro que essas celebridades movimentam.

A propósito das desventuras literárias do famoso bruxinho, evoco aqui o termo que o crítico literário Harold Bloom usou para definir o sucesso do personagem: “desesperante”. Bloom argumenta que uma criança ou um adolescente tem plenas condições de começar sua vida de leitor com obras do mais alto valor artístico. Com a música não tem porque ser diferente. Que mal há em ouvir um Mozart, um Vivaldi ou mesmo um Johann Strauss sem a maquiagem grosseira promovida por Rieu? E olhe que não faltam no mercado produtos artisticamente honestos que propõem abordagens diferenciadas e acessíveis no amplo sentido do termo.
Apesar de desesperante, o próprio Bloom nos lembra que, ao longo da história da literatura, não faltam exemplos de grandes sucessos comerciais que logo passaram para o esquecimento. É a esperança que resta.

02 maio 2012

“Lulu” na selva dos sentidos

No ar a resenha "Lulu" na selva dos sentidos, crítica sobre a primeira montagem integral da famosa ópera de Alban Berg no XVI Festival Amazonas de Ópera, especial para o Site Concerto: http://www.concerto.com.br