A beleza de seu desenho já é, em si, algo de arrebatador: curvas elegantemente projetadas, partes milimetricamente encaixadas e o acabamento realizado com um esmero de dar inveja ao mais habilidoso dos ourives. Sua cor hipnotiza a qualquer par de olhos que esteja ao seu alcance. Todo seu conjunto está voltado para garantir uma performance excepcional, o que o torna objeto de veneração entre os simples mortais e de um ardente desejo entre os profissionais que desejam tê-lo entre suas mãos. Mas tanta beleza e tecnologia têm um custo, em geral, na casa dos milhões de dólares.
A descrição acima bem poderia ser aplicada a alguns automóveis da famosa scuderia de Maranello, fundada no século passado por Enzo Ferrari. Mas, no caso, refere-se a um tipo de tecnologia surgida no século XVI numa cidade mais ao norte da Itália, e que desde então tem se conservado insuperável em plena era da tecnologia laboratorial e computacional. Trata-se dos famosos violinos e instrumentos irmãos (como a viola e o violoncelo) produzidos em Cremona, às margens do rio Pó. Dentre os diversos construtores cremonenses de instrumentos musicais surgem nomes como Amati, Guarneri e, é claro, o da família Stradivari e seu patriarca, o luthier Antonio (“luthier” é o profissional que constrói ou conserta instrumentos musicais, cada qual com sua especialidade).
Tido como as mais perfeitas peças de artesanato, os violinos cremonenses – em especial, os fabricados entre o final do século XVII e início do XVIII – foram elevados à condição de “obra de arte” quando, por sua vez, virtuoses como o Giuseppe Tartini, Giovanni Battista Viotti e Niccolò Paganini ganharam, na sua época status, de popstar ao empunhar estas maravilhas diante de platéias exaltadas.
Este é o ponto de partida do livro “Stradivarius: cinco violinos, um violoncelo e três séculos de perfeição” do escritor britânico Toby Faber, recentemente lançado no Brasil (Record, 278 págs., R$ 39). O livro, bem entendido, se não propõe a realizar a impossível tarefa de esgotar o assunto em torno da lutheria cremonense nem de toda a trajetória dos Stradivarius até os dias de hoje (em tempo, Stradivarius, grafado com |us|, é a terminação em latim utilizada apenas para designar os instrumentos, enquanto que a figura do fabricante é designada em sua forma italiana, Stradivari).
Ao contrário, o livro mostra-se ao mesmo tempo elucidador para o músico profissional e acessível e apaixonante para leigo que apenas se interessa pelo assunto, constituindo exemplo singular na bibliografia brasileira. Talvez a inserção algumas ilustrações no corpo do texto facilitariam o entendimento da complexa arquitetura dos violinos, mas nada que uma dose boa vontade do leitor não resolva. Um modesto, mas útil glossário, seguido de uma rica bibliografia completam o caminho de acesso para aqueles que por ventura queiram se aprofundar no assunto.
Após uma breve e interessante introdução sobre as raízes da lutheria cremonense e da importância da família Amati para a consolidação da excelência dos violinos italianos, Faber toma como tema de seu livro a “vida” de um violoncelo e cinco violinos fabricados no ateliê de Antonio Stradivari. Cada um dos instrumentos biografados leva o nome de algum músico ou personalidade que já tenha sido seu proprietário (assim como boa parte dos instrumentos de cordas de alto padrão): o violoncelo Davidov, e os violinos Viotti, Khevenhüller, Paganini e Lipinski, sendo a única exceção do lendário violino Messias, assim batizado pelo fato Tarisio, um comerciante italiano do século XIX, ter feito muito suspense e segredo em torno deste instrumento (visando, é lógico, o aumento de seu valor de mercado), ocasionando o comentário de que ele “é como o Messias, que está sempre sendo esperado, mas nunca aparece”.
Apesar de ser um livro dedicado à apoteose da arte de Stradivari, a principal virtude da proposta de Faber é não se deixar seduzir pelo senso-comum a respeito das qualidades que fazem destes instrumentos os melhores do planeta. Isto é, ainda hoje em dia atribui-se a singularidade dos “Strads” (como eles são chamados em na Inglaterra e nos EUA) às suas características irreconstituíveis de manufatura, já que em termos de proporções os modelos Stradivarius são copiados infinitamente pelo mundo a fora.
A primeira destas características diz respeito às condições pelas quais as madeiras utilizadas passaram antes de serem transformadas em violinos: há uma forte hipótese que prega que, na época, as toras eram transportadas por rios (tal como feito nos produtos de nossa corrente devastação amazônica), e esta umidade adicional pode ser a responsável por algumas qualidades adicionais às propriedades acústicas da madeira.
A outra característica refere-se ao verniz utilizado no processo de finalização do instrumento, sendo cinzas vulcânicas um dos componentes exóticos recentemente encontrados na análise química destes compostos artesanais (que na época não tinham a base alcoólica, de rápida secagem, dos vernizes modernos).
Mas estas peculiaridades, na verdade, não consistem segredo algum para a comunidade de luthier na Cremona de então, pois as madeiras utilizadas em diversos ateliês eram provenientes da mesma região, e mesmo o verniz, aparentemente, mostra-se mais como um segredo da coletividade citadina cremonense do que exclusivo de algum de seus habitantes. Enfim, o mistério se mantém.
O que, no entanto, Faber deixa que claro é que, afora as qualidades musicais intrínsecas aos Stradivarius, o maior responsável pela magia que se criou em seu em torno foi quando, no século XIX, ao ser elevado ao patamar de tesouro, estes instrumentos passaram a ter seus destinos guiados pelo poder de capital, na medida em que ainda hoje ter um “Strad” no cofre significa deter ativo de fácil revenda em qualquer lugar do mundo.
Esta situação levou ao paradoxo de muitos Stradivarius estarem não nas mãos de músicos, mas sim de investidores ou instituição que eventualmente os emprestam, ou mesmo dão, a algum profissional, tal como ocorrido com o violinista Yehudi Menuhim, que ganhou um Stradivarius do magnata Henry Goldman.
Este estado de coisas fica bem evidente na trajetória do famoso Messias, que devido à aura de ser considerado o melhor Stradivarius já construído, praticamente nunca foi tocado ao longo de seus 290 anos de existência, e encontra-se hoje mudo, encarcerado numa vitrine blindada.
[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]
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