Linguagem gráfica de vídeos-clips é utilizada em ópera lançada em DVD
Desde sua invenção no século XVII a ópera entrou definitivamente na cultura ocidental, e parte deste sucesso pode ser creditada à riqueza visual que passou a acompanhar este espetáculo essencialmente musical. De forma mais ou menos paralela, artes plásticas e música encontraram na cenografia operística e de bailado seu ponto comum.
No século XX, com o advento da televisão e de outros meios comunicação e entretenimento surgidos a partir da popularização dos equipamentos eletrônicos, toda a cultura designada como música clássica limitou as possibilidades dessas novas mídias visuais a uma função meramente documental. Via de regra, as óperas filmadas são apenas o registro insípido do que se passou no palco e os concertos sinfônicos, na melhor das hipóteses, estão restritos a tomadas gerais da orquestra e closes sobre os instrumentos musicais auditivamente mais proeminentes em um dado instante.
Tudo isto pode ser entendido como mais um reflexo do conservadorismo que há tempos domina a cena clássica, que em diversos aspectos não assimilou as conquistas da modernidade (inclusa aí a própria música composta nos dias atuais).
Apesar disto, foram realizadas algumas tentativas isoladas para dar maior exuberância a estes registros áudios-visuais. Talvez o maior exemplo seja o longa-metragem “Fantasia”, no qual Walt Disney e o maestro Leopold Stokowsky unem-se para fazer da animação e da música uma só arte. Já nas décadas de 70 e 80, nos primórdios da era do vídeo-clip popular, o “über-maestro” austríaco Herbert von Karajan já fazia seus experimentos visuais, por exemplo, no vídeo da “Sinfonia No. 6” de Beethoven, com a Filarmônica de Berlin sendo gravada em um estúdio de cinema e não numa sala de concerto. Apesar de belos e interessantes exemplos, a moda nunca pegou.
Em meio a este ostracismo, chega ao mercado nacional um belo exemplo da união da música com a moderna linguagem da computação gráfica: trata-se da ópera “Le Rossignol” (“O Rouxinol”) do compositor russo Igor Stravinsky na produção da Ópera Nacional de Paris sob a regência de James Conlon (Virgin Classics/EMI, R$ 51).
Baseado no conto de fadas de Hans Christian Andersen, a ópera conta a história de um rouxinol (a soprano Natalie Dessay) que é convidado a cantar para o imperador da China (o barítono Albert Schagidullin), que literalmente se encanta com o pássaro. Entretanto, este é afugentado pelo barulho de um pássaro mecânico oferecido por três emissários japoneses e só retornará para, com seu canto, salvar das garras da Morte (a contralto Violeta Urmana) a vida do imperador doente.
Trata-se de uma história simples, naturalmente onírica, sobre a qual o uso delicado de recursos de computação gráfica desta vídeo-ópera, misturados com tomadas de cantores e de alguns instrumentos musicais, transmitem uma atmosfera impossível de ser obtida no palco de um teatro.
Sob a direção do artista gráfico francês Christian Chaudet, o “Rouxinol” de Stravinsky ganha uma dimensão surrealista, na qual elementos da cultura chinesa tradicional (tal como a cenografia virtual construída sob o modelo da Cidade Proibida) são colocados ao lado da luz néon dos anúncios que latejam nos grandes centros urbanos. Entre a gravação da trilha sonora e a finalização da parte visual, este ambicioso projeto consumiu cinco anos de produção.
Em alguns momentos fica a impressão de um certo deslumbramento com as possibilidades da computação gráfica, mas na maior parte do tempo a direção de Chaudet garante maior inteligibilidade a situações dramatúrgicas difíceis de se resolver no palco (o que não quer dizer que a subjetividade tenha sido colocada de lado).
Livre das amarras do palco italiano e da lei da gravidade, as personagens flutuam, cenários variam de dimensões minúsculas às colossais e o coro é visualmente sublimado, imprimindo um aspecto de “coro grego” (isto é, fora da ação cênica). Realizando pontes com nossa contemporaneidade, Chaudet usa um moderníssimo telefone celular para, por vezes, representar o rouxinol. O pássaro mecânico oferecido pelos enviados japoneses é um grotesco cartum em 3D e a Morte é metamorfoseada numa mercadora à frente de sua caixa registradora. Tudo isto ocorre no sonho de um garoto chinês, que tudo testemunha através de um vaso de cerâmica que desempenha a função de “lanterna mágica”.
Com tantos atrativos visuais é até fácil não prestarmos atenção na sensível interpretação musical do maestro James Conlon e do elenco vocal, que conta ainda com a mezzo Marie McLaughlin no papel da Cozinheira e com os baixos Laurent Naouri e Maxime Mikhailov como Camareiro e Bonzo, respectivamente.
Inteiramente cantada no original em russo, o DVD conta com legendas em diversos idiomas. Porém, não há nada em português, como é infelizmente de praxe na comercialização de produtos clássicos no Brasil. Mas antes de embarcar neste maravilhoso mundo de sonhos, atenção!: no menu inicial, selecione no menu “audio” a opção sem sonoplastia (“original music”), pois a infeliz inserção de ruídos cênicos – em especial, no segundo ato – é o calcanhar de Aquiles desta bela produção que merecer ser vista e revista.
[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]
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