24 novembro 2005

Fruto proibido

Novo CD de Cecilia Bartoli é dedicado ao repertório composto numa época em que a ópera foi banida de Roma.

Em Roma, o ano 1700 foi um ano de jubileu, isto é, inteiramente dedicado à comemoração religiosa (no caso, os 1700 anos do nascimento de Jesus Cristo). Desta forma, ficava proibida a apresentação de qualquer espetáculo público não religioso, tal como até recentemente ocorria no Brasil em qualquer "período santo" (quem nunca ouviu falar, ou mesmo viveu, nas antigas Semanas Santas em que todas rádios passavam a tocar música sacra e estabelecimentos como cinemas e teatros simplesmente deixavam de funcionar?).

Seguindo-se ao jubileu de 1700, uma série de condições políticas e religiosas foi prorrogando esta situação até 1710, quando após uma década ocorreram as primeiras tentativas de se retomar a produção de espetáculos não sacros públicos.

Neste período a ópera foi oficialmente considerada um gênero proibido. Entretanto, isto não quer dizer que ela não tenha sido feita: tal como recentemente observamos na história do Brasil, mesmo sob censura, músicos e artistas sempre acabam dando um jeito de fazer as coisas funcionarem, não raro com a colaboração (ainda que inconsciente) de seus algozes.

Na Roma do século XVIII compositores como Antonio Caldara (1670-1736), Alessando Scarlatti (1660-1725) e mesmo o alemão George Friederic Haendel (1685-1759) utilizaram diversos artifícios para que a escritura operística continuasse ocorrendo. Não era incomum a apresentação de óperas em audições privadas nos palácios dos mesmos cardeais que a proibiram publicamente.

Entretanto, a principal forma de driblar a censura eclesiástica era transpor as temáticas profanas da ópera para oratórios ou cantatas, que são espetáculos musicalmente idênticos à ópera, só que dedicados a alguma temática religiosa ou moral e sem a mesma sofisticação cênica.

É a este repertório que está dedicado o mais recente CD da mezzo-soprano italiana Cecilia Bartoli "Opera Proibita" (Decca, R$ 40,00 em média) que conta ainda com a participação do excepcional grupo de instrumentos barrocos Les Musiciens du Louvre, sob a direção de Marc Minkowski.

O álbum, sob a coordenação do musicólogo Claudio Osele, destaca trechos de alguns dos oratórios compostos por Caldara, Scarlatti e Haendel durante esta década de censura. Mais precisamente, foram selecionadas algumas das mais belas de árias que, numa época em que também era proibida a apresentação pública de mulheres, foram originalmente escritas para castrati (isto é, cantores com timbre de voz feminino em decorrência da castração feita ainda quando crianças).

Apesar de todo o interesse às referências históricas inerentes ao projeto, o álbum vale mesmo por mais uma demonstração de virtuosismo e musicalidade de Bartoli, a cargo de um repertório que parece ter sido composto especialmente para ela. Ao mesmo tempo em que a meio-soprano executa com espantosa afinação e precisão rítmica vertiginosas passagens em coloratura (seqüência de notas rápidas na região aguda da voz), como em "Un pensiero nemico di pace" de Haendel, ela garante toda a serenidade necessária às árias menos explosivas, como "Caldo sangue" de Scarlatti.

Porém, boa parte da execelência deste novo trabalho Bartoli está também nas mãos de Minkowski, que com a sonoridade autêntica e penetrante dos Musiciens du Louvre garante a sonoridade de acompanhamento indispensável para o melhor desfrute deste tipo de repertório que ainda é encontrado nas lojas em pobres versões para piano e voz.

Um dos grandes momentos do álbum é a ária "Lascia la spina" do oratório "Il Trionfo del Tempo e del Disinganno" de Handel: trata-se da versão sacra da famosa ária "Lascia ch'io pianga" da ópera "Rinaldo", também de Haendel. Na ópera, o amor terreno. No oratório, as reflexões não menos sugestivas de uma personagem chamada Piacere ("Prazer"). Vale a pena contrastar a com uma gravação que Bartoli fez anteriormente versão profana desta ária.

A adaptação de uma música profana para um texto sacro evidencia até que ponto o oratório e a ópera consistiam, na prática, num mesmo gênero cujas diferenças freqüentemente limitava-sem a questão cênica, já que em termos de temática coisas como o amor terreno, e mesmo o erotismo, sempre não raro apareciam em oratórios, ainda que travestido nos trajes do moralismo eclesiástico. É este prazer que só o fruto proibido pode proporcionar que encontramos pela sedutora voz de Bartoli.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

Um comentário:

Anônimo disse...

Pois bem , vou aproveitar as férias forçadas e aprender um pouco sobre música por aqui , ok?

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