29 abril 2006

Dez anos de canto na floresta

Festival Amazonas de Ópera é comemorado em grande estilo

Em 1996, o Teatro Amazonas completou 100 anos de existência, e para a ocasião o governo local – então sobre o comando de Amazonino Mendes – desejou comemorar o jubileu do teatro com uma gala-lírica, isto é, um concerto vocal de luxo, em geral com alguma voz de renome internacional como estrela principal. Para esta festa, foi escalado ninguém menos que o tenor espanhol José Carreras. Porém, a ausência de uma tradição musical na capital manauense há muito havia colocado o teatro e sua infra-estrutura técnica e musical no ostracismo, e para a referida ocasião foi necessário importar uma orquestra para acompanhar tenor “super-star”. Além disto, o aspecto claramente elitista da festa não repercutiu de forma positiva junto à comunidade.

Entretanto, a idéia de reativar o teatro estava no ar, e neste mesmo ano, a nebulosa figura do jovem violinista alemão Michael Jelden propôs a uma instância da secretaria de estado da educação do Amazonas (que então não possuía uma secretaria de cultura) a realização de uma de ópera – a aclamada “Carmem”, de Georges Bizet – com recursos estrangeiros e músicos provenientes de diferentes partes do país e do mundo. Em 1997 nascia o Festival Amazonas de Ópera (FAO), um evento singular na história da música clássica brasileira que, com o passar dos anos, viria a se firmar como um exemplo a ser seguido tanto em termos musicais como em produção técnica.
Para entendermos o atual sucesso do FAO é necessário analisarmos três linhas de força que possibilitaram que o evento chegasse em grande forma em sua décima edição.

Em primeiro lugar, sobressai a curiosa figura de Robério Braga, atual secretário de cultura, cargo que ocupa desde sua criação, tendo inclusive sobrevivido a uma mudança de governo (o Estado do Amazonas é atualmente governado por Eduardo Braga). Tal como recentemente ocorrido na relação entre a Osesp com o então secretário de cultura Marcos Mendonça, a presença de uma figura politicamente influente, que desde o princípio batalhe pelo efetivo apoio estatal, é fundamental para que projetos culturais desta envergadura sobrevivam aos caprichos das marés políticas. A história de Braga e do FAO se misturam, e mesmo atualmente o secretário acompanha todas as etapas do evento com uma voracidade pouco habitual em seus colegas dos demais Estados.

A segunda linha de força é o maestro Luis Fernando Malheiro, que em 1999 entra de forma definitiva na história do festival. Desde então, Malheiro mostra-se não apenas um grande regente de ópera – sempre escalando ótimos cantores nacionais e internacionais para os espetáculos – mas também um habilidoso administrador, equilibrando e gerindo as vicissitudes entre o ideal artístico e as limitações da realidade cotidiana da produção artística (por vezes bastantes hostis).

Em terceiro lugar, o inusitado da situação, isto é, a idéia quase delirante de realizar ópera numa cidade encravada na floresta amazônica que, apesar de toda sua urbanidade, ainda respira literal e metaforicamente o ar quente que sopra da floresta. E exotismo em torno da ópera na selva mostra-se especialmente importante quando se analisa a repercussão que o evento possui no exterior. Se já há alguns anos o FAO era acompanhado por interesse pelo público clássico brasileiro, em 2005 a apresentação integral das quatro óperas do “Anel do Nibelungo”, de Richard Wagner, catapultou a imagem do festival à primeira página do “The New York Times”.

Porém, nada disto ocorreu do dia pra noite, e se em seus primórdios o FAO começou de forma improvisada, hoje em dia ele comporta uma infra-estrutura própria invejável, que inclui a orquestra Amazonas Filarmônica, o Coral do Amazonas e a Central Técnica de Produção (CTP), este um enorme galpão totalmente dedicado à confecção de material cênico operístico e que foi tomado como referência para a construção de seu semelhante ligado ao Theatro Municipal de São Paulo (ver detalhes abaixo).

A excelência do FAO consolidou-se a tal ponto de inverter o fluxo de produções artísticas, pois hoje é Manaus que exporta suas montagens para os grandes centros urbanos brasileiros (tal como a ópera “Condor”, de Carlos Gomes, apresentada ano passado em São Paulo), sendo o festival uma das principais vitrines da cena lírica latino-americana para onde todos os anos – entre os meses de abril e maio – estão voltadas as atenções de especialistas e apaixonados pela ópera.Entretanto, tanto prestígio tem um preço, atualmente na casa dos 4 milhões de reais, dos quais apenas uma pequena parcela provém da iniciativa privada (500 mil da Coca-Cola e 100 mil da Semp Toshiba), sendo 3,4 milhões bancados pela secretaria de cultura. Apesar do alto valor que esta cifra pode parecer, ela corresponde apenas a 3% do orçamento total desta secretaria, segundo dados oficiais. É relativamente muito pouco diante de enorme retorno cultural e político que o FAO traz consigo, tanto para o Amazonas, como para o Brasil.

Altos e baixos de uma grande produção

Na sexta-feira passada, dia 21 de abril, o FAO manteve a tradição de iniciar suas atividades com um grande espetáculo ao ar livre. Nesta edição, o concerto de abertura foi uma gigantesca gala-lírica ao ar livre que reuniu no Largo São Sebastião, no entorno do Teatro Amazonas, boa parte dos grandes solistas que se apresentarão ao longo do festival: Eliane Coelho, Dennis O’Neill, Denise de Freitas, Eiko Senda, Celine Imbert, Gabriela Pacce e Francisco Casanova, entre muitos outros.

Evidentemente não era a melhor ocasião para apreciar o melhor que estas vozes podem proporcionar, pois além do fato de um concerto ao ar livre ser muito hostil para qualquer músico, a qualidade da amplificação sonora deixou a desejar.

Entretanto, a beleza do espetáculo residiu na magia de escutar os “highlights” da ópera sob o céu de salpicado de estrelas, tendo como cenário a própria arquitetura neoclássica do exterior do Teatro Amazonas e as fachadas restauradas dos casarões que circundam o largo. Entretanto, o que mais impressionou foi a concentração de milhares de pessoas que compareceram à abertura, que acompanharam as mais de três horas de espetáculo com um silêncio e respeito de dar inveja às grandes casas do Rio e de São Paulo.

Trata-se de um espetáculo no qual a apreensão e a qualidade artística ficam relativizadas, mas que se mostram de suma importância para a consolidação deste tipo de cultura musical dentro da comunidade.

Porém, apesar de todo estardalhaço em torno da abertura oficial, a “abertura musical” do festival ocorreu mesmo dentro no teatro, em 23 de abril, com a apresentação da ópera “Otello”, de Giuseppe Verdi, conduzido pelo maestro Luiz Fernando Malheiro. Com libreto de Arrigo Boito, baseado na peça homônima de Willian Shakespeare, esta ópera destaca-se na produção verdiana pela mudança de sua linguagem musical e a grande carga dramática que ela comporta.

Para o papel protagonista foi escalado o tenor Dennis O’Neill, figura de renome na cena lírica internacional que se apresentou em diversos palcos importantes, como o Metropolitan Opera House, de Nova York. Entretanto, O’Neill, apesar de todo seu talento, não se mostrou adequado ao personagem, seja por sua constituição e caracterização física (que nem de longe se remetia ao célebre mouro de Veneza), seja por seu tipo vocal, que não atendeu às exigência da escritura de Verdi.

O destaque desta montagem ficou mesmo com o barítono Lício Bruno, que escalado de última hora, desempenhou musicalmente e dramaticamente um Iago espetacular e demoniacamente irônico. No papel de Desdêmona, a soprano Eiko Senda soube com o passar da tragédia imprimir o páthos necessário à heroína-trágica, tirando proveito dos momentos dedicados à sua personagem, tal como na célebre “Ave Maria”. Apesar da discreta aparição originalmente reservada à personagem Emilia, a meio-soprano Denise de Freitas cantou sua parte com tamanha entrega e musicalidade que fez com que muitos dos presentes desejassem que Verdi tivesse composto uma ária especialmente para ela.

À parte destes pontos altos, a direção de cena de Marcelo Lombardero ficou a dever eficiência, desprovendo de verossimilhança a atuação dos cantores, principalmente durante os assassinatos. O uso de cenários virtuais, baseado em projeções de slides sobre tecidos e madeiras, não é um problema em si, mas as escolhas realizadas por Diego Silliano claudicaram em beleza e uniformidade visual, destoando dos comportados e apenas funcionais figurinos de Luciana Gutman. Talvez o uso de projeções tenha engessado o iluminador Horacio Efrom, que não conseguiu evitar que momentos importantes da ópera ocorressem sob trevas.Apesar das irregularidades e desníveis, a presença dos destaques de elenco vocal e a beleza intrínseca a sua partitura bastam para que o “Otello” de Manaus um espetáculo a ser rememorado.

O barracão da ópera carnavalesca

Em atividade desde o ano passado, mas oficialmente inaugurado em 2006, a Central Técnica de Produção (CTP) de Manaus é um dos pontos primordiais para a viabilização a longo prazo do FAO. Ocupando uma área coberta de 8.000 mil metros quadrados de um antigo depósito de bebidas, o CTP é o local onde são produzidos e posteriormente preservados todos os materiais de contra-regragem, cenografia e figurinos destinados às produções do festival e de outros eventos ligados aos corpos-estáveis do Amazonas.

Com uma organização de dar inveja a importantes casas de óperas pelo mundo – tudo está absolutamente organizado e com fácil acesso – estima-se que o acervo atual do CTP totalize 80.000 dos mais diferentes itens entre perucas de nobres do século XVIII, roupa de seres feéricos e cenários de monumentais de dramas wagnerianos. O cuidado com o acervo é tão grande que itens como roupas, perucas e sapatos são guardados em salas climatizadas, protegidas do calor e da umidade amazonense.

Em seu cotidiano o CTP conta com uma equipe de trinta funcionários fixos, responsáveis pela manutenção do acervo. Porém, às vésperas do festival, o número de trabalhadores pode chegar a duzentos, entre costureiras, carpinteiros, ferreiros, peruqueiros, escultores e outros profissionais, todos coordenados pelo jovem Marcos Apolo.

Um fator de relevância desta mão de obra é que muitos destes artesãos trabalham com freqüência na confecção do material cênico de grandes festas populares, tais como o próprio Carnaval e o regionalíssimo Boi de Parintins.

Todo o acervo do CTP é catalogado e sua digitalização está prevista em seu projeto original, o que possivelmente agilizará todo o processo de aluguel e troca de material cenográfico, mercado este que Manaus já vem abocanhando há algum tempo.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

Um comentário:

Anônimo disse...

bravo. beijos, pedrita