18 maio 2007

Triunfo dos ares glaciais no calor amazônico

Apresentação da ópera russa “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk” emociona Manaus em espetáculo memorável. A soprano Eliane Coelho é o grande destaque desta montagem.

Após uma controversa montagem de “O Navio Fantasma”, de Richard Wagner, o XI Festival Amazonas de Ópera (FAO) – que termina na próxima semana com “Poranduba”, de Villani-Côrtes – encerrou sábado passado sua segunda fase de apresentações. A grande atração desta edição foi reservada justamente para o meio do evento, isto é, a estréia brasileira da óperaLady Macbeth do Distrito de Mtzensk”, do compositor russo Dmítri Shostakóvitch (1906-1975). Composta durante os anos ferro da ditadura stalinista, que então regia a antiga União Soviética, a ópera tornou-se um marco tanto político como estético na história da música ocidental.

Apesar de ser cantado em russo (um idioma ainda raro nas práticas operísticas atuais), apesar da longa duração do espetáculo e da crueza das situações abordadas pelo libreto – tais como estrupro, assassinato e adultério – o público manauara compareceu em peso a terceira e última apresentação desta ópera, que coroou a excelência da soprano brasileira Eliane Coelho, a cargo da protagonista da trama.

No papel de Katerina, Coelho dominou a cena, seja pela beleza e perícia de sua voz, seja pelo extraordinário domínio dramatúrgico que ela tem desta complexa personagem. Domínio este, aliás, construído de forma muito consciente e cuidadosa, tal como fica evidente na entrevista que a soprano concedeu à Gazeta Mercantil (ver texto abaixo). Para o público, a maestria com a qual Coelho conduziu seu personagem ficou evidenciada em diversos momentos ao longo do espetáculo. Mas é especialmente notável, tanto cenicamente como musicalmente, a ária do primeiro ato, na qual Katerina/Coelho, ébria de um desejo sexual primal, afoga-se nas águas da auto-satisfação.

A grande atuação de Coelho contrasta com a do baixo russo Oleg Melnicov, a cargo do malvado sogro de Katerina, o comerciante Boris. Com um fraco desempenho nas diversas passagens agudas previstas em sua partitura, e uma presença cênica que se apoiou exclusivamente em seu biotipo à la “grande, feio e mau”, esperava-se muito mais de Melnicov que, no entanto, não chegou a comprometer o espetáculo. Porém, uma atuação mais inspirada teria sido salutar para incrementar a verossimilhança de uma história de horrores, tal como é o enredo de “Lady Macbeth”.

Completando o elenco principal, o tenor Martin Mühle, a cargo de criminoso amante de Katerina, abocanha os méritos de destaque masculino, na medida em que sua atuação como Serguei foi muito convincente quando, ao lado de Coelho, concretiza o sórdido casal que trai e assassina o filho de Boris, o reprimido e impotente Zinovi.

Já no elenco de apoio, no qual a desenvoltura cênica acaba, por fim, sendo muitas vezes mais importante do que a vocal, tivemos um rol de ignominiosos personagens muito bem caracterizados. É o caso tenor Marcos Paulo, que representou o marido de Katerina. Destaca-se ainda a embriagada dupla Stephen Bronk e Sérgio Weintraub, que realizaram a difícil terefa de arrancar alguns sorrisos da platéia em meio ao pesadelo gelado no qual se desenvolvia na trama.

De uma forma geral, a direção de Caetano Vilela (que assinou também a concepção e a iluminação do espetáculo) conseguiu imprimir um bom ritmo a cada um dos quatro atos da ópera. Se em cada ato testemunhou-se uma boa fluidez narrativa, o todo, no entanto, foi prejudicado por um número um excessivo de intervalos. Tantas interrupções foram decorrências das trocas de cenários que, apesar de colocarem conceitos e elementos interessantes, não justificam a interrupção da lineariedade narrativa. Vale ressaltar a eficiência do trabalho de movimentação cênica entre solista e coros, garantindo vivacidade aos trechos mais dramáticos.

Apesar de majoritariamente bem-sucedido, fica-se no ar o porquê da inserção de certos “enigmas” plantados na concepção cênica. Certos elementos cenográficos – em especial, letras e palavras do alfabeto cirílico (o mesmo utilizado no idioma russo) – mostram-se não apenas incompreensíveis ao público, mas muitas vezes inviabilizou qualquer forma de interpretação particular, o que por fim tornou estes elementos meramente decorativos.

Entretanto, apesar da beleza dramática intrínseca à partitura de Shostakóvitch e da excelente performance dos artistas que se encontravam no palco, é sempre importante salientar que toda a força deste espetáculo estava literalmente baseada em seu subsolo, no fosso do Teatro Amazonas. Sobre a regência de Luiz Fernando Malheiro, a Amazonas Filarmônica e seu coro impressionaram pela energia dedicada a esta obra cuja escritura é de um complexo sinfonismo de cunho Expressionista, alternando momentos de extrema tensão aos de delicadeza absoluta. Empolgou a tal ponto que Malheiro e seu grupo foram aplaudidos após um dos interlúdios orquestrais.

É sempre importante salientar que tais feitos ganham uma dimensão ainda maior quando se tem em mente que, durante o festival os músicos, estão ocupados em tempo integral por quase dois meses de intenso trabalho. O maestro Malheiro mostra mais uma vez seu talento e competência, conduzindo de forma inspirada esta que é uma das obras mais complexas do repertório shostakovitchiano.

Com a apresentação de Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk” tanto o FAO como seus artistas e produtores mais uma vez realizam um marco histórico da cultura operística brasileira, cuja difusão para outras cidades brasileiras mostra-se urgente. Em tempo, personagens importantes da cena cultural carioca e paulistana estavam lá, avaliando a possibilidade de sanar esta necessidade. Que venham então os ares amazônicos (já temperados com os ares glaciais russos) aquecer nossas casas de óperas do sudeste!

Fotos: 1) A soprano Eliane Coelho; 2) Oleg Melnicov e 3) Eliane Coelho, Oleg Melnicov e Marcos Paulo. Crédito das fotos: Marcio James

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

5 comentários:

Unknown disse...

Não concordo quanto à questão dos intervalos, Leonardo: primeiro, eles estão previstos na partitura, pois trata-se de uma ópera em quatro atos e, portanto, com três intervalos, que balizam a respiração lógica da história; segundo, porque eles estão relacionados com a construção musical da ópera, pensada como uma sinfonia em quatro movimentos; e terceiro, porque a ação -- e a música -- são tão densas, que o público ficaria muito cansado se os atos fossem, por exemplo, agrupados dois a dois.

Anônimo disse...

queria muito ter visto. bejios, pedrita

Anônimo disse...

falei de dois livros que li no meu blog. beijos, pedrita

Anônimo disse...

falei de chapéu de palha no meu blog. beijos, pedrita

Anônimo disse...

Olá Leonardo.
Passei soh pra fazer menção à palestra sobre composição e mercado musical que foi realizada aqui em Manaus, muito bom o conteudo viu?

Abraço