11 maio 2007

Filosofia enquanto música

Livro analisa o papel da música no pensamento de Nietzsche

Muito conhecido por seus escritos filosóficos, não é exagero afirmar que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) deve parte de sua presença na cultura ocidental contemporânea também ao pensamento que ele dedicou às artes, em especial, à música. Nietzsche travou com esta arte uma relação tão íntima que o filósofo chegou mesmo a se dedicar a composição, e à parte a consciente condição de diletante, legou algumas canções para canto e piano (conhecidas como lieder), peças corais e instrumentais.

É justamente em termos musicais que a bibliografia brasileira ganha uma contribuição de peso para a compreensão desta faceta do filósofo: trata-se do livro “O pensamento musical de Nietzsche”, escrito pelo brasileiro Fernando Moraes de Barros (que inclui um CD com música composta pelo próprio Nietzsche).

Tido com um dos principais filósofos do século XIX, Nietzsche tornou-se uma referência na cultura ocidental. Por meio de sua obra filosófica é possível encontrar o prenúncio de pensamentos-chave na compreensão da cultura e filosofia do século XX, tais como a psicoanálise, o existencialismo, o pós-modernismo e o pós-estruturalismo. É igualmente importante o conceito de Übermensch (literalmente, “super-homem”), concepção ética na qual o ser humano transcende qualquer tipo de barreira, seja ela a nacionalidade, a classe ou o credo, por exemplo. Uma vez pervertida pela sandice do nazismo, não só o conceito de Übermensch precisou ter sua imagem restaurada, mas bem como todo o pensamento de Nietzsche precisou de uma nova interpretação a partir da segunda metade do século passado.

Foi junto com a releitura da obra filosófica de Nietzsche que sua crítica e pensamento musical passaram a ser objetos de análise não apenas de estetas e filósofos, mas bem como de músicos que queiram compreender de forma mais profunda a essência da arte musical na modernidade, bem como alguns aspectos da história da música.

Aliás, é justamente a perspectiva historicista que, de certa forma, ainda domina o centro dos debates nietzchenianos sobre a música. Isto se deve em grande parte pela notória relação de amor e ódio intelectual que o filósofo travou com o compositor alemão Richard Wagner (1813-1883). Um dos principais nomes do Romantismo musical – movimento que caracteriza o século XIX como um todo – Wagner propôs como prática musical um tipo de espetáculo que fosse em si uma união de todas as artes (conceito que ele batizou como Gesamtkunstwerk ou “obra de arte total”). A primeira obra filosófica de Nietzsche – “O nascimento da tragédia”, de 1872 – é um testemunho da consonância estética que ele encontrou na obra de Wagner.

Porém, não tardou muito para que esta consonância logo se metamorfoseasse numa ríspida dissonância, materializada na obra “O caso Wagner”, escrita por Nietzsche 1888 e que simboliza o rompimento com a arte wagneriana.

A relação Nietzsche versus Wagner tem tamanha repercussão que é a este assunto ao qual se dedica parte esmagadora da bibliografia brasileira, na qual se encontra “Nietzsche, Wagner e a filosofia do pessimismo”, do musicólogo e pianista Roger Hollinrake, “Nietzsche, Wagner e a época trágica dos deuses”, de Iracema Macedo e, mais recentemente, “Mito e Música em Wagner e Nietzsche”, de Luiz Claudio Moniz. De certa forma, esta tematização é encontrada também em âmbito internacional.

É justamente o redimensionamento da perspectiva do pensamento musical Nietzsche que faz com que o livro de Moraes Barros se destaque dos demais livros acessíveis ao leitor brasileiro. Isto não quer dizer que estas obras sejam desinteressantes; pelo contrário, constituem referências significativas sobre o assunto. No entanto, vale destacar que a amplidão com que Moraes Barros aborda o assunto corresponde em si à amplidão existente no pensamento musical de Nietzsche, de forma alguma tematizado na exegese das práticas wagnerianas.

Dividido em quatro capítulos, os três primeiros constituem o cerne do texto de Moraes Barros: “O mundo enquanto música”, “Música enquanto estilo filosófico” e “Filosofia enquanto levante musical”, sendo que a quarta parte, “Espólio musical enquanto epitáfio filosófico” um capítulo que desenvolve o papel de epílogo a empreitada.

Apesar das três primeiras partes do livro sugerirem uma compreensão cronológica do pensamento musical de Nietzsche, partindo da influência do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) até o livre pensamento crítico da decadência Romântica que caracteriza seus últimos escritos, o livro vai além. Na realidade, Moraes Barros tece uma prodigiosa teia multireferencial a partir dos escritos de Nietzsche e de filósofos que, junto com Schopenhauer, constituíram referências importantes para Nietzsche, somando-se a este manancial referências a importantes comentadores do pensamento nietzscheniano (além, é claro, das reflexões do autor).

Ao mesmo tempo em que a profundidade e a erudição do texto de Moraes Barros fazem desta obra um atrativo para os interessados no pensamento musical nietzscheniano é justamente esta característica que faz da leitura do livro uma empreitada laboriosa. Apesar de ser injusto rotular o livro com uma “obra para iniciados”, este livro é especialmente aconselhável àqueles que já tenham algum conhecimento prévio em conceitos e história da filosofia. Aos músicos e aos melômanos o texto certamente se apresentará hermético, fato que, no entanto, não diminui em nada seu interesse a este público.

Talvez a inclusão de um glossário de termos e conceitos filosóficos (e mesmo musicais), pudesse ser útil, à parte do fato de que ele em si não seria suficiente para suprir todos os pré-requisitos para compreensão do texto (mas quem sabe poderia servir de ponto de partida para um aprofundamento pessoal do leitor?).

No final das contas, apesar de interessante, o CD encartado mostra-se de certa forma dispensável, na medida em que ele traz apenas uma única partitura de Nietzsche (a versão para piano do Hino à amizade, interpretado por Gisela Müller), e ainda por cima destituído de uma explicação técnico-estética conveniente a uma obra que se propõe a falar do sentido da música na filosofia de Nietzsche.

Serviço:
“O pensamento musical de Nietzsche”, de Fernando Moraes de Barros.
Editora Perspectiva, R$ 38, 187 páginas (acompanha um CD).

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

2 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pelo blog! Achei o artigo procurando por "música e filosofia" no google. Acho de se admirar uma pessoa com tão pouca idade (apenas 6 a mais que eu) já ter feito tanta coisa na área de música.
Parabéns mesmo!

Anônimo disse...

Olá,

Meus parabéns pelo blog.

A relação íntima que a filosofia de Nietzsche e o próprio Nietzsche tinham com a música é realmente um tema que não pode passar despercebido quando se fala em Nietzsche.
Confira, no meu blog:
http://examedevista.wordpress.com/2011/06/18/musica-e-o-apreco-as-diferencas/

Abraço