Impressões sobre quase tudo com quase nada:
Ópera - "O homem que confundiu sua mulher com um chapéu"
Foi para perpetuar o triunfo dos deuses do Olímpo sob os titãs - por meio do canto e da poesia - que Zeus copula com a deusa Mnemósine ("Memória"), gerando suas filhas, as musas, palavra da qual a própria música está intrinsecamente ligada. Música e memória são elementos complementares e mesmo indissociáveis.
Assim, acaba sendo um fato de estranha ironia um músico que preserva toda sua capacidade mnemônica musical mas, pelo outro lado, é totalmente privado deste recurso no campo visual. Sob a cólera da ciumenta de Mnemósine o Dr. P, cantor e professor de música, perde gradualmente sua "memória" visual. Agnosia. A visão torna-se uma armadilha da qual apenas as filhas da deusa grega servem como guia e arma de defesa.
Estupendamente interpretado por Stephen Bronk, Dr. P nega a todo custo o que se passa, e tenta fazer piada das tristes limitações que adquiriu e dos ridículos que elas o colocam. Ao final de todo processo, sua expressão, antes altiva (típica daqueles que acreditam estar passando por um inofensivo problema de saúde), toma ares de uma sandice sagrada, a partir da qual todos que o cercam se vêm obrigados a entendê-lo por sua perspectiva.
Entender o outro pelo seu olhar enfermo é o percurso a ser trilhado por sua mulher, Mrs. P e por seu médico, Dr. S. Intepretados pelas belas vozes de Flávia Fernandes e Martin Mühle (respectivamente), uma procura, em vão, distorcer a si mesma para moldar o mundo sob a ótica do marido, o outro, misto de encanto e horror com o que testemunha, procura explicar algo jamais registrado na memória da medicina.
Cenários virtuais e figurinos belos, eficientes e cativantes. Fábio Zanon, estreando como regente, ainda conduz com um leve quicar das pernas e alguns gestos típicos de quem está se familiarizando com o ofício. Mas missão cumprida e no aguardo de novas oportunidades.
De tantas coisas belas e interessantes desta obra inspirada no livro homônimo de Oliver Sacks, o que acaba decepcionando é justamente a música composta por Michael Nyman. Um minimalismo simplista, tediante, que na melhor das hipóteses serve como uma metáfora sonora do inferno vivido pelos personagens. O único oásis em meio a tanta indigência harmônica surge, ironicamente, quando mais uma vez Mnemósine é evocada pelo flanar musical de Schumann.
E é aí que se realiza a vingança final da deusa grega: advinhe qual música você se lembrará ao sair do espetáculo e qual será consumida pelo apetite voraz da amnésia?
Um comentário:
eu acabei não conseguindo assistir. um amigo nosso entrou para o mundo dos blogs http://falardemusica.blogspot.com/ beijos, pedrita
Postar um comentário