“Os médicos asseguram: há pessoas / Que encontram prazer em matar. / Quando coloco a chave no cadeado, / Eu sinto o mesmo que eles devem sentir / Ao cravar a faca na vítima: uma mescla / De medo e prazer. / Eis meu êxtase!”, diz o avarento Barão, embriagado de usura diante de seus cofres cheios de ouro que, ele bem sabe, é o resultado de muito sofrimento alheio: “Sim! Se todo o sangue, suor e lágrimas / Versados por tudo que está aqui guardado / Voltassem a sair das profundezas da Terra, / Então teríamos um segundo dilúvio. E eu me afogaria / Em meu próprio porão [...]”.
Entre os dias 23 de outubro e 6 de novembro de 1830 o escritor e dramaturgo russo Aleksandr Púchkin escreveu uma série de cenas dramáticas que chamam atenção não necessariamente pelas histórias que narram, mas sim pela maneira como as conta e pelo modo com o qual constrói seus personagens por meio de seus versos. Passado mais de um século desde seu surgimento, o público brasileiro finalmente tem acesso a essas delicadas jóias da literatura russa no livro “Pequenas Tragédias”, título pelo qual o conjunto das cenas passou a ser conhecido.
Figura fundamental na literatura internacional, considerado o “pai” da poesia russa, Púchkin é o autor de obras monumentais, tais como o romance em versos “Ievguêni Oniéguin” e o drama “Boris Godunov”. Entretanto, parte significativa de sua produção encontra-se em obras de pequenas proporções, tal como é o caso das “Pequenas Tragédias”, traduzidas por Irineu Franco Perpetuo.
O título reúne as quatro cenas que Púchkin escreveu durante uma estada forçada numa propriedade campestre que acabara de herdar: “O Cavaleiro avarento” (de onde foi extraído o trecho acima), “Mozart e Salieri”, “O convidado de pedra” e “O festim nos tempos da peste”.
O que reforça a idéia de que a escrita de Púchkin é o cerne desta pequena obra é que ele não é o autor do argumento original destas cenas (inclusive, nenhuma delas é ambientada na Rússia): a primeira é uma possível referência ao “O avarento” de Molière e a última é quase uma tradução da peça “The city of plague” de John Wilson. No conjunto, o que mais chama atenção é presença da música, seja pela tragédia “Mozart e Salieri” (uma dramatização a partir do boato inverídico do assassínio de Mozart pelo compositor italiano Antonio Salieri) e pelo “O convidado de pedra”, uma referência reconhecida pelo próprio Púchkin à ópera “Don Giovanni”, também de Mozart.
Tamanho requinte na escrita de Púchkin faz de sua tradução um desafio ainda maior. “Púchkin é um autor muito simples e direto. A dificuldade é reproduzir essa simplicidade, sem cair no banal”, diz Franco Perpetuo.
O tradutor, mais conhecido por seu trabalho como jornalista e crítico musical, reforça os laços desta empreitada pela perspectiva musical. “Podemos dizer que todos os textos têm ligação com música, porque foram transformados em óperas por compositores russos. E não foram ‘adaptados’: o texto de Púchkin foi utilizado diretamente como libreto”, diz Franco Perpetuo referindo-se às óperas compostas sobre as “Pequenas Tragédias”. De fato, cada pequena tragédia recebeu uma versão musical pelas mãos de diferentes compositores e estilos musicais: Rachmáninov (com “O Cavaleiro avarento”), Dargomijski (“O convidado de pedra”), César Cui (“O festim nos tempos da peste”) e Rímski-Kórsakov, com “Mozart e Salieri”, que este ano foi apresentado no Brasil nos festivais de Campos do Jordão e no de ópera de Belém.
De todas as pequenas tragédias, “Mozart e Salieri” foi a que mais se notabilizou, tanto musicalmente como dramaticamente. Tendo como ponto de partida os rumores que Salieri teria envenenado Mozart em virtude de uma inveja peçonhenta, Púchkin tece uma bonita reflexão sobre a natureza da inveja humana, em especial, a do tipo mais virulento, que é aquela que nasce da extrema admiração que o invejoso tem sobre o invejado. “[...] E foste capaz de parar na taverna / Para ouvir um violinista cego! Deus! / Tu, Mozart, és indigno de ti próprio!” diz a certa altura o fictício Salieri ao igualmente fictício Wolfgang Amadeus.
Aliás, é o “Mozart e Salieri” de Púchkin que estabelece o padrão ficcional a estes compositores (Salieri o sisudo, Mozart o irreverente) e que será posteriormente utilizado pelo dramaturgo inglês Peter Shaffer na peça “Amadeus”, que em 1984 foi levada ao cinema sob a direção de Millos Forman.
O compositor de Salzburg está também presente, ainda que de forma implícita, na tragédia “O convidado de pedra”, que tem como enredo as horas finais do conquistador espanhol Don Juan, que ganhou notabilidade no mundo da ópera com “Don Giovanni”, composta por Mozart sob libreto de Lorenzo da Ponte. Como não pensar na canzonetta “Deh, vieni alla finestra” (que o Don Giovanni de Mozart canta para seduzir mais uma mulher) quando a personagem Laura da peça Púchkin canta uma música que confessa ter aprendido com Don Juan?
Apesar dos indícios que parecem configurar um verdadeiro pacto musical, as “Pequenas Tragédias” mantém sua autonomia poético-dramática à parte qualquer sugestão extra-literária suscitada. Paralelamente à dimensão poética, sua beleza e interesse reside também no fato de Púchkin reduzir a ação dramática às proporções diminutas e concisas do conto, e tal como num conto, sua força advém justamente de sua brevidade e pela densidade das emoções que seus versos trazem consigo.
Serviço: “Pequenas Tragédias”, de Aleksandr Púchkin.
Tradução: Irineu Franco Perpetuo. Globo Livros, 125 págs., R$ 20.
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[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]
Foto: Por Luiz Carlos Lacerda da montagem do espetáculo "Mozart e Salieri" no Festival de Ópera do Theatro da Paz (Belém, PA) de 2006.
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