14 fevereiro 2008

A música e a aridez bibliográfica no Brasil

Não verás país nenhum!

Duzentos anos depois de a imprensa ter se instalado no país, pouca coisa mudou no mercado bibliográfico musical brasuca

Em 1808, quando a corte portuguesa por aqui aportou, foi o mesmo ano em que nossos portos foram autorizados a "abrirem seus cais" para o comércio internacional (ainda que na época o tal "internacional" se limitasse apenas à Inglaterra. Mas isto é outra história...). Foi neste mesmo ano, após literalmente séculos de proibição, que a atividade de imprensa - em seu amplo sentido - foi liberada. Jornais, livros e periódicos estavam autorizados a serem produzidos, impressos e distribuídos, atendendo a demanda de uma sociedade que passaria por um profundo processo de transformação.

Duzentos anos se passaram, mas parece que a liberação da imprensa pouco efeito surtiu no mercado livreiro de música. Nesta época do ano, aonde professores como eu se vêm às voltas com planos de aula e material pedagógico, montar uma bibliografia requer muita habilidade, pois raros são os livros fundamentais de formação musical disponíveis no momento.

À procura de Orfeu

O problema do mercado livreiro de música no Brasil é complexo, e se desenvolve em diversas frentes.

Num primeiro instante, o que é mais sensível e urgente é a inexistência de traduções brasileiras de obras clássicas da literatura musical mundial. Obras disponíveis no vernáculo de estudantes, músicos e melômanos de diversas partes do mundo por aqui são raras mesmo em seus idiomas originais, ou em uma tradução em uma língua mais "próxima" da nossa.

Por exemplo, os tradicionalíssimos livros de contraponto de Joseph Fux e Knud Jeppesen (um originalmente publicado em latim, e outro em dinamarquês) só chegaram aqui por meio de traduções em inglês. Posso até concordar que, atualmente, há métodos muito mais modernos e atraentes. Mas o problema é que é vedada a possibilidade de ao menos entrar em contato com estas obras.

Os fundamentais "The Classical Style" e "Sonata Forms", de Charles Rosen, permanecem intactos em sua versão original. Quando muito se consegue um exemplar em espanhol que, não raro, custa muito mais caro que o original em inglês.

Mas a situação mais irônica ocorre mesmo com o livro "História da Música Ocidental" dos americanos Donald J. Grout e Claude V. Palisca. Obra referência no estudo desta matéria, no Brasil os estudantes têm que recorrer à versão impressa em Portugal, que nesta época do ano chega aos lotes nas livrarias paulistanas. Se a língua é (quase) a mesma, o preço não, pois o brasileiro paga caro por um livro manufaturado em Euro.

Evidentemente, há muitos outros livros que poderiam ser listados aqui. Mas mesmo esta modesta amostra já serve para nos dar a dimensão do quão dramática é a situação.

Mas acha que é só isto? Não, a coisa fica pior...

Fahrenheit 451

Não bastasse a escassez de títulos, o mercado livreiro de música sofre de um outro problema grave, qual seja, a não reimpressão de títulos já produzidos ou traduzidos.

Obras de referência como "Fundamentos da Composição Musical", de Arnold Schoenberg, "História da Música no Brasil", de Vasco Mariz, "Música Eletroacústica: história e estéticas", coletânea de textos organizada por Flo Menezes e "História da Música Ocidental", de Jean e Brigitte Massin, estão ausentes nas estantes das livrarias (e por tabela das bibliotecas) por falta de estoque na editoras que, subestimando o impacto mercadológico dessas obras, fizeram tiragens pífias, que se esgotaram rapidamente.

Mas se os livros estão esgotados, porque as editoras não os relançam? Como (talvez) diria Charles Ives, that's an unanswered question.

Dissertações e teses enquanto livros

Se em termos de obras de referência há uma estiagem em andamento, algum conforto pode ser encontrado na nova tendência do mercado editorial em música, que é a publicação de dissertações de mestrados e de teses de doutorados em forma de livros comerciais.

Em geral sob a incumbência de uma editora universitária, esses livros trazem consigo o conteúdo de uma dissertação ou tese, porém exposta de forma mais "palatável", sem os academicismos, atenuação do jargão e mesmo com a supressão de partes do texto original.

Se por um lado temos que comemorar o desenvolvimento deste mercado, que a cada ano mostra-se mais consolidado, pelo outro é importante notar que teses e dissertações são, por natureza, trabalhos que encerram um alto grau de complexidade e especificidade, e nem sempre se prestam ao uso de estudantes, melômanos ou mesmo músicos profissionais em busca de um outro tipo de informação.

É de se salientar que muitos destes títulos universitários correm o mesmo risco de, após o esgotamento da primeira edição, juntarem-se ao limbo de obras à espera de uma segunda edição.

O autômato-livraria

Posto tudo isto, não fica muito difícil concluir que a saída para músicos, estudantes e interessados em geral é, com freqüência, um inevitável tiro nos pés. Isto é, a cultura da fotocópia (o bom e velho xerox) é algo que dificilmente será erradicado enquanto este estado de coisas se mantiver.

A coisa chegou a tal ponto que muitos sequer cogitam a procura numa livraria, recorrendo diretamente às famigeradas "pastas de professores" nas lojinhas que cercam as escolas e universidades. Desta forma, a fotocopiadora é metamorfoseada num autômato-livraria: basta pedir que ela cuspirá as preciosas páginas tão raras de serem encontradas em estado original.

2 comentários:

Angelinha disse...

Achei ótimo você colocar em pauta esse assunto. Concordo com você...Têm uns livros da "Música Francesa", que estou louca para ler; "but", não sei francês...
Será que poderíamos criar um livro sobre a História da Música Ocidental", em português do Brasil, com a bibliografia européia e norte-americana disponível?
Estou interessada em fazer parte deste "supose to be" grupo!
Angela Levy

dicionarista-embaçado disse...

A gente, quando lê, no outro, a angústina nossa, fica menos solitário.

Mas, professor (fui teu aluno uns anos atrás, na FAAM), a gente sofre nessa pindorama pra fazer o trabalho direito. O preço que se tem que pagar pelos direitos autorais de um original para uma tradução são praticamente inviáveis; principalmente para aqueles que têm a capacidade de uma tradução bem feita. E em Euros.

E a idéia da Angela, mesmo que "supose to be", não é de todo mal! Com literatura específica a gente se vira no inglês, nos dólares...na Amazon! mas pra literatura de referência a coisa tem que ser diferente.

E, Angela, se for parente do Kenneth, pode-se começar por aí.

Feliz por descubrir a OutraMúsica!