Descubra o surpreendente tesouro musical baseado na temática natalina.
Chegamos ao final de 2005, e tal como acontece a cada ano, as cidades com seus códigos mostram sinais evidentes de que há algo diferente no ar: luzes enfeitam árvores e avenidas, casas ganham uma decoração especial e cresce nas crianças uma gostosa sensação de ansiedade. Bem, por outro lado, há também filas para os estacionamentos dos shoppings, lojas caoticamente lotadas e uma interminável lista de preparativos que nem sempre está de acordo com a conta bancária (mas isto já é uma outra história...).
É Natal, e Natal é sinônimo de Papai-Noel, pinheirinho enfeitado e – como toda festa que se preze – música: “Noite feliz”, “Batem os sinos”, “Adeste fidelis” e mesmo o jingle publicitário de uma empresa de aviação estão sempre entre os grandes hits do Natal brasileiro.
Porém, por mais que os meios de comunicação áudios-visuais insistam neste pequeno repertório, é bom saber que a música natalina vai muito além do Jingle Bells e das famigeradas melodias tocadas na harpa, tão utilizadas como música de fundo pelos grandes lojistas nesta época do ano.
Desde que o Natal foi “inventado”, o repertório musical a ele dedicado pode ser visto como um pequeno panorama do desenvolvimento dos gêneros musicais praticados no ocidente. Importantes compositores clássicos escrevam obras para ocasiões natalinas, e mesmo no século XX, com o início da era da música popular para consumo em massa, muitas bandas e pop stars não resistiram ao apelo do bom velhinho.
Aperte o cinto de seu trenó e embarque nesta viagem musical.
O natal e suas origens
Para entender o que ocorreu com o repertório natalino através dos séculos é importante saber como esta festa tipicamente cristã surpreendentemente começou.
O Natal só foi incorporado ao calendário da Igreja durante o papado de Júlio I (entre os anos 337-352), ocasião em que se decidiu programar para o dia 25 de dezembro a comemoração do nascimento de Jesus Cristo.
Na verdade, esta data corresponde exatamente com o solstício de inverno romano, dia estabelecido no ano 274 pelo imperador romano Aureliano como a data para a celebração do Natalis Solis (“nascimento do sol” em latim), isto é, o nascimento de Mitras, o deus do sol.
Apesar de no século IV em boa parte do Europa a consolidação do cristianismo ser uma realidade, esta festividade “pagã” continuou a ser praticada pela população sem que o poder já estatal da Igreja pudesse efetivamente fazer algo para detê-lo. Assim, a união entre esta festividade romana com o aniversário de Cristo resultou nesta festa sincrética que viria a se tornar a principal comemoração da cristandade.
Os primeiros exemplos musicais para esta nova festividade cristã, destinaram-se para a sua respectiva liturgia (isto é, a cerimônia religiosa realizada dentro do templo). Anos mais tarde esta cerimônia ficaria conhecida como “Missa do Galo”, uma referência ao pássaro que anuncia o nascimento do novo dia e a concretização da profecia sobre a vinda do Messias.
Nos primórdios da música natalina, o estilo empregado era muito próximo ao do “canto gregoriano”, que é ainda a forma de cantar característica dos monges beneditinos da atualidade.
Entretanto, o aspecto sóbrio deste estilo musical aliado a pouca compreensibilidade do texto cantado em latim fez com que um outro repertório, cantado nas festividades fora do templo, fosse gradualmente se formando na população que circundavam estes templos, dando o passo decisivo para o desenvolvimento da tradição musical natalina.
A celebração fora do templo
Na medida em que, na Idade Média, era vedado o uso de material não litúrgico dentro do templo, foi uma conseqüência natural a criação de um repertório natalino mais alegre destinado às celebrações feitas ao ar livre ou em locais não sacros. Ao mesmo tempo, esta temática tornou-se mais acessível à população, tendo em vista que as canções eram também cantadas em vernáculo (isto é, o idioma de fato falado em uma dada localidade) e não só em latim.
Na França, desde o século IX, há registros de canções populares criadas para o Natal, conhecidas como noëls. Tal como tudo ao que se refere às práticas musicais antigas, ainda é incerta a ocasião em que esta música era praticada. Os estudos musicológicos indicam várias direções: essas canções podem tanto ter sido usadas em procissões como em grandes cerimoniais e banquetes feudais. É também muito provável que estas canções eram utilizadas domesticamente pela população e há mesmo indícios que algumas dessas canções tenham sido cantadas dentro do templo, porém em ocasiões não oficiais.
A tradição das noëls se arraigou de tal forma na cultura musical francesa que ainda no século XVIII era praticado um gênero derivado, as noëls pour orgue, isto é, peças sem parte vocal para serem tocadas apenas ao órgão de tubos, muito comuns nas igrejas da época. Nas noëls pour orgue o organista escolhia algum tema natalino famoso, e a partir de sua melodia, tecia uma série de improvisações que faziam sucesso junto ao público. Algumas destas improvisações foram transcritas em partitura e assim puderam chegar ao nosso conhecimento.
Muitas das primeiras melodias natalinas foram criadas para a música incidental presente nas representações teatrais medievais sobre passagens do Novo e do Antigo Testamento. Sabe-se que nestes espetáculos, hoje em dia designados como Dramas Medievais, fazia-se uso abundante de música para ilustrar temas caros à cristandade, tais como a Anunciação, a viagem dos Três Reis Magos e, é claro, o próprio nascimento de Cristo.
Assim, já em finais da Idade Média, a música natalina de cunho não litúrgico já estava amplamente difundida por toda Europa. Porém, é da Inglaterra que vem o mais antigo exemplo de tradição natalina ainda presente nos dias de hoje: são canções conhecidas como carols.
Natal globalizado
“Jingle Bells” (ou “Batem os sinos”), “We wish you a Merry Christmas”, “Holy Night” (“Noite Feliz”), “White Christmas” (“Natal Branco”) e uma infinidade de outras canções mundialmente conhecidas têm como raiz a tradição das carols inglesas.
Originada de uma forma musical medieval francesa – a carole – em seus primórdios no século XV a carol era um gênero de canção sacra utilizada para diversas festividades cristãs, e só posteriormente tornou-se sinônimo de música natalina. Esta manifestação cultural britânica foi herdada pelos norte-americanos que, a partir da consolidação de seu “império”, difundiu as carols para os quatro cantos do mundo, tornando-a um gênero musical globalizado (se você ainda não se localizou, sabe aquela famosa cena de um coral cantando debaixo da neve que você certamente já viu em algum filme americano? Pois então, eles estão cantando uma carol).
Em outras terras as carols ganharam versões nos idiomas locais (tal como aconteceu aqui no Brasil), e sua simplicidade musical – construída a partir de melodias fáceis de memorizar – revelou-se propícia para incontáveis versões em todos os gêneros e ritmos musicais imagináveis. De versões com instrumentos africanos às batidas do rock este tipo de música natalina ainda se mostra de uma versatilidade a toda prova, usada e abusada nos jingles publicitários que pipocam no rádio e na TV nesta época do ano.
No que tange ao legítimo rock’n roll, valer lembrar que a imortal banda de Liverpool gravou nada menos do que sete “Beatles’ Christmas Album”, o que não deixar de ser mais uma prova de que a música natalina há muito tempo se emancipou da temática religiosa para ganhar contornos de feriado laico (e, dependendo do ponto vista, retornando às suas raízes pagãs...).
Música e espiritualidade
Porém, antes de se mercantilizar no século XX, o repertório musical natalino foi um poderoso meio de expressão da devoção do cristão ao nascimento de seu Salvador. Se hoje em dia a música natalina está diretamente associada à imagem do Papai-Noel, durante o Renascimento e o Barroco ela pode ser associada às inúmeras representações da “Madonna” (isto é, a Virgem Maria com o Menino Jesus no colo) que nos foram herdadas dos períodos em questão.
Durante o Renascimento o motete (forma coral por vezes acompanhada de instrumentos musicais) foi o principal meio de realização do repertório natalino. Alguns dos mais belos exemplos foram escritos pelo compositor italiano Giovanni Gabrieli (1555-1612) que compôs para a Catedral de São Marcos de Veneza (então uma das mais ricas do ocidente) magníficos motetos natalinos como “O magnum mysterium” e “Salvator noster”.
Aluno de Gabrieli, o alemão Heinrich Schütz (1585-1672) escreveu em forma de oratório (uma espécie de ópera, porém sem encenação) a obra “Historia der Geburt Jesu Christi” (ou “História do Nascimento de Jesus Cristo”) dando um passo decisivo para a consolidação da temática natalina no repertório musical luterano.
Aliás, é da tradição luterana que advém o exemplo de música natalina clássica mais tocada na atualidade, isto é, o “Weinachts-Oratorium” (ou “Oratório de Natal”) de Johann Sebastian Bach (1735-1782).
Apesar de ser muito comum a apresentação integral deste oratório em uma única seção, ele foi composto como parte de uma celebração religiosa que se desenvolvia ao longo de vários dias. Divido em seis cantatas, as três primeiras eram destinadas para serem apresentadas durante os três dias do Festival de Natal. Uma outra se destinava para o dia de ano-novo, outra para o primeiro domingo do novo ano e uma última para a o dia da Epifania, isto é, o dia do batismo de Cristo.
Seja em forma de concerto ou integrado a um cotidiano religioso, a beleza do oratório de Bach transcende os dogmas religiosos e freqüentemente é apresentado em templos não luteranos, por fim levando a cabo uma das principais mensagens do Natal que é a integração entre as pessoas.
Assim, neste Natal, independentemente de qual fé cristã se pertença – e mesmo independentemente de fé no cristianismo em si – desperte-se para a beleza e riqueza do fantástico mundo sonoro que se criou em torno da temática natalina. Desligue a TV e seus tediosos programas natalinos (que até o último instante tentarão vender mais alguma coisa para você) e ponha um CD especial ou mesmo ligue em uma das diversas rádios ditas “clássicas” existentes no Brasil para dar uma dimensão muito mais bela a esta época tão especial. Abra seus ouvidos, para então abrir seu coração. E feliz Natal!
Alguns CDs e Rádios on-line recomendados
- http://www.tvcultura.com.br/radiofm/
- http://www.radiomec.com.br/fm/
- “Gregorian Chants, Christmas Chants” canto gregoriano por diversos coros monásticos europeus (Milan, 35668).
- “Chantez Noël” pelo Atlanta Singers regido David Brensinger (ACA Digital, CM 20047)
- “Christmas Carols & Motets” pelo The Tallis Scholars regido Peter Phillips (Gimell, CDGIM 010)
- Heinrich Schütz, “The Christmas Story”, pelo The King’s Consort regido por Robert King (Hyperion, CDA 66398). Este álbum contém também motetes natalinos de Giovanni Gabrieli.
- Johann Sebastian Bach, “Weinachts-Oratorium” pela Academy for Ancient Music Berlin regida por René Jacobs (Harmonia Mundi, HMC 901630/1)
[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]
6 comentários:
oLÁ
Eu cuido de uma pagina de música e gostei demais do que vc escreveu sobre a historia da musica natalina, vc me permite colocar no site que cuido???
Clê
Pode escrever para cleamiga@uol.com.br
Parabéns e obrigada pela aula. Só tem um detalhe: a epifania refere-se à chegada dos reis Magos à Belem, o que é celebrado dia 6 de janeiro. Epifania quer dizer, como você sabe, manifestação do divino. A explicação é que até o dia 6, o nascimento de Cristo só era de conhecimento de S.José e de Maria, seus pais. No dia de Reis é que a Boa Nova é revelada ao mundo.
O batismo de Cristo, realizado por S.João Baptista, seu primo, ocorrerá quando Cristo for adulto, como demonstrado, além da Bíblia, pelos vários quadros do Renascimento.
Dia 6 de Janeiro, na Igreja Ortodoxa, é o dia de Natal, em que as pessoas trocam presentes. Minha avó materna, de origem portuguesa e alemã, patrocinava grandes "rega-bofes" nesse dia, segundo ela, tão importante quanto o Natal.
Beijo da Eugenia
Caríssima Eugenia. Suas observações estão mais do que certas também! Mas sobre uma conotação mais ampla de Epifania veja só o que, por exemplo, o dicionário Houaiss nos traz: "EPIFANIA: festa cristã que comemora o batismo de Cristo e, secundariamente, as bodas de Caná, embora desde o século V, a Igreja comemore, nesta data, o aparecimento dos Magos como ocasião da primeira manifestação de Cristo aos gentios (12o. dia)". Enfim, uma coisa não contradiz a outra, mas é certo que sua explicação está sim mais próxima de nossa contemporaneidade. Aproveitando suas observações sobre o aspecto brasileiro da Epifania associada aos Reis Magos, tenho um tio - já falecido - que nasceu em 3 de janeiro, só que por tradição sua data de nascimento está registrada em 6 de janeiro, em homenagem aos Magos. Abraços!
- Johann Sebastian Bach, “Weinachts-Oratorium” pela Academy for Ancient Music Berlin regida por René Jacobs (Harmonia Mundi, HMC 901630/1)
Sou fissurado nessa obra de Bach, conhecendo umas 5 gravações. No momento a minha prefereida é a gravação do Gardiner em DVD.
Não conheço essa do Jacobs, que tal?
Olhe, caro José Carlos, a versão de Jacobs é muito boa. Aliás, desde que ele virou regente ele tem feito muitas coisas interessantes, incluso em óperas. Como maldosamente disse uma amigo meu, "para um ex-contratenor, é surpreendente". Rs Abração.
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