05 outubro 2007

25 anos sem o re-inventor do piano

Tido como excêntrico, mas acima de tudo genial, a arte de Glenn Gould continua insuperável.

No dia 4 de outubro de 1982 chegava ao fim a vida de um dos mais singulares e controvertidos pianista clássico. Vitimado por um derrame, com apenas 50 anos o canadense Glenn Gould ingressava na história com sua eternidade artística garantida por meio das diversas gravações que realizou ao longo de sua breve vida. Porém, mais do que discos a serem posteriormente “requentados” pelas grandes gravadoras, a verdadeira herança de Gould reside na atitude artística que suas gravações trazem implicitamente consigo.

Em meados do século XX, o barateamento dos equipamentos de entretenimento eletrônico (tais como o rádio, a televisão e a vitrola) e o desenvolvimento de uma indústria para fornecer conteúdo a esses meios foram os responsáveis pelo surgimento de diversos “pop stars” que, de uma maneira peculiar, também pulularam na cena clássica universal. Caruso, Toscanini, Callas, Rubinstein, Casals e Karajan são algumas das muitas estrelas que passaram a habitar este firmamento criado pela vendagem de discos, objetos que registravam a habilidade e sensibilidade que estes músicos faziam no palco.

Mais do que um mero registro, ao longo de sua carreira Gould fez das gravações o próprio meio de expressão artística, que especificamente em seu caso já tornariam estes registros em algo excepcional e destoante frente aos padrões interpretativos da época.

O artista por detrás da caricatura

Após mais de duas décadas de sua morte a figura de Glenn Gould continua sendo fundamental para a música moderna. Entretanto, não é de todo errado compreender a força do Gould appeal à caricatura que se incrustou em seu gênio artístico.

Não era por menos, pois mesmo em dias quentes, conta-se que Gould estava sempre a trajar pesadas vestes invernais (incluso com sua indefectível boina). Ao piano, sua postura faria arrepiar qualquer professora de conservatório: sentado em seu banquinho, muitos centímetros abaixo do padrão, o rosto de Gould quase esbarrava o teclado do piano. Não bastasse isso, ao tocar, o pianista se expandia num espalhafatoso e extravagante gestual, freqüentemente acompanhado por animadas cantaroladas (para o terror dos engenheiros de gravação).

Somando-se a estes aspectos de sua figura, a caricatura em torno de Gould seria reforçada por sua acentuada misantropia, culminada com o abandono definitivo das apresentações públicas em 1964.

Porém, à parte sua caricatura, a verdadeira razão pela qual a imagem de Gould deva ser perpetuada é sua atitude artística num nicho ainda hoje dominado pelo mal tradicionalismo e pela ausência de criatividade interpretativa e de repertório.

Menino-progídio, Gould teve sua carreira catapultada pelas transmissões de rádio e TV de concertos, antes tão freqüentes no mass media. Até aí poderia ser mais um caso de um jovem músico cuja perenidade na vida adulta depende de fatores mais ligados à sorte do que ao talento.

Porém, contando ainda com pouco mais de vinte anos, Gould dá o primeiro dos passos que o destacará dos demais, elegendo como base de seu repertório compositores que, apesar de sua grandeza, passavam longe das estantes dos pianistas da época, tais como Bach, Schoenberg, Berg e Orlando Gibbons (compositor renascentista inglês que Gould praticamente ressuscitou no repertório clássico).

Gould também “aumentou” o repertório pianístico ao incluir em seus recitais e gravações transcrições de peças originalmente escritas para orquestras. Por muitos visto como um mero recurso didático – quando não uma arte menor – Gould mostrou que as transcrições eram na verdade reinvenções das próprias músicas, e reinvenção é a palavra-chava em sua estética musical.

O pianista enquanto (re)compositor

Nenhuma caricatura de Gould estará completa sem se referir ao seu estilo nada ortodoxo de execução musical, principalmente no que se refere às obras de Bach (cujas gravações bateram recordes de vendas).

Mais do que mera heterodoxia da execução musical, em Gould a arte de tocar piano reside numa outra dimensão, na qual a interpretação musical é muito mais do que o ato que reviver acusticamente a música supostamente contida nas pálidas e insuficientes informações de uma partitura. Para Gould a interpretação pianística é, necessariamente, um ato de recriação.

Desta forma, a partitura, antes um documento sagrado, é tomada apenas como base para um processo criativo, que em seu estágio final (isto é, o recital ou a gravação), necessariamente se diferenciará de qualquer idealização acústica que a partitura possa sugerir.

Esta atitude, a essência da arte de Gould, nem de longe gozou de consenso em sua época, e mesmo hoje em dia ela tende ser hostilizada por certas práticas de música historicamente orientadas (apesar de mesmo nelas já ser muito premente a necessidade de uma interpretação mais criativa do que reconstitutiva). É justamente aí onde reside a base da controvérsia em torno da música de Gould, cujos célebres exemplos são as diversas gravações das “Variações Goldberg” de Bach (na época, considerada afetada e maneirista), e do “Concerto No. 1”, de Brahms (cujo o andamento foi considero demasiado lento).

Apesar das controvérsias, Gould gozou de imensa popularidade, ao ponto de uma gravação sua de uma obra de Bach ter sido escolhida como representante da arte e inteligência musical para enviado aos confins do universo na sonda Voyager 1, em 1977.

Mais do que um grande pianista, Gould foi um re-inventor. Mas reinventou não apenas o piano e seu repertório, mas bem como a própria essência da interpretação musical.

Apêndice: Gould, para ver e ouvir

Apesar da efeméride, a indústria fonográfica nacional não preparou nada de especial para celebrar ou os 75 anos de nascimento ou os 25 anos de morte de Gould. Entretanto, há ótimas opções que podem ser garimpadas no mercado nacional. Em termos de gravações, apesar de raras, é possível achar nas lojas exemplares da coleção que a Sony Music lançou sobre o pianista durante a década de 1990. Nas estantes das livrarias há, em português, sua biografia escrita por Otto Friedrich (Record, R$ 66). Porém, vale a pena insistir nos DVD, nos quais as performances de Gould podem ser apreciadas também de forma visual (apesar de todos os títulos serem importados). Na falta de dinheiro, uma busca rápida no YouTube proporcionará momentos deliciosos. Ainda em DVD, vale a pena conferir a ficção-documentário “Trinta e Dois curtas para Glenn Gould”, dirigida em 1993 por François Girard.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

Um comentário:

Pedrita disse...

belíssimo texto. nunca consegui ver aquele filme sobre o glenn gould. falei de proust no meu blog. beijos, pedrita