29 junho 2007

A música de um mestre mulato em prosa

Finalista do prêmio Jabuti deste ano, em “Música Perdida” Assis Brasil romanceia a vida do compositor Joaquim José de Mendanha.

Romance polifônico, de leitura agradável e fluída, o livro “Música perdida”, de Luiz Antonio de Assis Brasil, tem como personagem principal uma figura que, apesar de relativamente comum na ficção universal, é ainda muito rara na literatura nacional, isto é, o compositor.

Um dos principais romancistas brasileiro em atividade e autor de obras premiadas – tais como “A margem imóvel do rio” e “O pintor de retratos” – em “Música perdida” (pelo qual concorre este ano o Prêmio Jabuti de melhor romance) Assis Brasil toma como fio condutor a vida do compositor mineiro Joaquim José de Mendanha (1801-1885), que na vida real é mais conhecido por ser o autor da música do Hino Farroupilha, mais tarde conduzido ao status de hino oficial do Rio Grande do Sul. Em uma laboriosa teia narrativa, na qual a ficção e a biografia se entrelaçam de forma coesa em diversos lugares do tempo e do espaço, o escritor constrói um personagem complexo, no qual valores, deveres e anseios antagônicos travam uma batalha constante ao longo da sua vida.

Música de ficção

É com relativa freqüência que a vida dos compositores clássicos têm sido o mote de diferentes obras de ficção, seja na literatura, na dramaturgia ou no cinema. Reais ou imaginários, é desde meados do século XIX que o compositor é uma fonte para drama e conflitos. Uma vez no campo da invenção literária – e não mais na acuidade histórica da biografia – o compositor é um personagem de grande densidade psicológica, e a vida que gira em torno dele é algo tão denso quanto sua mente criativa, o que faz de sua obra e vida singulares frente à ordinariedade do cotidiano e do cidadão comum. Seja Mozart e Salieri da pequena peça de teatro de Púchkin, o Beethoven do filme de Bernard Rose ou mesmo os fictícios Adrian Leverkühn, de Thomas Mann, e Jean-Christoph, de Romain Rolland, o compositor enquanto personagem de ficção mostra-se um figura complexa e interessante.

Apesar da grande oferta e peculiaridades que a música brasileira oferece como referência, a figura do compositor em sua ficção é ainda escassa, quando não constrangedora (tal como o filme “Villa-Lobos: uma vida de paixão”, de Zelito Viana). Tendo isto em vista, o livro de Assis Brasil revela-se ainda mais surpreendente, na medida em que ele elege o desconhecido Joaquim José de Mendanha como personagem de seu romance.

O nome deste compositor por ser colocado ao lado de outros que, apesar do virtual anonimato no qual se encontram em nossa atual cultura musical, são nomes importantes para história da música brasileira, tais como José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, André da Silva Gomes, João de Deus Castro Lobo, Manoel Dias de Oliveira e José Maurício Nunes Garcia (este também um personagem em “Música perdida”).

Todos são compositores pertencentes ao que se convencionou chamar de “música colonial”, isto é, produzida em meados do século XVIII até os primórdios do XIX, nos então centros de riquezas brasileiros, em especial, as Minas Gerais e o Rio de Janeiro.

A vida do mestre mulato

Nascido Vila Rica, o compositor Joaquim José de Mendanha (que no romance é também chamado pelo apelido de Quincazé) realizou estudos e trabalhos profissionais no Rio de Janeiro, de onde posteriormente partiu para longínqua Capital da Província do Sul, em meio às conturbações que assolavam o Império naquela época.

Mulato, Mendanha faz parte de um tipo que se tornou relativamente comum na música brasileira da época, quando parte considerável os ofícios musicais religiosos e laicos estavam a cargo de músicos oriundos de famílias humildes, e a profissão era um dos principais meio de ascensão social de então.

Em sua imensa maioria, esses compositores realizaram sua formação musical de forma improvisada, apoiando-se muito mais em seu talento do que em um método formalizado. Grande parte de suas produções foram dedicadas à música religiosa, por meio de partituras que seriam executadas por cantores e instrumentistas com uma formação aquém dos músicos que seus contemporâneos europeus dispunham para materializar sua música.

Neste sentido, é notável o cuidado de Assis Brasil ao mostrar ao leitor não só as peculiaridades do cotidiano musical pré-republicano, que em muito se contrasta com estereótipo de luxo e excelência que cerca as práticas européias, mas também como este ambiente foi determinante na vida de seus personagens, tal como fica especialmente claro nas falas de Nunes Garcia, para quem a consciência de nossa rusticidade musical chega ao ponto da abnegação intelectual. “Se deseja ser compositor no Brasil, domine seu talento”, diz a certa altura ao protagonista Quincazé.

A frase, de certa forma, ilustra uma das idéias principais do livro, qual seja, o perpétuo estado de ansiedade do artista sempre em meio a forças antagônicas: o poder e o ceder, a nobreza artística e a indigência comercial, a sofisticação da intelectual e o simplismo do público. Mas o antagonismo maior, que por fim é o que faz o protagonista abandonar o cosmopolitismo carioca para a provinciana Porto-Alegre oitocentista, é o choque decorrente entre as obrigações sentimentais juntos aos seus próximos (em especial ao pai e aos seus mestres-tutores) versus a vaidade e a ambição naturais a um jovem artista.

Com sua prosa envolvente e a familiaridade com aspectos históricos e técnicos das práticas musicais, Assis Brasil oferece ao leitor uma obra bela e consistente sobre a música e vida que mesmo que momentaneamente recuperada, estará inexoravelmente perdida devido ao fatalismo que projeta sua sombra sobre os trópicos brasileiros.

Serviço
“Música perdida”, de Luiz Antonio de Assis Brasil
L&PM, 220 págs., R$ 28

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

3 comentários:

sheila maceira disse...

o livro é realmente uma pérola sob vários aspectos. creio que valeria ainda comentar sobre o estilo conciso da prosa inaugurada pelo autor justamente nesta obra: uma busca, aos meus olhos, muito bem-sucedida pela essencialidade. um livro que vale a pena ser lido.

Anônimo disse...

anotado. beijos, pedrita

Anônimo disse...
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