Em diversos idiomas, a palavra “diva” está diretamente ligada à noção de divino, significando literalmente “deusa”, e no sentido figurado uma mulher que é tomada como musa inspiradora (sendo a palavra “musa” também com significados divinos estreitamente ligados à música). Etimologias à parte, o termo por fim se fixa como um substantivo – nem sempre de forma elogiosa, é verdade – que se refere às cantoras líricas especiais. Especiais por possuírem uma voz, por sua presença hipnótica quando no palco, mas muitas vezes, também por seu comportamento genioso e irascível.
Entretanto, este estereótipo ainda tão voga tem seu entendimento moderno na figura desta que é considerada a grande diva do século XX: Maria Callas, que mesmo após trinta anos de sua morte, continua a ser uma das personalidades mais cultuadas do universo clássico.
Independentemente de predileções e gostos pessoais, não há como negar a existência de um verdadeiro culto à figura de Callas. Trata-se de um culto em cujo altar são adorados um sem número de gravações, fotos em trajes de gala ou das heroínas que representou ao longo de sua carreira. Como em toda religião, há leituras e releituras (biografias, cartas, críticas e relatos) constantes realizadas sobre a diva. Algumas são alegremente festejadas por seus seguidores, outras – por sua iconoclastia – proscritas do códice de Callas.
Produto de uma era em que os meios de comunicação de massa já despontavam com sua vocação globalizante, quando no ápice de sua carreira Maria Callas automaticamente tornou-se uma celebridade de repercussão mundial. Se atualmente ela não está entre nós, sua fama, entretanto, é mantida por meio de uma infinidade de produtos de audiovisuais que passam ao largo da crise que há tanto tempo assola o mercado fonográfico clássico. O mito que se construiu em torno da imagem de Callas garante a sua imagem a perenidade que só os grandes detém ao transcorrer da história.
Mas, por detrás do mito, quem, afinal, foi Maria Callas?
A gênese de uma musa grega
Comparar a pessoa de Callas com a de uma personagem mitológico grego é algo que não se deve exclusivamente a sua ascendência. Tal como uma deusa antiga, sua história de vida é intensa, onde grandes feitos contrastam violentamente humilhações e tristezas.
Batizada como Maria Anna Sophie Cecília Kalogeropoulos, Callas nasceu
Apesar de seu início de vida nos EUA, onde inclusive começou a estudar piano, aos 14 anos Callas, sua irmã e mãe retornaram à Grécia, onde em 1938 ingressou no Conservatório Nacional de Atenas. Lá passaria a ter aulas de canto com Elvira de Hidalgo, a quem é atribuído o mérito de seu real treinamento vocal.
Apesar do relativo sucesso que Callas conheceu na terra natal de sua família, em 1944 ela decide voltar para os EUA (que na época já contava com importantes casas de ópera, como a de Chicago e o Metropolitan de Nova York), onde se envolve em produções malfadadas. Apenas em 1947 as coisas começam a mudar em sua vida, quando foi então convidada para protagonizar a ópera “
Entretanto, apenas em 1949, ano em que se casa com o industrial italiano Giovanni Battista Meneghini (que se tornaria seu empresário artístico e grande responsável pela projeção de sua imagem) e quando Callas substitui a soprano Margherita Carosio no papel de Elvira em “I Puritani” no teatro La Fenice, em Veneza, é que parece ter iniciado a história da diva que iria mudar a cena lírica, marcada por sua íntima relação com o repertório do bel canto.
Entre o mito e a realidade
Várias questões intrigantes surgem quando se toma Callas como tema de reflexão. Mas talvez a pergunta mais fundamental seja por que, afinal, Maria Callas tornou-se “a Callas” em uma época onde existiam vozes tão belas quanto a sua?
Segundo o pesquisador da ópera e professor da USP Sergio Casoy, autor de diversos livros sobre história da ópera, o diferencial de Callas foi que a partir dela “a beleza do canto feminino, embora não tivesse sido relegada, deixou de ser fundamental, e teve de dividir sua importância com a interpretação com a materialização do papel”.
O divisor de águas que Callas representa na história do canto e da ópera é que, a partir dela, o trabalho de interpretação dramática passou a ser tão importante quanto a música em si, e isto em uma época na qual a verossimilhança nas encenações operísticas era praticamente inexistente.
O talento dramático de Callas era indissociável de seu talento musical, e Callas teve a felicidade de trabalhar esta faceta com grandes encenadores e diretores de cinema como Franco Zefirelli, Luchino Visconti e Píer Paolo Pasolini: cultuar Callas não é apenas escutá-la, mas, acima de tudo, compreender a persona que ela imprimia a cada personagem, que por sua vez é refletida em sua forma de cantar.
“Detestei Callas na primeira vez que a ouvi” diz o crítico musical e historiador da ópera Lauro Machado Coelho ao se referir à gravação de 1954 da “Norma” de Bellini. “Achei sua voz esquisita, feia e desigual. Fui à loja e troquei por outra coisa. Mas nos dias que se seguiram, fui tomado por uma sensação muito esquisita: a vontade de ouvir aquela gravação de novo. Paguei o mico de voltar à loja e recomprar o disco. E aí, caiu a ficha: aquela ‘vozinha’ mofina tinha a capacidade de ganhar vida diante de seus olhos, com uma extraordinária força de persuasão”.
Entretanto, a atenção que Callas direcionou para o aspecto dramatúrgico significava uma compensação pela parte vocal, reconhecidamente uma das mais belas do século XX.
Mesmo com tanto talento, com o passar da carreira a diva conheceu um desgaste vocal que muitos atribuíram ao fato dela cantar personagens muito diferentes entre si. Apesar disto, Casoy explica que “Callas jamais cantou algo que fosse inapropriado, pois sem dúvida ela era uma soprano sfogato”, isto é, um tipo de voz com uma flexibilidade que lhe permitia cantar tanto personagens cuja música tende ao agudo como ao grave. “Sua voz se danificou por excesso de trabalho no início da carreira e por excesso de farra em seu final”, conclui.
Aliás, farras, desentendimentos e conturbações conjugais são alguns dos outros elementos que concretizaram a imagem da diva. Já exposta uma mídia extremamente invasiva, a vida de Callas foi presença constante no colunismo social da época, que se esbaldou quando em 1959 ela desmanchou seu casamento com Meneghini para viver um romance que jamais se concretizou em matrimônio com o milionário grego Aristóteles Onassis, e a preteriu em favor de Jacqueline Kennedy, então viúva do presidente norte-americano John Fitzgerald Kennedy.
Somando-se a tudo isto, muito do sentido pejorativo do termo diva em Callas surgiu do fato da cantora não raro cancelar de última hora suas apresentações, seja alegando motivo de saúde ou porque não simplesmente não se achava em condições de fazer tudo o que podia fazer. Ao longo de sua carreira a diva deixou a ver navios diversas autoridades confortavelmente instaladas em seus camarotes, fato que só alimentava a virulência da imprensa.
Na dimensão mítica à qual Callas foi lançada é sempre nebuloso o discernimento entre a verdade e a mentira. Mas suprimindo tudo o que é musical do que é mundano, nos deparamos com uma Callas extremamente trabalhadora, e acima de tudo “uma grande artista, no sentido mais amplo da palavra, de alguém que pensa sua arte”, como defende Machado Coelho.
Ainda que Callas, em 16 de setembro de 1977, tenha encontrado o fim de seus dias depressivamente confinada num apartamento em Paris, a imagem que resiste é a grande cantora que literalmente dava vida à suas personagens e óperas, que não fosse por ela provavelmente estariam excluídas do firmamento operístico, onde a grande diva sempre viverá.
[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]
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