28 julho 2007

As mulheres de Campos

Com a ópera “Rita”, festival chega a um de seus pontos culminantes.

Todo mês de julho a cidade paulista de Campos do Jordão torna-se uma espécie de epicentro social brasileiro, um ponto para onde converge uma fauna heterogênea, e muitas vezes, antagônica em si mesma. Por conseqüência Campos, à sua maneira, torna-se um lugar de contrastes. Somente em Campos os ônibus de lotação enfrentam um congestionamento ao lado de uma Ferrari. Somente em Campos a música clássica combate literalmente em praça pública contra o som “bate-estacas” dos carros que passam na rua ao lado. Somente em Campos madames bem vestidas travam verdadeiras disputas por brindes e outros bibelôs baratos distribuídos como amostra grátis. Somente em Campos pode existir um evento como um excelente festival de música que, justamente no ano em que homenageia as mulheres, tem que conviver com uma caminhonete publicitária que traz uma vitrine ostentando em seu interior mulheres semi-nuas, exibindo-as tais como escravas num pelourinho, anunciando sabe-se lá o quê. Num lugar onde o medíocre e o sublime se esbarram, o Festival Internacional de Inverno encerra este fim-de-semana sua trigésima oitava edição, mantendo a excelência artística de suas apresentações e de seu projeto educacional.

Dentre as inúmeras atrações previstas para esta edição a apresentação semana passada da ópera “Rita”, de Gaetano Donizetti (1797-1848) é a que possivelmente melhor sintetize os ideais desta homenagem ao verdadeiro sexo forte. Isto se deve não apenas pela personagem protagonista ser mulher, nem por na produção do festival estar envolvido mulheres em funções-chave normalmente desempenhadas por homens, tais como a direção de cena e a regência. Antes de tudo, a própria temática da ópera mostra-se providencial: uma mulher, Rita, que tem o hábito de bater em seu marido, Beppe, menos por conta de uma personalidade geniosa ou de um feminismo avant la lettre, mas sim como ressonância das pancadas pretéritas tomadas de seu (dado por) falecido marido, Gaspar. Com um enredo desenvolvido em forma de “comédia dos erros”, o libreto de Gustave Vaëz garante uma história divertida ao mesmo tempo em que aborda por meio da comédia pontos importantes sobre a questão da mulher na sociedade (ainda mais tendo em vista que a ópera foi composta há mais de um século e meio).

As personagens e situações previstas na obra de Donizetti mostraram-se o lugar ideal para sua plena assimilação por parte do elenco vocal escalado para este espetáculo. No papel-título, a soprano Rosana Lamosa mostra porque é um nome forte e muito requisitado produções Brasil afora, desempenhando com sua habitual competência as árias e duetos previstos nesta partitura de escritura leve e de fácil assimilação. Recém chegado de importantes apresentações na Europa, o tenor Fernando Portari, no papel do marido mal-tratado, foi o quem se mostrou mais a vontade com um personagem cômico, contagiando por diversas a numerosa audiência que acompanhou as duas récitas da ópera (uma no Auditório Cláudio Santoro e outra, desafio maior, ao ar livre, na Praça do Capivari). Já o barítono Paulo Szot, a cargo do “vilão” Gaspar, por sua vez mostra porque tem sido cada vez mais requisitado no exterior, com seu pleno domínio e beleza vocal que faz com que a gente até se lamente de Donizetti não ter escrito mais uma ou duas árias para este personagem.

Apesar desta partitura de Donizetti estar longe de ser um desafio em termos de regência operística, é impossível não notar o cuidadoso trabalho realizado pela regente Debora Waldman (leia entrevista abaixo). Detentora de gestos claros e precisos, Waldman garantiu a vitalidade e energia que as situações musicais desta ópera demandam, garantindo a integração entre a Orquestra Acadêmica e os cantores, mesmo contando com pouquíssimos ensaios.

Apesar da competência musical e cênica dos cantores, eles poderiam ter sido melhor explorados por Carla Camurati, que assinou a direção cênica do espetáculo. Mesmo tendo em conta o exíguo tempo que a produção teve para preparar o espetáculo, fica-se com a impressão que a movimentação dos cantores e sua interação com os cenários e objetos cênicos poderia ter sido muito melhor. Nestes termos, ficou muito a dever o parco cenário desenvolvido por Cica Modesto, que abusou da estaticidade numa ópera que se desenvolve em ritmo quase frenético. Ainda que se alegue que tanto o auditório como o palco montado na praça não possuam as condições técnicas ideais, tal argumento cai por terra quando se toma o engenhoso trabalho cênico desenvolvido sob as mesmas condições na ópera no festival do ano passado. Na récita do auditório o trabalho de iluminação foi tão pobre que ninguém sequer revindicou por ele na ficha técnica do espetáculo.

Mas, de novo, estamos em Campos do Jordão, e desta terra antagonismos sai-se com aquilo que nos causa a melhor impressão, e não há dúvida de que a música em si bastou-se para fazer de “Rita” um espetáculo muito mais que agradável.

Foto: Paulo Szot, Fernando Portari e Rosana Lamosa na montagem de "Rita", por Rachel Guedes.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito boa a introdução!