10 setembro 2006

Cânticos de um Brasil pretérito

Caixa de CDs traz coletânea de músicas recolhidas pela Missão de Pesquisas Folclóricas, idealizada por Mário de Andrade.

Pensar e compreender a música no Brasil está longe de ser uma tarefa das mais triviais, ao menos quando se tem em mente a diversidade estilístico-social que lhe é inerente e as complexas relações e implicações que dela resulta: índios, brancos, negros, miscigenação, religião, comércio, rituais, mundo rural, mundo urbano, estrangeirismos e ambientações são apenas alguns dos ingredientes que compõe este complexo fenômeno artístico-cultural que é a nossa música.

O lançamento do projeto “Mário de Andrade - Missão de Pesquisas Folclóricas”, que inclui seis CDs e um mini-livro, é uma oportunidade há muito tempo esperada por pesquisadores e amantes da música brasileira que queiram entender melhor um dos capítulos mais interessantes de nossa rica e complicada história musical.

Ciente da complexidade do fenômeno musical brasileiro, Mário de Andrade (1893-1945) dedicou boa parte de sua produção intelectual à compreensão de nossa música, à parte sua impressionante produção como poeta, cronista, romancista e jornalista. Para isto, lançou mão de recursos científicos e metodológicos pioneiros em um país que ainda hoje sofre com a desinformação e o descaso de seus patrimônios culturais.

Nascido em São Paulo, Andrade recebeu sua educação formal numa sociedade que tinha a cultura francesa como referência cultural. No âmbito da música, a estética do Romantismo europeu era o ideal artístico almejado pelas elites, ao mesmo tempo em que a cidade e sua periferia já experimentava uma intensa atividade de música popular.

Como todo rebento de uma “família de respeito”, Andrade aprendeu francês, artes e música, freqüentando o então renomado Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.

Apesar imerso numa sociedade que pateticamente sonhava com os boulevares parisienses, desde que começou a se dedicar à compreensão da música brasileira, Andrade entendeu que o abrasileiramento da música que hoje chamamos de música erudita era a condição fundamental para que nossa música fosse projetada à condição de arte universal.

Tal como ocorrido em algumas culturas européias na passagem entre os séculos XIX e XX, esta nacionalização da música de concerto era idealizada por meio da inserção de elementos de música tradicional em meio a um contexto sinfônico ou camerístico, além da evocação de imagens e temáticas oriundas deste universo.

Porém, Andrade não queria apenas perpetuar as práticas de compositores Românticos brasileiros – tais como Alberto Nepomuceno, Alexandre Levy e Hekel Tavares – que apenas utilizavam melodias oriundas de uma visão bastante estreita de folclore em meio a um contexto musicalmente europeizado e discrepante com a natureza de nossas tradições populares.

Andrade tinha como meta fazer com que a nossa tradição popular fosse parte intrínseca da moderna música de concerto, nos moldes que então se fazia na Europa por meio da obras de grandes compositores que passaram a ser associados ao Neoclassicismo, tais como Igor Stravinsky, Maurice Ravel e Manuel de Falla, entre outros. Era o sonho de um Nacionalismo musical então sem precedentes em nossa história.

Para que isto se concretizasse, Andrade vislumbrou três etapas através das quais esta nova arte musical tipicamente brasileira necessariamente deveria passar. A primeira delas era a fase da tese nacional, na qual os compositores deveriam estudar e pesquisar manifestações folclóricas para sua incorporação na música de concerto, mesmo não que de imediato não se identificasse com elas. Vencida a primeira etapa, viria então a fase do sentimento nacional, na qual os compositores já se identificariam com as características do material musical de nosso folclore, sendo então capazes de compor livremente. Por último, viria a fase da inconsciência nacional, e nesta a composição já resultaria naturalmente “brasileira”, independente da intenção do autor.

Por fim, o projeto final de Andrade não se realizou de forma efetiva. Porém, para que este projeto chegasse aos interessantes resultados que chegou – vide, por exemplo, as obras de compositores como Camargo Guarnieri, Francisco Mignone e Heitor Villa-Lobos – Andrade teve que dar uma resposta à pergunta que norteia toda esta questão: Em que se consiste a natureza da genuína música brasileira, aquela a ser tomada como referências para todas as demais?

A resposta é simples: a música popular. Porém, continua-se a perguntar: Mas qual música popular? Para Andrade, apenas aquela que ainda estava salvaguardada das influências estrangeiras que já se faziam presentes na música popular dos centros urbanos do sudeste, isto é, praticamente toda a música não urbana, seja ela rural, sertaneja, cantos de trabalhos ou mesmo aquela proveniente de pequenas cidades. Em outras palavras, tudo aquilo que passou a se designar por música folclórica.

Vivendo numa era em que a indústria fonográfica já dava seus primeiros passos em direção ao esfacelamento dos estilos musicais regionais por meio da influência de ritmos estrangeiros – em especial, o jazz – o folclore mostrava-se para Andrade como a única fonte pura onde o Brasil poderia beber de sua própria brasilidade.

Porém, a visão de música folclórica que Andrade tinha era muito mais ampla se comparada ao entendimento que os compositores Românticos tinham anteriormente, em geral, focada na visão bucólica e pastoril do nordestino e do homem do campo brasileiro. Sob este aspecto, um dos principais feitos de Andrade foi mostrar as elites brancas toda a tradição da música ritualística negra, da macumba, da feitiçaria, ainda vista com temor e reprimida pela polícia da época.

Ciente da necessidade de ampliar o “repertório” folclórico conhecido na cidade, em finais de 1928 Andrade empreende uma viagem pelo Nordeste brasileiro a fim de catalogar diversas manifestações folclóricas ou desconhecidas ou pouco estudadas, sendo um dos pioneiros do estudo científico da música brasileira ao buscar em campo as informações que procurava, não se contentando com meros relatos ou com sensos-comuns. Apesar dele mesmo não ser um compositor, Andrade tinha em mente que este tipo de material deveria ser a pedra fundamental do Modernismo musical que ele imaginava para o Brasil.

No ano seguinte ele retorna a São Paulo com um vasto material, em especial, fichamentos descritivos e partituras das músicas que presenciou. Porém, Andrade sabia que ainda havia muito a ser feito, e em 1934, ano em que assume o Departamento de Cultura de São Paulo (atual Secretaria de Municipal de Cultura), vê a oportunidade de fazer este trabalho científico com a extensão e os recursos tecnológicos – isto é, com o uso de gravadores – que na década anterior não lhe foram possíveis. É quando passa a ser organizada a Missão de Pesquisas Folclóricas.

Algo parecido foi empreendido anos anteriormente em regiões do Leste Europeu pelo compositor húngaro Béla Bartók. No Brasil, apenas as gravações de indígenas em Rondônia realizadas em 1917 por Roquete Pinto ao acompanhar uma expedição do Marechal Rondon (porém, todo este material foi praticamente perdido devido ao descaso estatal) precede à ação de Andrade.

Após muita preparação, por fim, em 1937, a Missão parte rumo ao Nordeste do Brasil em busca de material etnográfico para a Discoteca Pública de São Paulo (órgão criado por Andrade, hoje departamento do atual Centro Cultural São Paulo). Coordenados por Andrade, por Oneyda Alvarenga (então diretora da discoteca) e Dina Lévi-Strauss (esposa do antropólogo francês Claude Levis-Strauss, um dos pioneiros da USP) a equipe que iria a campo era formada por apenas quatro homens – Martin Braunwieser, Luis Saia, Benedicto Pacheco e Antonio Ladeira – que ficariam a cargo de todas as etapas do processo de coleta de material músico-etnográfico, tais como a própria gravação, a descrição escrita, filmagens e fotografias.

É do imenso material fonográfico coletado por este bravos pesquisadores que foi extraída a antologia contida nos seis CDs recém lançados neste grande projeto finalmente disponível para consulta.

No total, são quase sete horas de música. Pode parecer muito, mas quando se pensa que estas horas são apenas uma parcela de todo o material coletado – e que este é, por sua vez, uma pequena parte de toda a cultura não-urbana então existente neste Brasil pretérito – é que se certifica o quão breve, apesar de valiosa, é esta antologia. Apesar de abranger cinco Estados, boa parte da coleta realizada pela Missão concerne a Paraíba, que então dividia algumas tradições folclóricas com Pernambuco. Muitas das manifestações testemunhadas por estes pesquisadores ainda sobrevivem aos dias atuais, mesmo que muitas vezes mascaradas sob rótulo comerciais ou turísticos.

Trata-se de uma coleção para se ouvir aos poucos, sempre recorrendo aos excelentes e acessíveis textos (em edição bilíngüe em português e inglês) de Flávia Toni, Marcos Branda Lacerda e Jorge Coli. Se o interesse aumentar, o conjunto de estudos pode ser completado com o “Dicionário Musical Brasileiro”, obra póstuma realizada a partir das anotações de Andrade sobre os diversos aspectos de nossa cultura musical.

O projeto ideológico musical de Mário de Andrade pode, por fim, não ter se realizado com a mesma amplidão que imaginou. Mas a diversidade de nossa música permanece, e estes registros são a oportunidade de visitarmos musicalmente uma parte de nosso passado musical que quase se perdeu definitivamente de nossa cultura.

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