
Nascido às oito horas da noite do domingo de 27 janeiro de 1756, no No. 9 da Getreidegasse na pequena cidade austríaca de Salzburgo, desde tenra idade Mozart se viu envolvido com música. Seu pai, o violinista e compositor Leopold Mozart foi um dos grandes nomes de seu tempo, e seu método de violino é, ainda hoje, uma referência muito utilizada quando se trata de conhecer a técnica de execução de instrumentos de arco do século XVIII.
Tão logo começou a dar sinais de seu excepcional talento – sua primeira composição foi escrita quando ele tinha apenas cinco anos – seu pai logo tratou de inserir o infante Mozart no mercado musical, agendando apresentações nas mais diferentes casas reais da Europa. Hoje em dia é lugar comum acusar o pai de vender a infância do filho, mas vale lembrar que, para a época, Leopold nada mais fez que o convencional, tendo em vista que os filhos eram desde muito cedo vistos como uma força de trabalho, e caso este fosse abençoado como algum dom especial – tal como era evidente no jovem Wolferl (seu apelido familiar) – um meio de obtenção riquezas (no Brasil, algo muito semelhante ocorre atualmente nos campos de futebol de várzea...).
Sua história de vida é, de um certo ponto de vista, comum: teve um conflituoso relacionamento com o pai, tinha uma natural tendência à desobediência às autoridades em geral, alguns relacionamentos amorosos, mulher e filhos, conflitos profissionais e uma enfermidade que, por fim, encerrou precocemente sua vida, aos 35 anos de idade.
O que, no entanto, vêm seduzindo biógrafos, musicólogos e o público ao longo destes dois séculos e meio são os milagres musicais transcorridos a partir de sua pena: além da precocidade musical em si – sua primeira ópera foi estreada quando tinha apenas 12 anos – Mozart ficou muito conhecido não só pela facilidade em compor, mas também pela incrível velocidade com que o fazia e pelo grau de perfeição obtido logo na primeira versão que, em geral, prescindia de revisões.
Esta facilidade na composição, que dava a impressão de que Mozart apenas colocava no papel um ditado musical proferido por uma voz celeste, contribuiu de forma decisiva para o surgimento do mito do compositor com dotes divinos. Transposto para a esfera mitológica, foi necessário inserir na biografia de Mozart um antagonista à altura, e o papel de algoz do “escolhido” coube não a um mero e rigoroso patrão – tal como é retratado Hieronymus Colloredo, então príncipe-arcebispo de Salzburgo – mas sim a um dos mais famosos e influentes compositores da época, o italiano Antonio Salieri (1750-1825).
Na Grécia clássica a diferença entre mito e história era inexistente. Posteriormente surgiu a diferença entre uma história “de verdade” e outra, digamos, ficcional. O caso entre Mozart e Salieri tem sido, desde então, um exemplo de que nem sempre estamos interessados em saber o que de fato ocorreu, e a rivalidade profissional entre eles – que de fato existiu – foi transformado num drama que desde o século XIX vêm seduzindo escritores e dramaturgos.
Mozart e a “Gangue do Lobo”

A música e o talento singular de Mozart chamou a atenção de grandes escritores em épocas ainda muito próximas de sua morte, antes de sua mitificação no século posterior. O poeta E.T.A. Hoffmann (de quem algumas histórias são utilizadas na famosa opereta de Jacques Offenbach “Os contos de Hoffmann”) dedicou à Mozart várias linhas à sua vida e principalmente à sua obras musicais (Hoffmann é também um importante crítico do século XVIII). Diferentemente da classificação dada pela atual historiografia da música, Mozart era para Hoffmann um importante compositor romântico, cujos avanços musicais foram imprescindíveis para o surgimento da então moderna e revolucionária música, simbolizada por ninguém menos que Ludwig van Beethoven.
Porém, tão logo o conceito de história da música passou, no século XIX, a supervalorizar o conceito de gênio a biografia de Mozart foi resumida à sua precoce genealidade e à dramatização de suas desavenças profissionais com Salieri (em tempo, tal desavença residia no fato de Salieri ser o compositor oficial da corte vienense, um dos cargos mais elevados da época e muito almejado por Mozart).
Em 1830 o dramaturgo russo Alexandre Puchkin (1799-1837) leva ao palco a peça “Mozart e Salieri” no qual o compositor italiano é transformado num envenenador. A hipótese de envenenamento de fato foi um boato que existiu na época, apesar do agravamento da síndrome renal ser a evidente causa mortis de Mozart. Em 1898 o também russo Rimski-Korsakov compõe uma ópera sobre o texto de Puchkin, dando o passo decisivo para a perpetuação da lenda.
Já em finais da década de 1970 o dramaturgo inglês Peter Shaffer (1926) faz sua versão para o “duelo” entre Mozart e Salieri na peça “Amadeus”, que em 1984 ganha às telas numa aclamada versão de Milos Forman ganhadora de oito oscars. Nela Salieri (o fantástico Murray Abraham) não é mais retratado como um assassino, mas sim um invejoso candidato a homicida que vê seu plano interrompido pela intervenção divina.
Consumido por seu estereótipo, a vida e a obra de Mozart veio a encontrar uma versão ficção interessante e sublime apenas em 1991 (ano em que se celebrava os 200 anos da morte de Mozart), na sofisticada obra do escritor inglês Anthony Burgess “Mozart & the Wolf Gang” (literalmente, “Mozart e a Gangue do Lobo”, trocadilho com o prenome do compositor).
Mais conhecido como autor do romance “A Laranja Mecânica” – que em 1971 também viria a tornar um sucesso do cinema sob a direção de Stanley Kubrick – Burgess (1917-1993) não era “apenas” um escritor, mas também um músico e compositor com grande conhecimento de história da música que fica evidente ao longo de sua obra literária.
Em “Mozart & the Wolf Gang” Burgess tem como ponto de partida um insólito e espectral encontro entre os compositores Beethoven, Mendelssohn, Bliss, Prokofiev e Wagner (a tal “Gangue do Lobo”) que se reúnem para fazer uma homenagem ao mestre de Salzburgo com uma ópera sobre sua vida. O livro – que mistura a escrita dramatúrgica com a prosa – é pleno de inspirados diálogos cheios de acidez e perspicácia musical e intermediados por outros encontros insólitos. Rossini, Berlioz e Stendhal fazem sua apreciação da essência da música. Schoenberg tem um desentendimento com Gershwin quanto à mediocridade da música e do libreto elaborados para a tal “ópera”. Lorenzo da Ponte (libretista na vida real de óperas de Mozart) tem uma interessante conversa com o escritor inglês Henry James, e mesmo o próprio autor da obra, Burgess, tem o bizarro diálogo consigo mesmo, Anthony.
Sem tradução para o português, o livro pode ser uma empreitada difícil devido à grande quantidade de referências musicais. Mas mesmo assim, sua leitura é recomendada não só pela temática mozartiana, mas também pelo sofisticado trabalho literário realizada sobre a mítica vida de Mozart.
Mozart e, enfim, sua música
Mitos e lendas à parte, Mozart sim foi um grande compositor e um marco na história da música ocidental. Não desmerecendo a real grandeza de sua obra e seu inegável talento sua genialidade tem, no entanto, uma explicação “racional”.
A segunda metade do século XVIII – período de nascimento e morte de Mozart – o estilo musical vigente na Europa encontrava num avançado grau de estabilização. Isto quer dizer que este o artesanato da composição musical era realizado por meio de uma série de regras e convenções musicais amplamente consolidadas, que apesar da singularidade inerente à cada objeto artístico, estes eram construídos a partir uma série de hábitos e clichês que faziam parte do cotidiano de qualquer músico mediano.

A genialidade Mozart não reside apenas na quantidade e rapidez com que ele compunha, mas sobretudo nas pequenas inovações presentes a cada partitura.
Mozart compôs toda sua obra sobre o alicerce das convenções clássicas, compartilhada por diversos contemporâneos seus. Invenção como sinônimo de revolução e superação de todas as convenções é próprio da estética clássica. Mozart, no máximo, a caricaturou, tal como na “Brincadeira Musical” – na qual a orquestra termina a obra num divertido e grotesco acorde escrito propositalmente errado – e na curiosa “Musikalisches Würfelspiel”, na qual o pianista tem que “montar” a partitura a partir de uma seqüência numérica gerada por lances de dados.
Apesar de baseada nas convenções clássicas, cada obra tem algo de novo, de inovador e inusitado, o que inviabilizam sua análise e apreciação por meio de algum modelo fixo. Apesar de “previsível” no estilo, cada obra de Mozart é singular nas filigramas de sua escritura, que quando tocadas dão aquela já convencional – porém sempre atual e real – impressão perfeição, através da qual não raro vislumbramos o quão sublime a arte pode ser.