01 junho 2007

Os últimos acordes da temporada manauara

Obra de Villani-Côrtes é estreada no Festival Amazonas de Ópera, que foi encerrado com concerto lírico de Nuccia Focile.

Após cinco semanas de intensas atividades, encerrou-se sábado passado na cidade de Manaus a décima primeira edição do Festival Amazonas de Ópera (FAO). Por meio dos diversos tipos de espetáculos programados para este ano o evento reafirma sua importância em diversas frentes. No âmbito nacional, o FAO continua a se destacar das demais casas de ópera brasileiras não só pela qualidade de seus espetáculos, mas bem como pelas diversas estréias – nacionais e mundiais – realizadas nessas últimas semanas (respectivamente, “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk”, de Shostakóvitch, e “Poranduba”, de Villani-Côrtes).

Em termos internacionais, após a grande projeção alcançada em 2005 pela montagem de “O Anel do Nibelungo”, de Richard Wagner, o FAO volta a atrair os olhos do universo wagneriano com a polêmica montagem de “O Navio Fantasma” dirigida por Christoph Schlingensief, que anteriormente já havia assinado encenações no teatro de Bayreuth, meca do wagnerianismo mundial. Regionalmente, o evento reafirma sua ampla aceitação, com casa sempre cheia em todos os espetáculos realizados no Teatro Amazonas.

Para a última semana de suas atividades foi programada a encenação em estréia mundial da ópera “Poranduba”, de Edmundo Villani-Côrtes e um concerto de encerramento a soprano Nuccia Focile (foto ao lado). Acompanhada pela Amazonas Filarmônica, sob a regência de Luiz Fernando Malheiro, a soprano italiana encerrou em grande estilo o FAO deste ano, em um concerto com grande ênfase no repertório italiano. Cantando árias famosas de óperas românticas – nas quais se destacaram as belíssimas interpretações de “Sola, perduta e abbandonata” e “Sonde lieta uscì”, de Puccini, e “Pace, pace mio Dio”, de Verdi – Focile demonstrou grande musicalidade, além de um grande domínio técnico, especialmente evidenciado nas passagens agudas com difíceis indicações de dinâmica.

Povos da floresta no palco do teatro Belle Époque

Das três óperas programadas para esta edição ficou a cargo do compositor brasileiro Edmundo Villani-Côrtes a incumbência de propiciar a estréia mundial do evento, por meio de sua “Poranduba”. Nascida a partir de uma proposta realizada pela escritora de literatura infanto-juvenil Lúcia Pimentel Góes (que assina o libretto da ópera), a partitura de “Poranduba” vem sido escrita desde 1995, tendo tomado sua forma definitiva apenas agora, para sua estréia no FAO, que contou com a direção cênica de Francisco Frias e a Amazonas Filarmônica e elenco vocal sob a regência de Marcelo de Jesus.

Dentro de uma perspectiva mais tradicional fica difícil classificar “Poranduba” como uma ópera, devido ao fato de seu libreto privilegiar uma dimensão dramatúrgica fragmentada ao invés do fluxo narrativo contínuo. No lugar de um enredo, temos fragmentos de lendas e mitos de povos indígenas da Amazônia. Neste contexto, a maioria dos personagens são sim porta-vozes de uma “contação de história”, e não o sujeito de um enredo. O próprio personagem-título, Poranduba, limita-se na função de mestre-de-cerimônia, ao invés de ser um personagem propriamente dito. No espetáculo estava à venda um livro-libretto em formato de publicação infanto-juvenil com ilustrações de Glair Alonso Arruda.

Do lado musical, a heterogeneidade estilística da partitura composta por Villani-Côrtes é um reflexo exemplar da linguagem musical que ele vem desenvolvendo ao longo de suas décadas de carreira. Com um discurso harmônio fortemente baseado na linguagem tonal, é notável a clareza com a qual o texto é apreendido depois de musicado, resultado de um cuidadoso trabalho de prosódia musical que praticamente dispensa o trabalho de legendagem. É especialmente bonita a laboriosa orquestração realizada pelo compositor, que perpassa por diversos estilos, desde o sutil colorido impressionista até a energia dos arranjos sinfônicos sob ritmos populares.

Na parte vocal, o barítono Leonardo Neiva ficou a cargo de papel-título. Sem muitas obrigações cênicas, Neiva desenvolveu com competência uma parte musical que frisa as notas graves de seu registro. Nomes recentes na cena lírica brasileira, os jovens Daniel Marchi (Kanassa) e Eric Herrero (Jurupari) tiveram em “Poranduba” a oportunidade trabalhar personagens musicalmente mais complexos. Tal é também o caso das sopranos Tamar Freitas (Ceucy) e Katia Freitas (Saracura), ambas as filhas da terra que aos poucos vão galgando espaço neste concorrido segmento. Porém, o momento de maior comoção musical ficou mesmo a cargo dos “veteranos” Sérgio Weintraub e Luciana Bueno, que desenvolveram belamente as líricas passagens com perfumes villa-lobianos reservadas para o dueto dos personagens Pai e Mãe.

Se um libreto destituído de dramaticidade como o de Poranduba de certa forma tira o peso da direção cênica – aliás, eficientemente realizada por Francisco Frias – foi o trabalho de direção de arte que, por fim, unificou a teia fragmentada do enredo. Rico em referências visuais à cultura indígena amazônica, a direção de arte de Renato Theobaldo e os cenários de Roberto Rolnik Cardoso – aliados à luz de Caetano Vilela – encheram os olhos ao utilizarem cores fortes em elementos cenográficos simples e criativos.

A ópera e o Papa

Entre tantos acontecimentos, polêmicas, críticas e resenhas, no final do festival o assunto que dominava as rodinhas do Teatro Amazonas era o Papa Bento XVI. Explica-se: durante sua visita ao Brasil, o governador Eduardo Braga esteve em São Paulo para a missa de beatificação de Frei Galvão. Na ocasião, Braga teve um breve contato com o Papa, um notório expert em música clássica e que de pronto o indagou sobre o festival de ópera. Mais do que um mero boato – amplamente difundido pela mídia amazonense – a informação foi oficialmente confirmada por fontes ligadas ao Governo. Nos bastidores do evento, espera-se que o fato seja o primeiro passo da realização de um milagre, já que o corte de verbas, a burocracia e as mudanças nas políticas culturais são demônios que ainda atormentam a estabilidade do festival, evento que no âmbito cultural há muitos anos está mais que consolidado e justificado.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

Um comentário:

Anônimo disse...

queria muito ter ido ver lady macbeth. beijos, pedrita