15 dezembro 2005
Stravinsky à la MTV
Desde sua invenção no século XVII a ópera entrou definitivamente na cultura ocidental, e parte deste sucesso pode ser creditada à riqueza visual que passou a acompanhar este espetáculo essencialmente musical. De forma mais ou menos paralela, artes plásticas e música encontraram na cenografia operística e de bailado seu ponto comum.
No século XX, com o advento da televisão e de outros meios comunicação e entretenimento surgidos a partir da popularização dos equipamentos eletrônicos, toda a cultura designada como música clássica limitou as possibilidades dessas novas mídias visuais a uma função meramente documental. Via de regra, as óperas filmadas são apenas o registro insípido do que se passou no palco e os concertos sinfônicos, na melhor das hipóteses, estão restritos a tomadas gerais da orquestra e closes sobre os instrumentos musicais auditivamente mais proeminentes em um dado instante.
Tudo isto pode ser entendido como mais um reflexo do conservadorismo que há tempos domina a cena clássica, que em diversos aspectos não assimilou as conquistas da modernidade (inclusa aí a própria música composta nos dias atuais).
Apesar disto, foram realizadas algumas tentativas isoladas para dar maior exuberância a estes registros áudios-visuais. Talvez o maior exemplo seja o longa-metragem “Fantasia”, no qual Walt Disney e o maestro Leopold Stokowsky unem-se para fazer da animação e da música uma só arte. Já nas décadas de 70 e 80, nos primórdios da era do vídeo-clip popular, o “über-maestro” austríaco Herbert von Karajan já fazia seus experimentos visuais, por exemplo, no vídeo da “Sinfonia No. 6” de Beethoven, com a Filarmônica de Berlin sendo gravada em um estúdio de cinema e não numa sala de concerto. Apesar de belos e interessantes exemplos, a moda nunca pegou.
Em meio a este ostracismo, chega ao mercado nacional um belo exemplo da união da música com a moderna linguagem da computação gráfica: trata-se da ópera “Le Rossignol” (“O Rouxinol”) do compositor russo Igor Stravinsky na produção da Ópera Nacional de Paris sob a regência de James Conlon (Virgin Classics/EMI, R$ 51).
Baseado no conto de fadas de Hans Christian Andersen, a ópera conta a história de um rouxinol (a soprano Natalie Dessay) que é convidado a cantar para o imperador da China (o barítono Albert Schagidullin), que literalmente se encanta com o pássaro. Entretanto, este é afugentado pelo barulho de um pássaro mecânico oferecido por três emissários japoneses e só retornará para, com seu canto, salvar das garras da Morte (a contralto Violeta Urmana) a vida do imperador doente.
Trata-se de uma história simples, naturalmente onírica, sobre a qual o uso delicado de recursos de computação gráfica desta vídeo-ópera, misturados com tomadas de cantores e de alguns instrumentos musicais, transmitem uma atmosfera impossível de ser obtida no palco de um teatro.
Sob a direção do artista gráfico francês Christian Chaudet, o “Rouxinol” de Stravinsky ganha uma dimensão surrealista, na qual elementos da cultura chinesa tradicional (tal como a cenografia virtual construída sob o modelo da Cidade Proibida) são colocados ao lado da luz néon dos anúncios que latejam nos grandes centros urbanos. Entre a gravação da trilha sonora e a finalização da parte visual, este ambicioso projeto consumiu cinco anos de produção.
Em alguns momentos fica a impressão de um certo deslumbramento com as possibilidades da computação gráfica, mas na maior parte do tempo a direção de Chaudet garante maior inteligibilidade a situações dramatúrgicas difíceis de se resolver no palco (o que não quer dizer que a subjetividade tenha sido colocada de lado).
Livre das amarras do palco italiano e da lei da gravidade, as personagens flutuam, cenários variam de dimensões minúsculas às colossais e o coro é visualmente sublimado, imprimindo um aspecto de “coro grego” (isto é, fora da ação cênica). Realizando pontes com nossa contemporaneidade, Chaudet usa um moderníssimo telefone celular para, por vezes, representar o rouxinol. O pássaro mecânico oferecido pelos enviados japoneses é um grotesco cartum em 3D e a Morte é metamorfoseada numa mercadora à frente de sua caixa registradora. Tudo isto ocorre no sonho de um garoto chinês, que tudo testemunha através de um vaso de cerâmica que desempenha a função de “lanterna mágica”.
Com tantos atrativos visuais é até fácil não prestarmos atenção na sensível interpretação musical do maestro James Conlon e do elenco vocal, que conta ainda com a mezzo Marie McLaughlin no papel da Cozinheira e com os baixos Laurent Naouri e Maxime Mikhailov como Camareiro e Bonzo, respectivamente.
Inteiramente cantada no original em russo, o DVD conta com legendas em diversos idiomas. Porém, não há nada em português, como é infelizmente de praxe na comercialização de produtos clássicos no Brasil. Mas antes de embarcar neste maravilhoso mundo de sonhos, atenção!: no menu inicial, selecione no menu “audio” a opção sem sonoplastia (“original music”), pois a infeliz inserção de ruídos cênicos – em especial, no segundo ato – é o calcanhar de Aquiles desta bela produção que merecer ser vista e revista.
[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]
06 dezembro 2005
Pérola marselhesa perdida na metrópole sufocante
Às vezes há tanta coisa em São Paulo, e não raro essas boas coisas são tão mal divulgadas ou mesmo eclipsadas por lixos de consumo em massa, que é preciso ficar atento, ou contar com a sorte, para não deixarmos escapar oportunidades únicas de testemunharmos pequenos milagres artísticos.
Este foi o caso das apresentações do grupo vocal especializado em música contemporânea Musicatreize. Sediados na cidade mediterrânea de Marselha, o grupo é conduzido pelos precisos gestos de Roland Hayrabedian, seu fundador e diretor artístico.
Em suas apresentações na rede paulistana do Sesc - tristemente vazias devido à ausência de uma divulgação adequada - o grupo nos presenteou com um repertório impossível de ser realizado por qualquer grupo vocal brasileiro da atualidade. Ok, teve alguns "bombonzinhos", como as "Três canções" de Maurice Ravel, as "Três canções sobre Charles d'Órleans" de Claude Debussy e as "Sete Canções" de Francis Poulenc.
Por outro lado, obras arrojadas e dificílimas como as "Três Fantasias" de György Ligeti, "Oroïpen" de Felix Ibarrondo e a cativante "Quatrains" de Edith Canat de Chizy foram oportunidades únicas de ouvirmos aquilo o que há de mais belo e ágil que a moderna produção composicional pode extrair da formação coral a capella.
O concerto encerrou todos seus concertos com a obra "Swan Song" de Maurice Ohana, compositor francês de quem o grupo já gravou dois CDs inteiramente dedicados a obras suas.
Para quem teve a sorte de "achar" as apresentações do Musicatreize ficou a evidente a necessidade de um retorno do grupo em terra brasileiras, só que desta vez com toda divulgação, pompa e circunstância à altura desta pérola musical marselhesa.
02 dezembro 2005
Teve até música!
O ambiente estava mais para uma festança do que para um concerto propriamente dito: o tapete estendido na entrada da Sala São Paulo e as top models que orientavam o público eram apenas as arestas de uma maciça ação de markenting da UBS (união de bancos suíços), que tem a Orquestra do Festival de Verbier (VFO) como a peça central deste tabuleiro publicitário.
Integrada por jovens instrumentistas de diversos países – em sua grande maioria, europeus e norte-americanos – a VFO consegue despertar bastante interesse por suas qualidades musicais, apesar de nem sempre seus “clientes” estarem muito interessados para o que se passa no palco.
Em sua turnê pela América Latina, regida pelo maestro tcheco Jirí Belohlávek, o grupo trouxe consigo uma das maiores sensações do universo fonográfico clássico da atualidade, o pianista chinês Lang Lang.
Menino prodígio, atualmente em seus 23 anos, Lang Lang tem em sua carreira vários prêmios de concursos internacionais obtidos quando ele ainda era adolescente. Lang Lang já tocou e gravou acompanhado por importantes orquestras e regentes (atualmente é um dos protegé do talentosíssimo Daniel Barenboim) e sua mais recente conquista é um contrato de exclusividade com o prestigiado selo Deutsche Grammophon.
Por tudo isto a apresentação de Lang Lang – que no concerto com a VFO interpretou o famigerado “Concerto No. 1, Opus 23” do compositor russo Piotr Tchaikovsky – estava precedida de uma natural ansiedade por parte do público. Tanta ansiedade pôde até induzir a apreciação do público geral, mas para os ouvidos atentos ficou evidente que Lang Lang, apesar de seu indiscutível talento, ainda está por superar o estágio de “jovem promessa”, cheio de força e rapidez nas pontas dos dedos, para de fato tornar-se um pianista com idéias musicais interessantes.
Sua interpretação do Concerto de Tchaikovsky baseou-se, via de regra, na execução de alguns rubatos (isto é, aceleração e desaceleração do tempo musical, em geral não indicados na partitura) e numa personalíssima extrapolação das indicações de dinâmicas e acentos que ainda está por se explicar. Além disto, Lang Lang extraiu do Steinway sonoridades de uma percussividade anacrônica, mais próxima de um repertório Moderno do que do Romantismo, tal como é o caso da obra de Tchaikovsky.
Pode ter sido problemas com piano? Pouco provável, pois em um de seus três bis (no caso, o “Noturno Op. 27, No. 2” de Chopin) Lang Lang conseguiu obter sonoridades suaves e delicadas. Sobre sua interpretação, vale notar as enormes diferenças desta mesma obra por ele gravado no álbum sob a regência de Barenboim. Enfim, são segredos de estúdios e mistérios da vida que só o passar tempo mostrará qual será o Lang Lang que Lang Lang escolherá para si.
Na segunda parte do concerto a VFO pôde, enfim, mostrar as suas principais qualidades. A garra e o talento dos jovens músicos foram decisivos para que a execução da “Sinfonia No. 7, Opus 70” de Antonín Dvorák fosse, enfim, o ponto alto da noite. Com os naipes dos violinos distribuídos à esquerda e à direita do maestro (em geral, eles ficam à esquerda) o grupo soube explorar melhor a espacialidade inerente à partitura do compositor tcheco.
Com boa afinação, um naipe de cordas conciso e sopros bem balanceados ao conjunto, as eventuais imprecisões de ataque e conclusão de fraseados nem de longe foram um fato comprometedor ante a tamanha energia contida em cada músico. Aí, enfim, a música em sua faceta mais simples, e por isto genuína, pode ser feita em um ambiente um tanto alheio ao que se passava no palco.
[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]
01 dezembro 2005
Condor manauara em terras paulistanas
Uma ópera de um compositor brasileiro, cantada em italiano cuja história é ambientada no Usbequistão do século XVII. Esta é visão geral do espetáculo que estreou sexta-feira passada no Theatro Municipal de São Paulo: a ópera “Condor”, do compositor campineiro Antônio Carlos Gomes.
Com a Orquestra Sinfônica Municipal (OMS) sob a regência do maestro Luiz Fernando Malheiro, esta temporada paulistana do “Condor” é, na verdade, a oportunidade do público paulista assistir a um espetáculo que foi apresentado em 2002 no Teatro Amazonas (Manaus), no qual Malheiro é diretor artístico de seu festival de ópera.
Com um cenário minimalista que destoou do figurino utilizado para caracterização do Usbequistão maometano (o condor do título não se refere ao pássaro andino, mas sim a um guerreiro) a produção é uma excelente oportunidade de se conhecer uma das mais interessantes partituras de Gomes, na qual é presente a influência de diversas escritas operísticas então em voga no final do século XIX.
Apesar de alguns pesares com o elenco vocal e com a própria OMS, nada diminui o interesse deste espetáculo que leva ao palco esta singular obra do mais importante compositor operístico brasileiro.
[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]