24 dezembro 2007

Les musiciens / Os músicos

O que é ser músico? Como é a vida de um músico? Como é o cotidiano de um músico? Qual é essência do músico?

Não, caro leitor, não ousarei sequer a tentar a responder estas perguntas. Não só por pura incompetência, mas por, particularmente, não ver o menor valor em qualquer resposta que se proponha objetiva.

E subjetivamente?

Bem, aí é outra história. Também nesse caso me falta competência, mas sobra vontade de tecer algumas linhas conscientemente irresponsáveis. Mas quaisquer palavras que por ventura eu venha a discorrer sobre "os músicos" serão pequenas frente à grandeza com a qual o ilustrador Jean-Jacques Sempé o faz por meio de imagens em sua série "Les musiciens", comercialmente disponíveis e forma de livro ou, graficamente muito melhor, em uma caixa de cartões-postais que você não irá querer enviar a ninguém, simplesmente porque eles são muito bonitos.

Sempé é mais conhecido no Brasil pelas ilustrações que fez para a série "Le Petit Nicolas", em parceria com René Goscinny (os mesmo das aventuras de Asterix). Mas recentemente o público brasuca tem se deparado com suas elegantes aquarelas na capa de duas edições da Revista Piauí.

Quando se debruça sobre os profissionais e amadores da arte dos sons (ainda continua valendo esta definição de música?), Sempé nos proporciona um olhar que vai muito além da mera caricatura ou do simples retratismo. Por meio suas pinçeladas o ilustrador confere diversas dimensões e facetas não apenas ao músico, mas ao seu cotidiano, às suas desventuras, às suas delícias, ao instante único e irreversível que é cada apresentação.

As perguntas acima continuarão sem resposta (ainda bem!). Mas veja só o que só Sempé viu.

* O agrupamento temático abaixo é uma livre interpretação de quem vos escreve (o Sempé não tem nada a ver com isso). Clique em cima da imagem para ampliá-la.


Uma vida em solitude


Música à janela


Travessia


A sólida pequenez no grande vazio





O retrato do indivíduo enquanto músico


19 dezembro 2007

Muito além do Jingle Bells

Descubra o surpreendente tesouro musical baseado na temática natalina.

Chegamos ao final de 2005, e tal como acontece a cada ano, as cidades com seus códigos mostram sinais evidentes de que há algo diferente no ar: luzes enfeitam árvores e avenidas, casas ganham uma decoração especial e cresce nas crianças uma gostosa sensação de ansiedade. Bem, por outro lado, há também filas para os estacionamentos dos shoppings, lojas caoticamente lotadas e uma interminável lista de preparativos que nem sempre está de acordo com a conta bancária (mas isto já é uma outra história...).

É Natal, e Natal é sinônimo de Papai-Noel, pinheirinho enfeitado e – como toda festa que se preze – música: “Noite feliz”, “Batem os sinos”, “Adeste fidelis” e mesmo o jingle publicitário de uma empresa de aviação estão sempre entre os grandes hits do Natal brasileiro.

Porém, por mais que os meios de comunicação áudios-visuais insistam neste pequeno repertório, é bom saber que a música natalina vai muito além do Jingle Bells e das famigeradas melodias tocadas na harpa, tão utilizadas como música de fundo pelos grandes lojistas nesta época do ano.

Desde que o Natal foi “inventado”, o repertório musical a ele dedicado pode ser visto como um pequeno panorama do desenvolvimento dos gêneros musicais praticados no ocidente. Importantes compositores clássicos escrevam obras para ocasiões natalinas, e mesmo no século XX, com o início da era da música popular para consumo em massa, muitas bandas e pop stars não resistiram ao apelo do bom velhinho.

Aperte o cinto de seu trenó e embarque nesta viagem musical.

O natal e suas origens

Para entender o que ocorreu com o repertório natalino através dos séculos é importante saber como esta festa tipicamente cristã surpreendentemente começou.

O Natal só foi incorporado ao calendário da Igreja durante o papado de Júlio I (entre os anos 337-352), ocasião em que se decidiu programar para o dia 25 de dezembro a comemoração do nascimento de Jesus Cristo.

Na verdade, esta data corresponde exatamente com o solstício de inverno romano, dia estabelecido no ano 274 pelo imperador romano Aureliano como a data para a celebração do Natalis Solis (“nascimento do sol” em latim), isto é, o nascimento de Mitras, o deus do sol.

Apesar de no século IV em boa parte do Europa a consolidação do cristianismo ser uma realidade, esta festividade “pagã” continuou a ser praticada pela população sem que o poder já estatal da Igreja pudesse efetivamente fazer algo para detê-lo. Assim, a união entre esta festividade romana com o aniversário de Cristo resultou nesta festa sincrética que viria a se tornar a principal comemoração da cristandade.

Os primeiros exemplos musicais para esta nova festividade cristã, destinaram-se para a sua respectiva liturgia (isto é, a cerimônia religiosa realizada dentro do templo). Anos mais tarde esta cerimônia ficaria conhecida como “Missa do Galo”, uma referência ao pássaro que anuncia o nascimento do novo dia e a concretização da profecia sobre a vinda do Messias.

Nos primórdios da música natalina, o estilo empregado era muito próximo ao do “canto gregoriano”, que é ainda a forma de cantar característica dos monges beneditinos da atualidade.

Entretanto, o aspecto sóbrio deste estilo musical aliado a pouca compreensibilidade do texto cantado em latim fez com que um outro repertório, cantado nas festividades fora do templo, fosse gradualmente se formando na população que circundavam estes templos, dando o passo decisivo para o desenvolvimento da tradição musical natalina.

A celebração fora do templo

Na medida em que, na Idade Média, era vedado o uso de material não litúrgico dentro do templo, foi uma conseqüência natural a criação de um repertório natalino mais alegre destinado às celebrações feitas ao ar livre ou em locais não sacros. Ao mesmo tempo, esta temática tornou-se mais acessível à população, tendo em vista que as canções eram também cantadas em vernáculo (isto é, o idioma de fato falado em uma dada localidade) e não só em latim.

Na França, desde o século IX, há registros de canções populares criadas para o Natal, conhecidas como noëls. Tal como tudo ao que se refere às práticas musicais antigas, ainda é incerta a ocasião em que esta música era praticada. Os estudos musicológicos indicam várias direções: essas canções podem tanto ter sido usadas em procissões como em grandes cerimoniais e banquetes feudais. É também muito provável que estas canções eram utilizadas domesticamente pela população e há mesmo indícios que algumas dessas canções tenham sido cantadas dentro do templo, porém em ocasiões não oficiais.

A tradição das noëls se arraigou de tal forma na cultura musical francesa que ainda no século XVIII era praticado um gênero derivado, as noëls pour orgue, isto é, peças sem parte vocal para serem tocadas apenas ao órgão de tubos, muito comuns nas igrejas da época. Nas noëls pour orgue o organista escolhia algum tema natalino famoso, e a partir de sua melodia, tecia uma série de improvisações que faziam sucesso junto ao público. Algumas destas improvisações foram transcritas em partitura e assim puderam chegar ao nosso conhecimento.

Muitas das primeiras melodias natalinas foram criadas para a música incidental presente nas representações teatrais medievais sobre passagens do Novo e do Antigo Testamento. Sabe-se que nestes espetáculos, hoje em dia designados como Dramas Medievais, fazia-se uso abundante de música para ilustrar temas caros à cristandade, tais como a Anunciação, a viagem dos Três Reis Magos e, é claro, o próprio nascimento de Cristo.

Assim, já em finais da Idade Média, a música natalina de cunho não litúrgico já estava amplamente difundida por toda Europa. Porém, é da Inglaterra que vem o mais antigo exemplo de tradição natalina ainda presente nos dias de hoje: são canções conhecidas como carols.

Natal globalizado

“Jingle Bells” (ou “Batem os sinos”), “We wish you a Merry Christmas”, “Holy Night” (“Noite Feliz”), “White Christmas” (“Natal Branco”) e uma infinidade de outras canções mundialmente conhecidas têm como raiz a tradição das carols inglesas.

Originada de uma forma musical medieval francesa – a carole – em seus primórdios no século XV a carol era um gênero de canção sacra utilizada para diversas festividades cristãs, e só posteriormente tornou-se sinônimo de música natalina. Esta manifestação cultural britânica foi herdada pelos norte-americanos que, a partir da consolidação de seu “império”, difundiu as carols para os quatro cantos do mundo, tornando-a um gênero musical globalizado (se você ainda não se localizou, sabe aquela famosa cena de um coral cantando debaixo da neve que você certamente já viu em algum filme americano? Pois então, eles estão cantando uma carol).

Em outras terras as carols ganharam versões nos idiomas locais (tal como aconteceu aqui no Brasil), e sua simplicidade musical – construída a partir de melodias fáceis de memorizar – revelou-se propícia para incontáveis versões em todos os gêneros e ritmos musicais imagináveis. De versões com instrumentos africanos às batidas do rock este tipo de música natalina ainda se mostra de uma versatilidade a toda prova, usada e abusada nos jingles publicitários que pipocam no rádio e na TV nesta época do ano.

No que tange ao legítimo rock’n roll, valer lembrar que a imortal banda de Liverpool gravou nada menos do que sete “Beatles’ Christmas Album”, o que não deixar de ser mais uma prova de que a música natalina há muito tempo se emancipou da temática religiosa para ganhar contornos de feriado laico (e, dependendo do ponto vista, retornando às suas raízes pagãs...).

Música e espiritualidade

Porém, antes de se mercantilizar no século XX, o repertório musical natalino foi um poderoso meio de expressão da devoção do cristão ao nascimento de seu Salvador. Se hoje em dia a música natalina está diretamente associada à imagem do Papai-Noel, durante o Renascimento e o Barroco ela pode ser associada às inúmeras representações da “Madonna” (isto é, a Virgem Maria com o Menino Jesus no colo) que nos foram herdadas dos períodos em questão.

Durante o Renascimento o motete (forma coral por vezes acompanhada de instrumentos musicais) foi o principal meio de realização do repertório natalino. Alguns dos mais belos exemplos foram escritos pelo compositor italiano Giovanni Gabrieli (1555-1612) que compôs para a Catedral de São Marcos de Veneza (então uma das mais ricas do ocidente) magníficos motetos natalinos como “O magnum mysterium” e “Salvator noster”.

Aluno de Gabrieli, o alemão Heinrich Schütz (1585-1672) escreveu em forma de oratório (uma espécie de ópera, porém sem encenação) a obra “Historia der Geburt Jesu Christi” (ou “História do Nascimento de Jesus Cristo”) dando um passo decisivo para a consolidação da temática natalina no repertório musical luterano.

Aliás, é da tradição luterana que advém o exemplo de música natalina clássica mais tocada na atualidade, isto é, o “Weinachts-Oratorium” (ou “Oratório de Natal”) de Johann Sebastian Bach (1735-1782).

Apesar de ser muito comum a apresentação integral deste oratório em uma única seção, ele foi composto como parte de uma celebração religiosa que se desenvolvia ao longo de vários dias. Divido em seis cantatas, as três primeiras eram destinadas para serem apresentadas durante os três dias do Festival de Natal. Uma outra se destinava para o dia de ano-novo, outra para o primeiro domingo do novo ano e uma última para a o dia da Epifania, isto é, o dia do batismo de Cristo.

Seja em forma de concerto ou integrado a um cotidiano religioso, a beleza do oratório de Bach transcende os dogmas religiosos e freqüentemente é apresentado em templos não luteranos, por fim levando a cabo uma das principais mensagens do Natal que é a integração entre as pessoas.

Assim, neste Natal, independentemente de qual fé cristã se pertença – e mesmo independentemente de fé no cristianismo em si – desperte-se para a beleza e riqueza do fantástico mundo sonoro que se criou em torno da temática natalina. Desligue a TV e seus tediosos programas natalinos (que até o último instante tentarão vender mais alguma coisa para você) e ponha um CD especial ou mesmo ligue em uma das diversas rádios ditas “clássicas” existentes no Brasil para dar uma dimensão muito mais bela a esta época tão especial. Abra seus ouvidos, para então abrir seu coração. E feliz Natal!

Alguns CDs e Rádios on-line recomendados

- http://www.tvcultura.com.br/radiofm/
- http://www.radiomec.com.br/fm/

- “Gregorian Chants, Christmas Chants” canto gregoriano por diversos coros monásticos europeus (Milan, 35668).
- “Chantez Noël” pelo Atlanta Singers regido David Brensinger (ACA Digital, CM 20047)
- “Christmas Carols & Motets” pelo The Tallis Scholars regido Peter Phillips (Gimell, CDGIM 010)
- Heinrich Schütz, “The Christmas Story”, pelo The King’s Consort regido por Robert King (Hyperion, CDA 66398). Este álbum contém também motetes natalinos de Giovanni Gabrieli.
- Johann Sebastian Bach, “Weinachts-Oratorium” pela Academy for Ancient Music Berlin regida por René Jacobs (Harmonia Mundi, HMC 901630/1)

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

17 dezembro 2007

Natal nos trópicos

Apesar de todo aspecto invernal associado à imagem mundial do Natal – neve, pinheirinhos, trenós e toda uma sorte de objetos que ganham conotação alienígena aqui na região dos trópicos austrais – a tradição natalina encontrou no Brasil um terreno fértil em manifestações musicais, associadas aos mais diferentes contextos culturais.

As primeiras manifestações musicais natalinas ocorridas no Brasil datam entre os séculos XVI e XVI, devido à colonização portuguesa e ao trabalho evangelizador da Companhia de Jesus. Os primeiros exemplos de música natalina tiveram como base hábitos e tradições presentes na cultura européia. Isto significa que, com muita certeza, podemos concluir que o primeiro canto natalino entoado por aqui foi na forma de Canto Gregoriano.

Entretanto, os “autos” organizados pelos jesuítas (peças teatrais sacras apresentadas ao ar livre) tinham por costume misturar elementos europeus com indígenas, preservando a linguagem musical do Velho Mundo em textos cantados num dado idioma local. É possivelmente deste encontro que provém os primeiros exemplos musicais natalinos criados em terra brasilis.

Com a consolidação do cristianismo no Brasil, muitas das culturas regionalizadas - caracterizadas pelo sincretismo entre tradições africanas, indígenas e cristãs - incorporaram temas ligados ao nascimento de Jesus Cristo. A folia-de-reis é, certamente, a festa natalina "tipicamente brasileira" mais conhecida de nossa tradição folclórica, consistindo (grosso modo) em grupos de foliões que na época do Natal percorrem as ruas das cidadelas, vila e bairros. Fantasiados do Reis Magos e acompanhados por instrumentos musicais, os foliões vão cantando de porta em porta, diante de um presépio ou outra imagem sacra.

Apesar do forte laço com nossa terrinha, é bem provável que um tipo semelhante de festa natalina já tenha sido praticado na Europa (mais especificamente Portugal), sendo a festa brasileira uma perpetuação desta tradição que, por fim, acabou tomando rumos e características próprias.

Mesmo na música clássica houve tentativas de se abrasileirar o Natal com elementos regionais, tal como o álbum infantil “Aconteceu no Natal”. Composto por Hekel Tavares (1896-1969) em colaboração com o letrista e dramaturgo Joraci Camargo (1898-973), trata-se de uma obra singular na qual surge a curiosa figura de um Papai-Noel negro, já totalmente livre das influências nórdicas (ao menos na cor de sua pele).

Por vezes, o músico brasileiro se sentiu tão à vontade com o Natal que esta temática é freqüentemente relembrada nos bailes de carnaval pela marchinha “Boas festas”, de Assis Valente (1911-1958) que, ao contrário da regra, fala de um Natal dos miseráveis e sem presentes, no qual Papai-Noel “com certeza já morreu, ou então felicidade é brinquedo que não tem”.

Hoje em dia, em uma sociedade de consumo musical amplamente globalizada, muitas são as formas do brasileiro cantarolar o Natal. Desde algum hit internacional, até uma canção natalina interpretada por alguma apresentadora de TV, tudo pode fazer parte desta festa que sempre pendeu entre o sacro e secular.

Entretanto, deste imenso caldeirão, é notável a força com a qual o movimento de canto coral se revela nos abafados ares de dezembro. O canto coral natalino está fortemente arraigado na tradição musical brasileira (pode não aparecer na mídia, mas está), e diversos grupos amadores e profissionais em todo país dedicam parte considerável de seus ensaios a este repertório.

Desde o famigerado "coral da firma" até os poucos grupos profissionais em atividade no país, todos - em maior ou menor medida - dispendem boas horas de ensaios em músicas sobre o nascimento de Jesus.

Se nas lojas e shoppings centers o Natal aquece as coisas, na música ele ainda mostra que, apesar dos pesares, o Natal é ainda chama e labareda para muita lareira. Mesmo nos calores dos trópicos.


14 dezembro 2007

A aventura por novos sons, do passado e do presente

Com concerto que uniu a "música nova" de duas épocas diferentes, a Osesp encerra sua temporada 2007.

Foi uma ocasião rara, na qual, num mesmo concerto, o moderno e o tradicional foram postos lado a lado. Não como elementos antagônicos, mas sim como diferentes manifestações da vontade artística de propor coisas novas.

Em seu concerto de encerramento desta temporada a Osesp optou por reunir a "música nova" de diferentes época, estreando a obra "Crase", do brasileiro Flo Menezes, e levando mais uma vez ao palco a aclamada "Sinfonia No. 9", de Ludwig van Beethoven (cuja aceitação junto ao público brasileiro já foi alvo de uma matéria anterior deste blog).

Encomendada pela Osesp, com "Crase" a orquestra entra pela primeira vez no repertório nacional estilisticamente moderno, que de uma maneira geral, constitui um terreno sobre o qual o grupo ainda tateia (apesar de já proporcionado ótimos momentos com grandes "clássicos" do gênero, como Berio, Messiaen e Ligeti).

Na peça, Flo Menezes continua a desenvolver a poética sob a qual há tempos se debruça, trabalhando de forma intensa a dimensão espacial do som (dispondo músicos e alto-falantes em torno da sala de espetáculos) e a fusão entre sons acústicos e eletroacústico. O resultado foi uma obra trimbricamente bela, fluída, cuja a fruição só pode ser plena desde que imbuído da vontade de se deparar com o novo (como diria John Cage, num trocadinho intraduzível, "happy new ears!").

Em um contexto como este - precendendo uma obra com um apelo tão popular, tal como é o caso da "Nona" - um certo estranhamento por parte do público é mais do que esperado e natural. Mas não foi surpreendente constatar nos cafés, banheiros e lojinhas da Sala São Paulo a boa recepção que a música nova sempre pode ter, desde que corretamente e profissionalmente interpretada.

Neste quesito, palmas à regência de Victor Hugo Toro, regente assistente da Osesp, responsável por trazer à luz mais uma nova música nova.

Quando na segunda parte o titular John Neschling subiu ao palco para conduzir a "Nona", ocorreu aquilo que se espera de uma obra desta magnitude, interpretada por uma orquestra competente (apesar de alguns probleminhas aqui e acolá). Senso comum, a "Nona" é uma obra que, por mais que se ouça, sempre há algo novo a descobrir, desde que se queria ouví-la como música nova. As pessoas se emocionam. As pessoas choram. E assim as coisas caminham.

Happy new year and happy new ears. Every day.

10 dezembro 2007

O espírito em éter: Stockhausen in memoriam

Como muitos já sabem, semana passada morreu o compositor alemão Karlheinz Stockhausen (1928-2007). Os obiturários pulularam na imprensa mundo afora. Mas neste post não quero fazer nada jornalístico ou informativo, mas sim uma singela homenagem, de alguém que, com muito gosto, terá para com o mestre uma dívida que nunca será paga, isto é, o amor pela música moderna e pela ousadia musical.

Até cheguei a esboçar algumas palavras de como sua obra, figura e presença foram e são importantes para mim. Mas, no final das contas, o texto que o compositor Flo Menezes publicou no site Trópico faz muito mais do que eu poderia ter feito. Clique aqui para ler.

Abaixo, uma despedida bem-humorada em homenagem ao mestre.

"Quando foi a primeira vez que lhe avisaram que seu Mozart soa como Stockhausen?"


Álfred Shnittke: o compositor de todas as músicas

Figura pouco conhecida no Brasil, o compositor russo Álfred Shnittke ganha no país sua segunda biografia mundial.

Como toda tradição artística, a música clássica do século XX construiu um cânone musical próprio, isto é, obras tidas como “primas”, representativas das práticas e do pensamento de então. É em torno deste cânone que surge a figura do compositor, e quando falamos deste verdadeiro panteão na segunda metade do século passado, nomes como Olivier Messiaen, Luciano Berio, Luigi Nono, Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez são presenças mais que obrigatórias. Entretanto, este panteão está sempre de portas abertas, e nos últimos anos tem sido notável o crescimento da figura do compositor russo Álfred Shnittke (1934-1998).

Nascido e criado em meio ao frenesi dos anos de chumbo da ditadura stalinista, o papel de Shnittke é ainda ambíguo para historiografia da música contemporânea, na medida em que ela pende entre aspectos que escapam dos valores que celebraram outros compositores de sua geração. É neste sentido que o livro “Shnittke: música para todos os tempos”, de Marco Aurélio Scarpinella Bueno, mostra-se como recurso importante para uma melhor compreensão do compositor.

A ambigüidade da figura histórica de Shnittke reside principalmente em dois aspectos, quais sejam, o social e o estético.

A respeito de seu aspecto social, é comum entender sua obra enquanto símbolo de resistência à opressão soviética, tendo em vista que ela foi realizada em meio a um ambiente político extremamente hostil. Porém, ao contrário do compatriota Dmítri Shostakóvitch (1906-1975) – cuja obra é também símbolo de resistência artística, porém sem nunca refutar o valor dos ideais socialistas – Shnittke sequer se preocupou em manter as aparências, tendo inclusive relevado sua conversão ao cristianismo ainda sob o poder da censura estatal. Se hoje em dia algo assim pode até ser tomado como heróico, vale a pena notar que até meados da década de 1970 era muito forte a orientação esquerdista (e uma natural simpatia pela URSS) da tendência da intelligentsia ocidental.

Pelo outro lado, Shnittke se singularizou frente aos seus contemporâneos ao colocar o poliestilismo como cerne da linguagem musical contemporânea.

Quando o assunto é música na contemporaneidade é inevitável que se pergunte “de qual música estamos falando?”, pois, afinal, é notória a fragmentação ocorrida nas práticas musicais do ocidente a partir do início do século XX. Tal fragmentação é responsável não apenas pelos “ismos” que passam a povoar o universo clássico – tais como impressionismo, dodecafonismo, serialismos, etc. – mas também para a própria consolidação das atividades designadas como música popular.

Neste cenário, onde a heterogeneidade estilística impera soberana, a idéia de unidade estilística só faz sentido quando se fala de um compositor em específico. Não raro a questão torna-se pertinente apenas quando se trata de uma música em específico. Na verdadeira Babel musical que vivemos não há, necessariamente, um grande idioma dominador, mas sim dialetos os quais alguns parecem fazer mais “sucesso” que os outros.

Eis aí o principal diferencial da Shnittke, que com um “estômago antropofágico” muito peculiar, tudo absorve e utiliza como elemento de uma linguagem musical muito ampla, cujas fronteiras são demarcadas por questões de foro íntimo do compositor. Nestes termos, são as memórias musicais familiares, as preferências, os gostos e as lições tomadas na juventude os fatores determinantes para sua poética, e não a orientação (e por que não policiamento) de uma determinada escola. Em Shnittke o estilo musical não é fim, mas sim um meio para realização da música.

Muitos caracterizaram sua música como “pós-modernista” (nem sempre de forma elogiosa). Mas a verdade é que, se na aparência, a música de Shnittke pode soar pós-modernista, em sua essência ela se distância desta corrente, na medida em que em sua obra não é uma refutação ou alternativa do vanguardismo musical, mas sim um tipo raro e valioso de ousadia artística (característica bastante rara nos pós-modernistas).

É no esclarecimento destas e de outras questões que a biografia prepara por Scarpinella Bueno mostra-se enquanto ferramenta importante para uma melhor compreensão do compositor. Médico de formação, o autor empreendeu este trabalho a partir da fascinação sentida pela a obra de Shnittke, curiosamente iniciada a partir de uma percepção nada boa de sua música.

Exemplar na coleta de dados e nas informações oferecidas, o livro tropeça apenas em pequenos cacoetes, ao insistir, por exemplo, na palavra “criar” como sinônimo de estréia de uma obra. Em muitos lugares o ritmo de leitura poderia ter sido mais fluído se o autor tivesse optado por notas de roda-pé (por exemplo, quando mistura no corpo do texto suas preferências discográficas com dados biográficos do compositor). Aliás, as notas de roda-pé que deveriam ter sido utilizadas para referencializar uma quantidade significativa de citações. Uma rápida revisão do vocabulário técnico-musical mostra-se necessária.

Entretanto, estes problemas em nada diminuem a pertinência do livro, que se mostra como um acessível meio de se iniciar pelos caminhos e labirintos babilônicos que a obra Shnittke traz consigo, em quem sabe, por outros itinerários da música moderna.

Serviço:
“Shnittke: música para todos os tempos”, de Marco Aurélio Scarpinella Bueno
Algol Editora, 396 págs., R$ 57

22 novembro 2007

Santa Cecília, rogai por nós, pecadores...

Afinal, apesar de não parecer, músico também é gente e precisa de proteção.

Dia 22 de novembro é dia de Santa Cecília, padroeira dos músicos. De tabela, nós, os músicos (católicos ou não, cristãos ou não) ganhamos um dia só pra nós. Parabéns aos músicos! Mas não se trata de uma celebração exclusiva, e quem gosta muito de música (melhor, a ama) pode também tomar para si esta data tão especial.

Mas por que, afinal, Santa Cecília se tornou a padroeira dos músicos?

Curiosamente, não há nenhuma razão muito forte para isto. Tida pela Igreja Católica como santa, virgem e mártir, há mesmo dúvidas de sua real existência, já que suas principais hagiografias carecem de base documental suficiente para fazer de sua biografia um fato verdadeiramente histórico. Em todo caso, vale a pena conhecer um pouco da santa que roga por nós, pecadores, ops, quero dizer, músicos e afins.

A hagiografia de Cecília conta que ela viveu na Roma da Antigüidade, sob o papado de Urbano I (175-230 d.C.), época na qual o Império Romano já vivia os sinais de sua decadência e o cristianismo ganhava cada vez mais adeptos (apesar da perseguição que sofriram).

Conta-se que Cecília era filha de uma rica família romana, e foi prometida por seu pai em casamento a um certo Valeriano. Durante as bodas, enquanto os instrumentistas divertiam os convidados com música "pagã" (na verdade, a música cerimonial da religião politeísta romana), a jovem santa entoava cantos cristãos. "Senhor, guardai sem mancha meu corpo e minha alma, para que não seja confundida", é o texto de um dos cânticos atribuídos a Cecília. Esta é a única passagem musical presente em sua história.

Durante a noite de núpcias, Cecília explica ao seu esposo sua condição de cristã e sua vocação para a castidade. Impressionado pelas palavras da santa, Valeriano pede uma prova da existência do Deus único. Cecília diz que apenas após sua conversão ao cristianismo é que ele poderia ter esta prova. Valeriano se batiza, e ao retornar para Cecília a encontra ao lado de um anjo, que coloca sobre a cabeça de cada um deles uma grinalda de rosas e lírios, consolidando a união casta e cristã do jovem casal.

Valeriano convence o irmão, Tibúrcio, a se batizar, e juntos se dedicam à difusão do cristianismo. Perseguidos, os irmão são mortos por ordem de Almáquio, "prefeito" de Roma. O mesmo destino é reservado para Cecília, que em seu martírio sobreviveu três dias com a cabeça semi-decapitada por soldados romanos (diz-se que a escultura na fotografia acima, de Carlo Maderno, foi realizada depois do artista ver o corpo incorrupto da santa. Detalhe, a escultura foi concluída em 1599!)

Santa de grande popularidade durante a Antigüidade e na alta Idade Média, a íntima relação de Santa Cecília com a música só veio a se consolidar no século XV, quando a santa passa a ser oficialmente considerada a padroeira dos músicos.

A cena das bodas pagãs de Cecília pode parecer insuficiente para que a ela seja atribuída a proteção dos músicos. Mas seu simbolismo é, em si, muito forte, pois ilustra bem o cerne da questão que caracterizará a música nos primórdios do cristianismo: o canto devocional (puro e simples) versus a lascívia da música instrumental dos cultos "pagãos".

Independetemente de fé, uma proteção a mais nunca é demais. Assim, viva Santa Cecília! Ou melhor, viva os músicos, e que Deus, ou D'us, ou, va lá, os deuses e seus enviados nos protejam das forças do mal que sempre nos circudam, seja em forma de desafinação, seja em forma da crua e burra burocracia e mediocridade que insistem em nos sufocar. Vade retro!

08 novembro 2007

Efeito Meneses

A arte do infinito no novo CD do violoncelista brasileiro

Já faz muitos anos – algo próximo de duas décadas – que o mercado fonográfico clássico mundial passa por uma crise que, mais recentemente, está mudando a forma de produção e consumo de música clássica. Neste novo cenário os álbuns produzidos por grandes selos, gravados por super-orquestras, conduzidas por super-maestros e amparados por orçamentos polpudos estão praticamente em extinção.

Em seu lugar surgem os pequenos selos, em produções independentes com orçamentos bem mais modestos, fato que não necessariamente acarreta na diminuição da qualidade artística. A grande música orquestral tende a conceder espaço à música de câmara, o que possibilita o registro diferenciado da performance de importantes solistas da contemporaneidade, que tem no repertório solista ou para conjunto a oportunidade de desenvolver aspectos únicos de sua arte. Mesmo as grandes gravadoras têm adotado este conceito antes tão próprio dos selos independentes.

Mas para que esta receita dê certo é fundamental a presença de um grande músico, que goze de ampla popularidade e carisma junto ao público. Neste sentido, é muito animador o fato de dois músicos brasileiros constarem entre os artistas mais procurados nas gôndolas de CDs clássicos das lojas nacionais. Tanto o pianista mineiro Nelson Freire, como o violoncelista pernambucano Antonio Meneses são certeza de boas vendas em um mercado que, além de pequeno, é caracterizado pela super-abundância de títulos importados.

É esta certeza que faz com que o Selo Clássicos, em parceria com o gravadora inglesa Avie Records, lance seu sétimo álbum, o terceiro com Meneses como estrela principal. Em “Mendelssohn - Música para Violoncelo e Piano” o violoncelista retoma a parceria com o pianista suíço Gérard Wyss, com quem já havia gravado um álbum dedicado a obra de Robert Schumann (anteriormente o músico havia lançado um CD duplo solo com as “Suítes” para violoncelo de J. S. Bach).

Se a arte de Meneses – que aos cinqüenta anos firma-se como um dos mais importantes violoncelistas do mundo – em si vale a compra do álbum, a música do compositor alemão Felix Mendelssohn-Bartholdy (1809-1847) não deixa por menos, revelando em sua música de câmara uma faceta muito diferente e instigante daquela tradicionalmente associada à sua música sinfônica, pela qual ele é mais conhecido do grande público. Autor de obras de referência do repertório orquestral – tais como a “Sinfonia Italiana” e a música incidental para a peça “Sonhos de uma noite de verão”, de William Shakespeare – em sua música de câmara Mendelssohn desenvolve de forma intensa uma natural vocação para o lirismo.

Autor de diversos lieder (“canções”, na tradição do Romantismo alemão), Mendelssohn destaca-se também pelas composições de diversas “canções sem palavras”, nas quais a voz humana é sublimada pela imaterialidade semântica da música instrumental. O compositor compôs apenas uma “canção sem palavra” para violoncelo e piano (seu Opus 109, presente no álbum), mas não seria exagerado ouvir o restante de sua produção para esta formação como um duo no qual o violoncelista é metamorfoseado em um barítono que traz em sua voz todo um universo de inflexões sentimentais.

É desta forma, como um grande ciclo de lieder sem palavras, que suas “Sonatas” No. 1 e No. 2 para violoncelo e piano podem ser apreciadas pela arte de Meneses, cujo o virtuosismo nas nuances dinâmicas e nas matizes tímbricas fazem da escuta repetida deste álbum uma necessidade: é impossível apreender Meneses de uma só vez.

A idéia do violoncelo enquanto voz solista é uma característica tão marcante neste repertório que álbum traz ainda arranjos de duas “Canções sem palavras” (Op.19a, Nos. 1 e 6), originalmente escritas para piano solo.

Certa vez o escritor e poeta alemão E.T.A. Hoffmann (1776-1822) escreveu que “a música instrumental é a única música verdadeiramente Romântica, porque o infinito é seu objeto”, e ouvir Meneses enveredando pelas espessuras das partituras de Mendelssohn é um bom meio de entender o que o infinito em música pode significar.

Serviço:
“Mendelssohn - Música para Violoncelo e Piano”
Antonio Meneses (violoncelo) e Gérard Wyss (piano)
Selo Clássicos, R$ 37


Apendix: Melhor que Meneses gravado, só ao vivo.

No início desta semana a Sociedade de Cultura Artística encerrou sua temporada 2007 com duas apresentações da Orquestra Filarmônica de Varsóvia que, sob a regência de Antoni Wit, teve o Antonio Meneses como principal atração, ao programar para suas récitas o “Concerto para Violoncelo” do compositor inglês Edward Elgar (1857-1934).

Peça pouco conhecida do grande público, o “Concerto” de Elgar mostra-se um verdadeiro tour-de-force para o violoncelista, não apenas por sua complexidade técnica, mas também pela heterogeneidade de sua escritura. Há décadas presente no repertório de Meneses, na apresentação da última segunda-feira o músico mostrou porque sua interpretação é referência, mostrando-se à vontade com a obra, deleitando a audiência com sua maestria. E o que pode ser melhor que Meneses senão o próprio ao vivo?

No ano da morte do violoncelista russo Mstisláv Rostropóvtch (1927-2007), não é exagero afirmar que pelo famoso palco paulistano passaram os principais violoncelistas da atualidade, na medida em que, além de Meneses, o público foi agraciado por apresentações memoráveis de Yo-Yo Ma. A temporada termina e fica-se na expectativa de que outros momentos memoráveis estejam presentes no novo ano que se aproxima.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

01 novembro 2007

Bobagem faraônica

Cheia de pretensão, “Aida Monumental Opera” é um espetáculo tedioso e de má qualidade técnica.

Estreou no fim de semana passado, em São Paulo, a temporada brasileira do espetáculo “Aida Monumental Opera”, que ficará em cartaz até 4 de novembro, antes de seguir em turnê para Montevidéu e Buenos Aires. Trata-se de uma montagem em moldes “contemporâneos” (tal como alardeado pelos alto-falantes antes do início da apresentação) da célebre ópera “Aida”, de Giuseppe Verdi (1813-1901).

“Aida Monumental Opera” é um dos empreendimentos do produtor Franz Abraham, cuja empresa Art Concerts notabilizou-se mundialmente pela montagem de espetáculos com forte apelo popular baseado em peças célebres do repertório clássico, tal como a cantata “Carmina Burana”, de Carl Orff, e a ópera “Carmen”, de Georges Bizet. Na teoria, a proposta da “Monumental Opera” é uma renovação da linguagem cênica, apostando no gigantismo do cenário, no uso maciço de novas tecnologias e utilizando como espaço de apresentação não as tradicionais casas de óperas, mas sim ginásios e casas de show.

O mundo da música clássica é notoriamente associado à tradição, consolidada sobre hábitos e valores antiqüíssimos, profundamente arraigados no imaginário e na expectativa do público. Não raro a força desta tradição transforma a música em um objeto de devoção. Desta forma suas apresentações e performances não raro ganham ares de ritual sagrado, sólido e intocável. Mantida a tradição, corre-se o risco de congelar a linguagem e fazer da criatividade elemento indesejável. Neste sentido, novas propostas serão sempre bem-vindas, como importante elemento de renovação e mesmo de perpetuação da tradição.

Entretanto, “novidade” é a última coisa que “Aida Monumental Opera” proporciona. Dirigida por Joseph Rochlitz, o espetáculo é conduzido de forma tediosa, ressaltada pela má qualidade técnica em diversos aspectos.

Para começar, não se deixe iludir pela palavra “monumental”, nem pelas famigeradas fotos de pirâmides dos anúncios do espetáculo, pois quando se entra no local depara-se com um palco de dimensões normais, que inclusive parece bem diminuto frente à área total do Credicard Hall. Comparado o que as casas de ópera tradicionais há décadas já fazem, o cenário desta “super-produção” é mesmo pobre, baseado numa estrutura simples de escadas e duas portas centrais (uma ao alto e no nível do palco), onde observa-se a falta de capricho na fixação dos pisos e no amassado dos tecidos onde serão projetadas as imagens da cenografia virtual. A propósito, vale a pena ressaltar que o uso de “cenário virtual” (cujos elementos cênicos concretamente não existem, mas são projetados em telas dispostas no palco) não é novidade, assim como toda a proposta visual de Pier’Alli, que abusa dos clichês de cultura egípcia antiga. Pirâmides, hieróglifos e outros elementos tornam-se kitsch nos grafismos computacionais gerados por Sergio Metalli. E por falar em kitsch, o tão alardeado uso de labaredas e línguas de fogo ao longo da apresentação resumem-se a isto: a uma tentativa de distração do vazio artístico que impregna todo o espetáculo.

O uso de cenários virtuais requer necessariamente muita habilidade no manejo da luz, já que seu excesso pode literalmente sumir com eles. Resultado: o espetáculo ocorre praticamente na penumbra, e mesmo pelos telões dispostos nas laterais da sala não foi possível acompanhar a expressão dos cantores. Aliás, quem tentou acompanhar o espetáculo pelos telões se deparou com uma equipe mal preparada, que parecia mesmo empenhada em mostrar tudo aquilo que não era relevante. Só não foi mais constrangedor que os bailados, com dançarinos mal sincronizados e com pouco espaço para realizar a dispensável coreografia de Simona Chiesa.

Todos os pecados no âmbito cênico poderiam ser perdoados (ainda que parcialmente) caso se presenciasse uma fruição musical “monumental”. Mas é justamente aí onde reside um dos maiores problemas do espetáculo, já que é oferecida ao público uma dimensão muito pobre da grandeza sonora que Verdi confere a esta ópera.

Tal como é muito comum em espetáculos desta natureza, tanto a orquestra, como o coral e os solistas são amplificados. Isto em si não é problema, mesmo que os mais conservadores torçam o nariz para a microfonação de vozes e instrumentos acústicos. Mas à parte alguns acidentes técnicos, o principal problema foi mesmo a falta de qualidade da amplificação, que beirou a indigência. Numa época onde mesmo equipamentos domésticos propiciam uma experiência sonora mais realista, por meio de vários alto-falantes dispostos estrategicamente na sala, é inadmissível um espetáculo com estas pretensões basear sua difusão na estereofonia, com apenas dois grupos de amplificadores dispostos na boca de cena. Soma-se ainda a péssima qualidade destes alto-falantes, pelos quais se ouvia mais ruídos e chiados do que as nuances dos instrumentos e das vozes. Na realização sonora de Gerd Drücker a música perdeu toda sua profundidade, se transformado numa pálida representação da partitura.

Com tamanho “filtro”, fica mesmo impossível avaliar o trabalho que o regente Walter Haupt realizou com a orquestra arregimentada para o evento. Apesar destes empecilhos, fica muito evidente o quanto os cantores ficam desgastados num esquema de trabalho como este. O que há para se deleitar em vozes que estão sendo utilizadas como animais de carga?

A falta de capricho parece mesmo a principal característica de “Aida Monumental Opera”, pois até no libreto ele se fez presente, em incontáveis erros de ortografia (“molodia” ao invés de “melodia”, “senguinte” no lugar de “seguinte”, “camião”/“caminhão”, “votos du um bom espetáculo”, etc.).

Ao final de tudo surgem uma dúvida e uma certeza. A dúvida: qual o propósito disto tudo? A certeza: nunca subestimarmos o poder da propaganda e das expectativas que elas geram, ao ponto de fazer espetáculos lamentáveis desejáveis objetos de entretenimento e, pior, que geram filhotes ao redor do mundo.

Serviço:

“Aida Monumental Opera”
Credicard Hall – SP
Av. das Nações Unidas, 17955 - Marginal Pinheiro
11 6846 6000

Ingressos de R$ 160 a R$ 320

Novembro: dias 01 (21:30), 02 (22h), 03 (17 e 22 h.) e 04 (15:30 e 20:30)

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

22 outubro 2007

A música e a Igreja: entre a liturgia e o entretenimento

Afinal, qual é a função da música na Igreja? Ou melhor, qual o papel que a música deve desempenhar na vida religiosa na contemporaneidade? O tema em questão é o que desenvolverei no próximo domingo na palestra "A Música e a Igreja: entre a liturgia e o entretenimento", que contará com culto com serviço musical e um debate sobre os pontos levantados em minha exposição. Abaixo as descrições e informações gerais. Até lá!

Descrição da palestra:

Desde os primórdios do cristianismo a música está estreitamente relacionada com sua liturgia e cotidiano.

Se em um primeiro instante a música mostra-se como um poderoso meio devocional, é inegável o fato de que, com o passar do tempo, ela se transformou na peça central do “espetáculo litúrgico” que veio caracterizar boa parte dos cultos cristãos desde a Idade Média.

Sacro e profano, ritual e espetáculo, evangelização e entretenimento, devoção e profissionalização são alguns dos antagonismos presentes na relação entre a Igreja e a música.

É sobre esta relação que a palestra abordará aspectos de seus precedentes históricos, bem como suas implicações na contemporaneidade.

Tópicos da palestra:
- A música nos primórdios da Igreja Cristã.
- A música e a Reforma Protestante.
- A música da Igreja e seus estilos.
- Música e cultura “pop” e a sua relação com a Igreja.

Participantes:

- Palestrante: Leonardo Martinelli (compositor e professor).
- Debatedores: Samuel Kerr (maestro), Ricardo Barbosa (maestro) e Celso Mojola (compositor e professor).
- Músicos: Teresa Longato (maestrina) e Coral da Igreja da Paz e Ricardo Barbosa (maestro) e Madrigal Voz Ativa.

Informações gerais:
- Evento gratuito
- Emitirá certificado de participação aos presentes
- Número de vagas: 400
- Inscrições: pelo e-mail igrejadapaz@uol.com.br e pelo telefone (11) 5181-7966
- Local: Igreja da Paz, Rua Verbo Divino, 392, Granja Julieta, São Paulo, SP.
- Horários: 28 de outubro de 2007, domingo, às 10h (início do culto) e às 11:30 (palestra seguida de debate).

11 outubro 2007

Mestres e discípulos

Em iniciativa inédita, recitais com grandes pianistas brasileiros serão abertos por jovens talentos.

Diz o senso comum que o Brasil é uma terra de grandes pianistas, idéia corroborada pelos grandes nomes do passado e do presente que, nascidos em terra brasilis, fizeram fama e carreira mundo afora. Mas, paradoxalmente, da mesma forma que por muito tempo nossos melhores grãos de café eram raramente apreciados pelo consumidor nacional, a maioria de nossos melhores pianistas ainda hoje estão destinados à fruição do público estrangeiro. Com sorte, provamos um pouco de sua arte quando eles se apresentam acompanhados por orquestras, ou na terminologia barista, machiato, diluídos em meio a um grande conjunto instrumental. Raras são as oportunidades em que seja possível absorve-los de forma pura, apreciando sua sonoridade por meio de uma arte que se materializa apenas em peças solo.

É justamente este cenário que faz da série de recitais “Piano Solo”, que se inicia próxima segunda-feira, uma oportunidade rara para ouvir nomes consagrados do piano nacional. Com apresentações no Rio de Janeiro e em São Paulo, a série se inicia com o recital de Nelson Freire, seguido da apresentação de Diana Kacso (que este ano retoma sua carreira musical depois de um longo tempo afastada dos palcos), Cristina Ortiz e, por fim, Eduardo Monteiro, idealizador do projeto.

“A idéia da série está em minha cabeça há muito tempo, pois praticamente não há no Brasil uma série de especificamente de piano solo. Há muitas séries orquestrais, que de vez em quando convidam estes pianistas para concertos. É raro eles serem ouvidos no Brasil em recital solo” diz Monteiro, que além de pianista é professor deste instrumento na USP.

Foi justamente as atividades didáticas de Monteiro que fizeram ele elaborar para a série um formato praticamente único na cena clássica, fazendo com que estes recitais sejam precedidos por uma breve apresentação de jovens pianistas, todos na faixa dos vinte anos (alguns ainda realizando seus estudos). “A idéia de fazer uma abertura antes do recital tem muito a ver com meu perfil profissional, com minha preocupação com a formação dos jovens. Existem muitos talentos que se perdem inclusive por falta de oportunidades, pois se é difícil para um pianista renomado conseguir se apresentar solo, imagine para alguém que está começando”.

O formato proposto é comum na cena pop, onde os shows de grandes bandas são precedidos por aberturas de grupos iniciantes que, eventualmente, tornam-se bandas grandes, que por sua vez passam a convidar outras bandas iniciantes para abrirem seus shows, estabelecendo um círculo virtuoso que ajuda a mover a economia deste segmento. No caso da música clássica a adoção deste formato não é factível em muitos de seus tipos de espetáculos, já que a infra-estrutura de uma orquestra, ou de uma ópera, é em si grande e dispendiosa. A música de câmara é, talvez, o lugar ideal para este formato, mas mesmo assim este tipo de ação é virtualmente inexistente, dificultando ainda mais o início de carreira de um músico.

Na fogueira

Existe situação mais tensa do que subir ao palco e dar conta de todo um recital sozinho? Aparentemente não. Mas o que você acha de abrir a apresentação de seu principal mestre e mentor? Ou então tocar antes de um pianista que é considerado um dos melhores músicos da atualidade, tal como é o caso de Nelson Freire? As palavras “responsabilidade” e “honra”, precedidas por adjetivos como “grande” e “enorme” são os termos comuns que todos os jovens pianistas envolvidos no projeto utilizaram para definir seus sentimentos nestes dias que precedem suas apresentações.

Alunos do pianista Eduardo Monteiro, os jovens Leonardo Hilsdorf, Juliana D’Agostini, Cristian Budu e Érika Ribeiro terão, até o presente momento, a grande oportunidade de suas carreiras. Isto ocorre não apenas por seus nomes figurarem ao lado de músicos já consagrados, mas também pelo enorme desafio musical eles enfrentarão, já que eles escolheram para suas apresentações peças de alto nível técnico e interpretativo, que bem poderiam figurar no programa dos pianistas que estão preludiando. Não é coincidência que obras do compositor húngaro Franz Liszt – famoso pelo virtuosismo de sua escrita – estão presentes em quase todas as aberturas.

Apesar desta oportunidade de ouro, estes jovens pianistas são muito realistas quando o assunto é o desenvolvimento da carreira. “Minha vontade sempre foi poder trabalhar com música de câmara, atividade que infelizmente encontra poucas oportunidades no Brasil”, diz Érika Ribeiro, a mais experiente do grupo e que atualmente cursa mestrado como um meio adicional de sustentabilidade de carreira de musicista. A academia é um caminho que Cristian Budu também não descarta, apesar do desejo de ser concertista. Apesar dos diferentes anseios, há um objetivo comum a estes diferentes jovens, que é de fato poderem desenvolver suas carreiras e, quem sabe, terem seus recitais abertos por outros jovens pianistas.

Serviço:
> Recital de Nelson Freire, com abertura de Leonardo Hilsdorf.
Em São Paulo no dia 15 de outubro e no Rio dia 17.
> Recital de Diana Kacso, com abertura de Juliana D’Agostini.
No Rio no dia 8 de novembro e em São Paulo no dia 9.
> Recital de Cristina Ortiz, com abertura de Cristian Budu.
Em São Paulo no dia 26 de novembro e no Rio dia 29.
> Recital de Eduardo Monteiro, com abertura de Érika Ribeiro.
No Rio no dia 12 de dezembro e em São Paulo no dia 13.

Em São Paulo os recitais ocorrerão no Theatro Municipal e na Sala Promon. No Rio os recitais ocorrerão na Sala Cecília Meireles. Em ambas as cidades os recitais começam às 20:30. Os recitais têm preços diferentes por apresentação, que variam entre R$ 220 e R$ 150, sendo possível comprar o pacote com todos os concertos por R$ 400. Ingressos: Theatro Municipal de São Paulo, (11) 3222-8698 e Sala Cecília Meireles, (21) 2224-3913.


[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

05 outubro 2007

25 anos sem o re-inventor do piano

Tido como excêntrico, mas acima de tudo genial, a arte de Glenn Gould continua insuperável.

No dia 4 de outubro de 1982 chegava ao fim a vida de um dos mais singulares e controvertidos pianista clássico. Vitimado por um derrame, com apenas 50 anos o canadense Glenn Gould ingressava na história com sua eternidade artística garantida por meio das diversas gravações que realizou ao longo de sua breve vida. Porém, mais do que discos a serem posteriormente “requentados” pelas grandes gravadoras, a verdadeira herança de Gould reside na atitude artística que suas gravações trazem implicitamente consigo.

Em meados do século XX, o barateamento dos equipamentos de entretenimento eletrônico (tais como o rádio, a televisão e a vitrola) e o desenvolvimento de uma indústria para fornecer conteúdo a esses meios foram os responsáveis pelo surgimento de diversos “pop stars” que, de uma maneira peculiar, também pulularam na cena clássica universal. Caruso, Toscanini, Callas, Rubinstein, Casals e Karajan são algumas das muitas estrelas que passaram a habitar este firmamento criado pela vendagem de discos, objetos que registravam a habilidade e sensibilidade que estes músicos faziam no palco.

Mais do que um mero registro, ao longo de sua carreira Gould fez das gravações o próprio meio de expressão artística, que especificamente em seu caso já tornariam estes registros em algo excepcional e destoante frente aos padrões interpretativos da época.

O artista por detrás da caricatura

Após mais de duas décadas de sua morte a figura de Glenn Gould continua sendo fundamental para a música moderna. Entretanto, não é de todo errado compreender a força do Gould appeal à caricatura que se incrustou em seu gênio artístico.

Não era por menos, pois mesmo em dias quentes, conta-se que Gould estava sempre a trajar pesadas vestes invernais (incluso com sua indefectível boina). Ao piano, sua postura faria arrepiar qualquer professora de conservatório: sentado em seu banquinho, muitos centímetros abaixo do padrão, o rosto de Gould quase esbarrava o teclado do piano. Não bastasse isso, ao tocar, o pianista se expandia num espalhafatoso e extravagante gestual, freqüentemente acompanhado por animadas cantaroladas (para o terror dos engenheiros de gravação).

Somando-se a estes aspectos de sua figura, a caricatura em torno de Gould seria reforçada por sua acentuada misantropia, culminada com o abandono definitivo das apresentações públicas em 1964.

Porém, à parte sua caricatura, a verdadeira razão pela qual a imagem de Gould deva ser perpetuada é sua atitude artística num nicho ainda hoje dominado pelo mal tradicionalismo e pela ausência de criatividade interpretativa e de repertório.

Menino-progídio, Gould teve sua carreira catapultada pelas transmissões de rádio e TV de concertos, antes tão freqüentes no mass media. Até aí poderia ser mais um caso de um jovem músico cuja perenidade na vida adulta depende de fatores mais ligados à sorte do que ao talento.

Porém, contando ainda com pouco mais de vinte anos, Gould dá o primeiro dos passos que o destacará dos demais, elegendo como base de seu repertório compositores que, apesar de sua grandeza, passavam longe das estantes dos pianistas da época, tais como Bach, Schoenberg, Berg e Orlando Gibbons (compositor renascentista inglês que Gould praticamente ressuscitou no repertório clássico).

Gould também “aumentou” o repertório pianístico ao incluir em seus recitais e gravações transcrições de peças originalmente escritas para orquestras. Por muitos visto como um mero recurso didático – quando não uma arte menor – Gould mostrou que as transcrições eram na verdade reinvenções das próprias músicas, e reinvenção é a palavra-chava em sua estética musical.

O pianista enquanto (re)compositor

Nenhuma caricatura de Gould estará completa sem se referir ao seu estilo nada ortodoxo de execução musical, principalmente no que se refere às obras de Bach (cujas gravações bateram recordes de vendas).

Mais do que mera heterodoxia da execução musical, em Gould a arte de tocar piano reside numa outra dimensão, na qual a interpretação musical é muito mais do que o ato que reviver acusticamente a música supostamente contida nas pálidas e insuficientes informações de uma partitura. Para Gould a interpretação pianística é, necessariamente, um ato de recriação.

Desta forma, a partitura, antes um documento sagrado, é tomada apenas como base para um processo criativo, que em seu estágio final (isto é, o recital ou a gravação), necessariamente se diferenciará de qualquer idealização acústica que a partitura possa sugerir.

Esta atitude, a essência da arte de Gould, nem de longe gozou de consenso em sua época, e mesmo hoje em dia ela tende ser hostilizada por certas práticas de música historicamente orientadas (apesar de mesmo nelas já ser muito premente a necessidade de uma interpretação mais criativa do que reconstitutiva). É justamente aí onde reside a base da controvérsia em torno da música de Gould, cujos célebres exemplos são as diversas gravações das “Variações Goldberg” de Bach (na época, considerada afetada e maneirista), e do “Concerto No. 1”, de Brahms (cujo o andamento foi considero demasiado lento).

Apesar das controvérsias, Gould gozou de imensa popularidade, ao ponto de uma gravação sua de uma obra de Bach ter sido escolhida como representante da arte e inteligência musical para enviado aos confins do universo na sonda Voyager 1, em 1977.

Mais do que um grande pianista, Gould foi um re-inventor. Mas reinventou não apenas o piano e seu repertório, mas bem como a própria essência da interpretação musical.

Apêndice: Gould, para ver e ouvir

Apesar da efeméride, a indústria fonográfica nacional não preparou nada de especial para celebrar ou os 75 anos de nascimento ou os 25 anos de morte de Gould. Entretanto, há ótimas opções que podem ser garimpadas no mercado nacional. Em termos de gravações, apesar de raras, é possível achar nas lojas exemplares da coleção que a Sony Music lançou sobre o pianista durante a década de 1990. Nas estantes das livrarias há, em português, sua biografia escrita por Otto Friedrich (Record, R$ 66). Porém, vale a pena insistir nos DVD, nos quais as performances de Gould podem ser apreciadas também de forma visual (apesar de todos os títulos serem importados). Na falta de dinheiro, uma busca rápida no YouTube proporcionará momentos deliciosos. Ainda em DVD, vale a pena conferir a ficção-documentário “Trinta e Dois curtas para Glenn Gould”, dirigida em 1993 por François Girard.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

14 setembro 2007

Adio, Pava!

Ícone da música universal do século XX, Luciano Pavarotti morre aos 71 anos.

“Penso che una vita per la musica sia una vita spesa bene ed è a questo che mi sono dedicato” (Penso que uma vida dedicada à música seja uma vida bem vivida, e foi para isto que dediquei a minha). A frase acima, atribuída a Luciano Pavarotti, tem acompanhado os mais diferentes obituários e homenagens dedicadas ao tenor italiano, que na semana passada, 6 de setembro, faleceu ao 71 anos, em decorrência das complicações de um tumor no pâncreas.

A frase de efeito não é um mero slogan: na condição de músico de primeira grandeza, dizer que Pavarotti dedicou sua à música não é figura retórica, mas sim um fato. Nascido em 1935 na cidade italiana de Modena, Pavarotti cresceu em meio a uma família muito pobre: sua mãe era operária em uma fábrica de charutos, e seu pai, cantor amador, ganhava a vida como padeiro.

Apesar da humilde condição de sua família, Luciano teve seu primeiro contato com a música por meio dos discos que registraram os grandes e populares cantores da primeira metade do século passado: Enrico Caruso, Tito Schipa, Giovanni Martinelli e Beniamino Gigli estavam entre as vozes que cotidianamente enchiam a modesta residência dos Pavarotti de música.

É tendo em mente este cotidiano nada glamouroso que a palavra “dedicação” ganha uma dimensão muito maior. Durante sua adolescência do cantor a Europa vivia sob um permanente estado de penúria que assolava o velho mundo após a II Guerra Mundial. Tal situação fazia da carreira artística uma opção das mais desaconselháveis para um filho de proletários. Por muito pouco Pavarotti não se dedicou profissionalmente ao futebol (obviamente, antes dele adquirir alguns quilinhos extras) ou mesmo ao ensino, mesmo após ele ter sido por dois anos professor de uma escola primária. A dedicação mostrou-se fundamental na medida em que o cantor teve que ir contra os anseios paternos e ainda assim trilhar uma educação musical praticamente sem recursos.

Formalmente, Pavarotti iniciou seus estudos de canto aos 19 anos, com o tenor Arrigo Pola que, ciente das dificuldades financeiras do promissor aluno, não lhe cobrou as aulas dadas. Porém, foi apenas em 1955 que Pavarotti optou de forma irremediável pela carreira musical, após o Choral Rossini, do qual ele e seu pai eram integrantes, ter ganhado o festival International Eisteddfod, no país de Gales. Seis anos depois, Luciano estreava na ópera no papel de Rodolfo de “La Bohème”, de Giacomo Puccini, no teatro municipal da pequena cidade de Reggio Emilia. Foram os primeiros passos para uma carreira musical sem precedentes.

Muito mais que um tenor

Ao longo de sua carreira, Pavarotti interpretou todos os papéis óperas apropriados para seu timbre e constituição vocal, marcada por uma grande potência e, fator de relevância, um timbre belo e singular, fator que tornou sua voz única e imediatamente reconhecível. Entre os anos 60 e 80 o cantor esteve presente nos principais palcos de ópera do mundo ao lado dos principais cantores, regentes e orquestra de sua contemporaneidade.

Porém, em meio a uma trajetória já excepcional, Pavarotti empreende ações então pouco comuns em cantores de sua envergadura, bem como no universo clássico como todo. A primeira das mais significativas ocorreu no início da década de 80, quando ele lança o “Pavarotti International Voice Competition”, um concurso voltado para a revelação de jovens talentos, cujos vencedores contracenariam com o Pavarotti em pessoa.

O barítono brasileiro Carmo Barbosa foi um dos vencedores da primeira edição, e relata a nobreza de caráter do cantor. “Pavarotti foi um grande incentivador do canto e dos cantores. Tinha um grande interesse pela técnica vocal sem nunca perder de vista a questão musical”, diz o Barbosa, que faz questão de testemunhar o quanto Pavarotti era acessível e atencioso para aqueles que realmente se preocupavam com a música.

Mas foi em 1990 que Pavarotti, associado aos seus colegas Plácido Domingo e José Carreras e ao regente Zubin Metha, fez história com o espetáculo “Os Três Tenores”. No princípio idealizado como parte integrante das festividades da Copa do Mundo, na Itália, posteriormente o projeto ganhou vida própria. Marco na indústria fonográfica mundial, o projeto catapultou o canto lírico italiano à condição de popular.

Dos três tenores, Pavarotti foi certamente o que melhor soube explorar as possibilidades abertas com o conceito de “ópera popular” simbolizado pelo projeto. A partir de então se apresentou ao lado de diversos músicos populares em parcerias que procurava minimizar o caráter elitista associado à ópera (Roberto Carlos, Queen, U2, Céline Dion e James Brown são algumas das ecléticas parcerias que o tenor empreendeu em sua carreira).

Foi com este mesmo ímpeto que Pavarotti apresentou-se solo ao redor do mundo para estádios lotados por uma heterogênea platéia que desembolsava quantias nada irrelevantes para ouvir pela sua voz o repertório que parecia ter sido criada especialmente para ela, isto é, canções e árias de óperas italianas compostas entre a virada dos séculos XIX e XX. Divulgação ou usura? Não importa, pois o importante é que Pavarotti foi peça-central na difusão do repertório lírico para além dos batentes das casas de óperas.

Com sua morte, a voz de Luciano Pavarotti silencia, mas tal qual a luz de uma estrela, que mesmo após sua extinção continua a se propagar e a iluminar o espaço, assim ocorrerá com sua música, que reverberará por muito tempo no imaginário musical das gerações presentes e futuras.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

31 agosto 2007

O perpétuo retorno da eterna diva

Trinta anos após sua morte, a cantora lírica Maria Callas continua sendo uma das celebridades mais cultuadas do universo clássico.

Em diversos idiomas, a palavra “diva” está diretamente ligada à noção de divino, significando literalmente “deusa”, e no sentido figurado uma mulher que é tomada como musa inspiradora (sendo a palavra “musa” também com significados divinos estreitamente ligados à música). Etimologias à parte, o termo por fim se fixa como um substantivo – nem sempre de forma elogiosa, é verdade – que se refere às cantoras líricas especiais. Especiais por possuírem uma voz, por sua presença hipnótica quando no palco, mas muitas vezes, também por seu comportamento genioso e irascível.

Entretanto, este estereótipo ainda tão voga tem seu entendimento moderno na figura desta que é considerada a grande diva do século XX: Maria Callas, que mesmo após trinta anos de sua morte, continua a ser uma das personalidades mais cultuadas do universo clássico.

Independentemente de predileções e gostos pessoais, não há como negar a existência de um verdadeiro culto à figura de Callas. Trata-se de um culto em cujo altar são adorados um sem número de gravações, fotos em trajes de gala ou das heroínas que representou ao longo de sua carreira. Como em toda religião, há leituras e releituras (biografias, cartas, críticas e relatos) constantes realizadas sobre a diva. Algumas são alegremente festejadas por seus seguidores, outras – por sua iconoclastia – proscritas do códice de Callas.

Produto de uma era em que os meios de comunicação de massa já despontavam com sua vocação globalizante, quando no ápice de sua carreira Maria Callas automaticamente tornou-se uma celebridade de repercussão mundial. Se atualmente ela não está entre nós, sua fama, entretanto, é mantida por meio de uma infinidade de produtos de audiovisuais que passam ao largo da crise que há tanto tempo assola o mercado fonográfico clássico. O mito que se construiu em torno da imagem de Callas garante a sua imagem a perenidade que só os grandes detém ao transcorrer da história.

Mas, por detrás do mito, quem, afinal, foi Maria Callas?

A gênese de uma musa grega

Comparar a pessoa de Callas com a de uma personagem mitológico grego é algo que não se deve exclusivamente a sua ascendência. Tal como uma deusa antiga, sua história de vida é intensa, onde grandes feitos contrastam violentamente humilhações e tristezas.

Batizada como Maria Anna Sophie Cecília Kalogeropoulos, Callas nasceu em Nova York em 2 de dezembro de 1923, em meio a uma família de imigrantes gregos. Aos seis anos, quando seu pai estabeleceu-se como farmacêutico no quarteirão grego de Manhattan, teve seu sobrenome Kalogeropoulos substituído por Callas, de mais fácil pronúncia aos cidadãos da cosmopolita Nova York.

Apesar de seu início de vida nos EUA, onde inclusive começou a estudar piano, aos 14 anos Callas, sua irmã e mãe retornaram à Grécia, onde em 1938 ingressou no Conservatório Nacional de Atenas. Lá passaria a ter aulas de canto com Elvira de Hidalgo, a quem é atribuído o mérito de seu real treinamento vocal.

Apesar do relativo sucesso que Callas conheceu na terra natal de sua família, em 1944 ela decide voltar para os EUA (que na época já contava com importantes casas de ópera, como a de Chicago e o Metropolitan de Nova York), onde se envolve em produções malfadadas. Apenas em 1947 as coisas começam a mudar em sua vida, quando foi então convidada para protagonizar a ópera “La Gioconda”, de Ponchielli, no festival de ópera da lendária arena de Verona.

Entretanto, apenas em 1949, ano em que se casa com o industrial italiano Giovanni Battista Meneghini (que se tornaria seu empresário artístico e grande responsável pela projeção de sua imagem) e quando Callas substitui a soprano Margherita Carosio no papel de Elvira em “I Puritani” no teatro La Fenice, em Veneza, é que parece ter iniciado a história da diva que iria mudar a cena lírica, marcada por sua íntima relação com o repertório do bel canto.

Entre o mito e a realidade

Várias questões intrigantes surgem quando se toma Callas como tema de reflexão. Mas talvez a pergunta mais fundamental seja por que, afinal, Maria Callas tornou-se “a Callas” em uma época onde existiam vozes tão belas quanto a sua?

Segundo o pesquisador da ópera e professor da USP Sergio Casoy, autor de diversos livros sobre história da ópera, o diferencial de Callas foi que a partir dela “a beleza do canto feminino, embora não tivesse sido relegada, deixou de ser fundamental, e teve de dividir sua importância com a interpretação com a materialização do papel”.

O divisor de águas que Callas representa na história do canto e da ópera é que, a partir dela, o trabalho de interpretação dramática passou a ser tão importante quanto a música em si, e isto em uma época na qual a verossimilhança nas encenações operísticas era praticamente inexistente.

O talento dramático de Callas era indissociável de seu talento musical, e Callas teve a felicidade de trabalhar esta faceta com grandes encenadores e diretores de cinema como Franco Zefirelli, Luchino Visconti e Píer Paolo Pasolini: cultuar Callas não é apenas escutá-la, mas, acima de tudo, compreender a persona que ela imprimia a cada personagem, que por sua vez é refletida em sua forma de cantar.

“Detestei Callas na primeira vez que a ouvi” diz o crítico musical e historiador da ópera Lauro Machado Coelho ao se referir à gravação de 1954 da “Norma” de Bellini. “Achei sua voz esquisita, feia e desigual. Fui à loja e troquei por outra coisa. Mas nos dias que se seguiram, fui tomado por uma sensação muito esquisita: a vontade de ouvir aquela gravação de novo. Paguei o mico de voltar à loja e recomprar o disco. E aí, caiu a ficha: aquela ‘vozinha’ mofina tinha a capacidade de ganhar vida diante de seus olhos, com uma extraordinária força de persuasão”.

Entretanto, a atenção que Callas direcionou para o aspecto dramatúrgico significava uma compensação pela parte vocal, reconhecidamente uma das mais belas do século XX.

Mesmo com tanto talento, com o passar da carreira a diva conheceu um desgaste vocal que muitos atribuíram ao fato dela cantar personagens muito diferentes entre si. Apesar disto, Casoy explica que “Callas jamais cantou algo que fosse inapropriado, pois sem dúvida ela era uma soprano sfogato”, isto é, um tipo de voz com uma flexibilidade que lhe permitia cantar tanto personagens cuja música tende ao agudo como ao grave. “Sua voz se danificou por excesso de trabalho no início da carreira e por excesso de farra em seu final”, conclui.

Aliás, farras, desentendimentos e conturbações conjugais são alguns dos outros elementos que concretizaram a imagem da diva. Já exposta uma mídia extremamente invasiva, a vida de Callas foi presença constante no colunismo social da época, que se esbaldou quando em 1959 ela desmanchou seu casamento com Meneghini para viver um romance que jamais se concretizou em matrimônio com o milionário grego Aristóteles Onassis, e a preteriu em favor de Jacqueline Kennedy, então viúva do presidente norte-americano John Fitzgerald Kennedy.

Somando-se a tudo isto, muito do sentido pejorativo do termo diva em Callas surgiu do fato da cantora não raro cancelar de última hora suas apresentações, seja alegando motivo de saúde ou porque não simplesmente não se achava em condições de fazer tudo o que podia fazer. Ao longo de sua carreira a diva deixou a ver navios diversas autoridades confortavelmente instaladas em seus camarotes, fato que só alimentava a virulência da imprensa.

Na dimensão mítica à qual Callas foi lançada é sempre nebuloso o discernimento entre a verdade e a mentira. Mas suprimindo tudo o que é musical do que é mundano, nos deparamos com uma Callas extremamente trabalhadora, e acima de tudo “uma grande artista, no sentido mais amplo da palavra, de alguém que pensa sua arte”, como defende Machado Coelho.

Ainda que Callas, em 16 de setembro de 1977, tenha encontrado o fim de seus dias depressivamente confinada num apartamento em Paris, a imagem que resiste é a grande cantora que literalmente dava vida à suas personagens e óperas, que não fosse por ela provavelmente estariam excluídas do firmamento operístico, onde a grande diva sempre viverá.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]