10 dezembro 2007

Álfred Shnittke: o compositor de todas as músicas

Figura pouco conhecida no Brasil, o compositor russo Álfred Shnittke ganha no país sua segunda biografia mundial.

Como toda tradição artística, a música clássica do século XX construiu um cânone musical próprio, isto é, obras tidas como “primas”, representativas das práticas e do pensamento de então. É em torno deste cânone que surge a figura do compositor, e quando falamos deste verdadeiro panteão na segunda metade do século passado, nomes como Olivier Messiaen, Luciano Berio, Luigi Nono, Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez são presenças mais que obrigatórias. Entretanto, este panteão está sempre de portas abertas, e nos últimos anos tem sido notável o crescimento da figura do compositor russo Álfred Shnittke (1934-1998).

Nascido e criado em meio ao frenesi dos anos de chumbo da ditadura stalinista, o papel de Shnittke é ainda ambíguo para historiografia da música contemporânea, na medida em que ela pende entre aspectos que escapam dos valores que celebraram outros compositores de sua geração. É neste sentido que o livro “Shnittke: música para todos os tempos”, de Marco Aurélio Scarpinella Bueno, mostra-se como recurso importante para uma melhor compreensão do compositor.

A ambigüidade da figura histórica de Shnittke reside principalmente em dois aspectos, quais sejam, o social e o estético.

A respeito de seu aspecto social, é comum entender sua obra enquanto símbolo de resistência à opressão soviética, tendo em vista que ela foi realizada em meio a um ambiente político extremamente hostil. Porém, ao contrário do compatriota Dmítri Shostakóvitch (1906-1975) – cuja obra é também símbolo de resistência artística, porém sem nunca refutar o valor dos ideais socialistas – Shnittke sequer se preocupou em manter as aparências, tendo inclusive relevado sua conversão ao cristianismo ainda sob o poder da censura estatal. Se hoje em dia algo assim pode até ser tomado como heróico, vale a pena notar que até meados da década de 1970 era muito forte a orientação esquerdista (e uma natural simpatia pela URSS) da tendência da intelligentsia ocidental.

Pelo outro lado, Shnittke se singularizou frente aos seus contemporâneos ao colocar o poliestilismo como cerne da linguagem musical contemporânea.

Quando o assunto é música na contemporaneidade é inevitável que se pergunte “de qual música estamos falando?”, pois, afinal, é notória a fragmentação ocorrida nas práticas musicais do ocidente a partir do início do século XX. Tal fragmentação é responsável não apenas pelos “ismos” que passam a povoar o universo clássico – tais como impressionismo, dodecafonismo, serialismos, etc. – mas também para a própria consolidação das atividades designadas como música popular.

Neste cenário, onde a heterogeneidade estilística impera soberana, a idéia de unidade estilística só faz sentido quando se fala de um compositor em específico. Não raro a questão torna-se pertinente apenas quando se trata de uma música em específico. Na verdadeira Babel musical que vivemos não há, necessariamente, um grande idioma dominador, mas sim dialetos os quais alguns parecem fazer mais “sucesso” que os outros.

Eis aí o principal diferencial da Shnittke, que com um “estômago antropofágico” muito peculiar, tudo absorve e utiliza como elemento de uma linguagem musical muito ampla, cujas fronteiras são demarcadas por questões de foro íntimo do compositor. Nestes termos, são as memórias musicais familiares, as preferências, os gostos e as lições tomadas na juventude os fatores determinantes para sua poética, e não a orientação (e por que não policiamento) de uma determinada escola. Em Shnittke o estilo musical não é fim, mas sim um meio para realização da música.

Muitos caracterizaram sua música como “pós-modernista” (nem sempre de forma elogiosa). Mas a verdade é que, se na aparência, a música de Shnittke pode soar pós-modernista, em sua essência ela se distância desta corrente, na medida em que em sua obra não é uma refutação ou alternativa do vanguardismo musical, mas sim um tipo raro e valioso de ousadia artística (característica bastante rara nos pós-modernistas).

É no esclarecimento destas e de outras questões que a biografia prepara por Scarpinella Bueno mostra-se enquanto ferramenta importante para uma melhor compreensão do compositor. Médico de formação, o autor empreendeu este trabalho a partir da fascinação sentida pela a obra de Shnittke, curiosamente iniciada a partir de uma percepção nada boa de sua música.

Exemplar na coleta de dados e nas informações oferecidas, o livro tropeça apenas em pequenos cacoetes, ao insistir, por exemplo, na palavra “criar” como sinônimo de estréia de uma obra. Em muitos lugares o ritmo de leitura poderia ter sido mais fluído se o autor tivesse optado por notas de roda-pé (por exemplo, quando mistura no corpo do texto suas preferências discográficas com dados biográficos do compositor). Aliás, as notas de roda-pé que deveriam ter sido utilizadas para referencializar uma quantidade significativa de citações. Uma rápida revisão do vocabulário técnico-musical mostra-se necessária.

Entretanto, estes problemas em nada diminuem a pertinência do livro, que se mostra como um acessível meio de se iniciar pelos caminhos e labirintos babilônicos que a obra Shnittke traz consigo, em quem sabe, por outros itinerários da música moderna.

Serviço:
“Shnittke: música para todos os tempos”, de Marco Aurélio Scarpinella Bueno
Algol Editora, 396 págs., R$ 57

Um comentário:

Anônimo disse...

Gosto muito dos conte�dos e continentes do seu Blog. Estou enriquecendo meus conhecimentos de m�sica moderna/contempor�nea e outroa tais.
Um abra�o,
Angela