Após uma controversa montagem de “O Navio Fantasma”, de Richard Wagner, o XI Festival Amazonas de Ópera (FAO) – que termina na próxima semana com “Poranduba”, de Villani-Côrtes – encerrou sábado passado sua segunda fase de apresentações. A grande atração desta edição foi reservada justamente para o meio do evento, isto é, a estréia brasileira da ópera “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk”, do compositor russo Dmítri Shostakóvitch (1906-1975). Composta durante os anos ferro da ditadura stalinista, que então regia a antiga União Soviética, a ópera tornou-se um marco tanto político como estético na história da música ocidental.
Apesar de ser cantado em russo (um idioma ainda raro nas práticas operísticas atuais), apesar da longa duração do espetáculo e da crueza das situações abordadas pelo libreto – tais como estrupro, assassinato e adultério – o público manauara compareceu em peso a terceira e última apresentação desta ópera, que coroou a excelência da soprano brasileira Eliane Coelho, a cargo da protagonista da trama.
No papel de Katerina, Coelho dominou a cena, seja pela beleza e perícia de sua voz, seja pelo extraordinário domínio dramatúrgico que ela tem desta complexa personagem. Domínio este, aliás, construído de forma muito consciente e cuidadosa, tal como fica evidente na entrevista que a soprano concedeu à Gazeta Mercantil (ver texto abaixo). Para o público, a maestria com a qual Coelho conduziu seu personagem ficou evidenciada em diversos momentos ao longo do espetáculo. Mas é especialmente notável, tanto cenicamente como musicalmente, a ária do primeiro ato, na qual Katerina/Coelho, ébria de um desejo sexual primal, afoga-se nas águas da auto-satisfação.
A grande atuação de Coelho contrasta com a do baixo russo Oleg Melnicov, a cargo do malvado sogro de Katerina, o comerciante Boris. Com um fraco desempenho nas diversas passagens agudas previstas em sua partitura, e uma presença cênica que se apoiou exclusivamente em seu biotipo à la “grande, feio e mau”, esperava-se muito mais de Melnicov que, no entanto, não chegou a comprometer o espetáculo. Porém, uma atuação mais inspirada teria sido salutar para incrementar a verossimilhança de uma história de horrores, tal como é o enredo de “Lady Macbeth”.
Completando o elenco principal, o tenor Martin Mühle, a cargo de criminoso amante de Katerina, abocanha os méritos de destaque masculino, na medida em que sua atuação como Serguei foi muito convincente quando, ao lado de Coelho, concretiza o sórdido casal que trai e assassina o filho de Boris, o reprimido e impotente Zinovi.
Já no elenco de apoio, no qual a desenvoltura cênica acaba, por fim, sendo muitas vezes mais importante do que a vocal, tivemos um rol de ignominiosos personagens muito bem caracterizados. É o caso tenor Marcos Paulo, que representou o marido de Katerina. Destaca-se ainda a embriagada dupla Stephen Bronk e Sérgio Weintraub, que realizaram a difícil terefa de arrancar alguns sorrisos da platéia em meio ao pesadelo gelado no qual se desenvolvia na trama.
De uma forma geral, a direção de Caetano Vilela (que assinou também a concepção e a iluminação do espetáculo) conseguiu imprimir um bom ritmo a cada um dos quatro atos da ópera. Se em cada ato testemunhou-se uma boa fluidez narrativa, o todo, no entanto, foi prejudicado por um número um excessivo de intervalos. Tantas interrupções foram decorrências das trocas de cenários que, apesar de colocarem conceitos e elementos interessantes, não justificam a interrupção da lineariedade narrativa. Vale ressaltar a eficiência do trabalho de movimentação cênica entre solista e coros, garantindo vivacidade aos trechos mais dramáticos.
Apesar de majoritariamente bem-sucedido, fica-se no ar o porquê da inserção de certos “enigmas” plantados na concepção cênica. Certos elementos cenográficos – em especial, letras e palavras do alfabeto cirílico (o mesmo utilizado no idioma russo) – mostram-se não apenas incompreensíveis ao público, mas muitas vezes inviabilizou qualquer forma de interpretação particular, o que por fim tornou estes elementos meramente decorativos.
Entretanto, apesar da beleza dramática intrínseca à partitura de Shostakóvitch e da excelente performance dos artistas que se encontravam no palco, é sempre importante salientar que toda a força deste espetáculo estava literalmente baseada em seu subsolo, no fosso do Teatro Amazonas. Sobre a regência de Luiz Fernando Malheiro, a Amazonas Filarmônica e seu coro impressionaram pela energia dedicada a esta obra cuja escritura é de um complexo sinfonismo de cunho Expressionista, alternando momentos de extrema tensão aos de delicadeza absoluta. Empolgou a tal ponto que Malheiro e seu grupo foram aplaudidos após um dos interlúdios orquestrais.
É sempre importante salientar que tais feitos ganham uma dimensão ainda maior quando se tem em mente que, durante o festival os músicos, estão ocupados em tempo integral por quase dois meses de intenso trabalho. O maestro Malheiro mostra mais uma vez seu talento e competência, conduzindo de forma inspirada esta que é uma das obras mais complexas do repertório shostakovitchiano.
Com a apresentação de “Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk” tanto o FAO como seus artistas e produtores mais uma vez realizam um marco histórico da cultura operística brasileira, cuja difusão para outras cidades brasileiras mostra-se urgente. Em tempo, personagens importantes da cena cultural carioca e paulistana estavam lá, avaliando a possibilidade de sanar esta necessidade. Que venham então os ares amazônicos (já temperados com os ares glaciais russos) aquecer nossas casas de óperas do sudeste!
Fotos: 1) A soprano Eliane Coelho; 2) Oleg Melnicov e 3) Eliane Coelho, Oleg Melnicov e Marcos Paulo. Crédito das fotos: Marcio James
[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]