24 junho 2006

A prosa sob o sol úmido

Contos completos de Tennessee Williams revelam a origem da força de sua dramaturgia.

Popular em seu país natal pelas dezenas de peças de teatro e roteiros de cinema que escreveu ao longo de sua carreira, no Brasil o dramaturgo norte-americano Tennessee Williams é mais conhecido pelo roteiro do filme “Um bonde chamado desejo”, que em 1951 imortalizou o jovem Marlon Brando ao gritar desesperadamente por Stella em frente a uma casa miserável. Adaptado de sua própria peça de teatro, o enredo é povoado por figuras excluídas do sonho americano, ou como eles mesmo gostam de se referir, loosers (perdedores) que sem dinheiro, emprego respeitável e perspectiva de vida nada mais lhes restam senão um cotidiano ordinário, regado a entretenimentos baratos, álcool, brigas e relações sexuais brutais.

Párias da sociedade são também comuns em outras peças suas, entre as quais, o sucesso “Gata em teto de zinco quente”. E é este mesmo tipo de gente que habita a maioria de seus contos, que este ano têm sua edição completa no livro “49 contos de Tennessee Williams” (Cia. das Letras, 691 págs., R$ 46).

Nascido em 1911 como Thomas Lanier Williams, ganhou o nome artístico de Tennessee (apesar de ter nascido no Mississippi) devido ao seu acentuado sotaque sulista. Aliás, os vilarejos e cidades desta região dos EUA, e em especial o Quarteirão Francês de Nova Orleans (antes dele ser transformado na Disneylândia do jazz e de sua destruição pelo furacão Katrina), constituem o cenário mais corriqueiro de seus contos, escritos ao longo de cinqüenta e dois anos, tendo Williams publicado seu primeiro texto quando contava com apenas 17 anos.

Tamanho espaço de tempo faz destes contos não apenas o documento do amadurecimento artístico e biográfico do autor, mas constituem também um caleidoscópio de personas e temáticas que irão povoar suas peças e filmes, muitos deles preconizados em seus nestes contos, tal como a peça “À margem da vida”, baseada no conto “Retrato de uma moça em vidro”, e “A Noite do Iguana”, baseado no conto homônimo.

Porém, mais do que meros laboratórios para projetos dramatúrgicos, seus contos propiciam ao leitor o contato direto – por vezes chocante – com histórias e situações nem sempre funcionais para o palco ou para a tela, seja pelas limitações do próprio meio diante de tamanha complexidade psicológica, seja pelo pudor de materializar situações ou personagens tabus. Pessoas como artistas decadentes, prostitutas, michês, negros semi-escravizados, tuberculosos “cuspidores de sangue”, velhacas ricas ávidas por sugar o sangue da juventude alheia e jovens solteironas sedentas de um calor masculino que lhes é proibido são figuras freqüentes em seus contos e constituem parte substancial dos personagens arquetípicos do universo de Williams.

Além da notoriedade alcançada por seu sucesso artístico, em vida Williams foi também muito conhecido pela virulência com que a imprensa sensacionalista abordava sua homossexualidade (e pelos inevitáveis escândalos que esta opção acarretava na época). Em seus contos o autor trata a questão de maneira franca e explícita. Os anseios mais íntimos de um enrustido (outra figura freqüente nos contos) são jogados pra fora do armário, e o desejo homo-erótico é tratado sem meias palavras, e se este pende entre a vulgaridade e o amor é apenas pelo fato disto ser uma coisa que ocorre com qualquer ser humano.

Apesar de freqüentemente se debruçar sob a temática homossexual (inclusa aí também a feminina), é injusto rotular Williams como um gay writer, tal como infelizmente muito de seus compatriotas fazem, imagem esta que o prefácio do escritor e amigo Gore Vidal procurar derrubar, tendo em vista que o escopo de emoções e situações trabalhadas é amplo demais para uma interpretação tão simplista.

Se por um lado, não só a homossexualidade, mas toda e qualquer situação ou desejo sexualmente imoral para época é uma constante em seu texto, pelo outro sua prosa é pontuada situações embebidas de memórias familiares, de forte apelo sentimental: o menino que testemunha silenciosamente o desabrochar da feminilidade da irmã com quem, então, nunca mais irá brincar, a perseverança de viver da avó moribunda e a enigmática, mas ao mesmo tempo tenra imagem do pai, cuja importância no imaginário de Williams fica registrada no elegíaco “O homem da poltrona estofada”.

Apesar do esforço que a leitura de quase sete centenas páginas exige, tal incursão pelos contos de Williams justifica-se pela fluidez de sua prosa e pelo prazer da recorrência de temas e personagens ao longo de seu itinerário artístico (que se fundo ao biográfico), transcorrido sob o calor úmido das paragens sulistas e seu singular modo de encarar a vida.

Um comentário:

Leonardo disse...

Achei esta coletânea dos contos do Tennesse Willians por R$20,00 numa livraria. Conhecia pouco (ou quase nada) dos contos dele, por isso não comprei. Agora, lendo a tua resenha, fiquei mais curioso para comprar, nem que eja para ler um conto que outro.
Valeu pela informação!