03 novembro 2005

Broadway no Municipal

Montagem de "Candide", de Bernstein, estréia em São Paulo

A história se passa em meados do século XVIII, mas é com uma ambientação pop e diversas referências à política e aos políticos atuais (que não parecem ter mudado muito desde então) que a história do anti-herói Cândido surge nos palcos paulistanos.

Trata-se do espetáculo musical “Candide”, do compositor e regente norte-americano Leonard Bernstein (1918-1990), que depois de uma temporada carioca no ano 2000, estreou em “versão concerto encenada” na sexta-feira passada – dia 28 de outubro – no Theatro Municipal de São Paulo, sob a direção cênica de Jorge Takla, com a Orquestra Sinfônica Municipal e o Coral Lírico sob a regência de José Maria Florêncio.

Espetáculo musical é, talvez, o termo menos perigoso para definir esta obra de Bernstein, que em 1956 estreou como um musical da Broadway, mas que desde então passou por diversas modificações para as mais diferentes ocasiões, tal como viria acontecer com sua obra mais famosa, o musical “West Side Story” (no Brasil, curiosamente traduzido como “Amor sublime amor”).

Baseado na novela setecentista “Candide ou L’Optimisme” (“Cândido, ou o Otimismo”) de Voltaire, a versão de Bernstein – em colaboração com a roteirista de cinema Lillian Hellman – surgiu como um meio de ironizar subliminarmente toda a perseguição política empenhada pelo senador Joseph McCarthy nos EUA da década de 1950.

Passado quase duzentos anos desde a primeira publicação da novela de Voltaire e mais de cinqüenta desde sua estréia na Broadway, o “Candide” de Takla preserva sua atualidade temática e renova seu frescor com a interessante que tradução de Claudio Botelho neste espetáculo que, coisa rara na cena lírica, conta com os cantores cantando em bom português.

Cantar musicais não é tarefa fácil para ninguém (mesmo para experientes cantores líricos), mas cantar em português é uma tarefa dificílima que foi superada com relativa desenvoltura pelo estrelar elenco desta produção, que teve como protagonista o tenor Fernando Portari (Candide), que realizou de forma muito feliz a caracterização do cândido herói voltairiano que, no fim das contas, tem muito da melancolia encontrada em diversas personagens do repertório lírico, tal como constatar no belamente interpretado “Candide’s lament”, ainda no 1º. ato.

Apesar do título da obra evidenciar um protagonista, em “Candide” isto não quer dizer uma predominância deste no palco, o que torna responsabilidade sobre os papéis ditos “secundários”.

O barítono Sandro Christopher destaca-se pelo seu cômico Dr. Pangloss, e junto com a soprano Rosana Lamosa (Cunegunda), Sebastião Teixeira (Maximilian), Dênia Campos (Paquete) e com o tenor Paulo Queiroz e o baixo Carlos Eduardo Marcos constituíram um elenco que conduziu de forma bem-humorada a trupe que circunda o confuso Candide ao longo de sua trajetória de provações.

Um dos grandes momentos da noite foi a incendiária atuação da mezzo-soprano Regina Elena Mesquita (Velha Senhora) e do hilariante quarteto de “señores” (Diógenes Gomes, Sandro Bodilon, Miguel Geraldi e Sérgio Weintraub) no número “I am easily assimilated” (“Camaleoa”), evidenciando toda a energia inerente à partitura de Bernstein.

O musical norte-americano é um descendente direto da ópera européia, mas uma das grandes diferenças entre ambas é que, no musical, o cantar é menos “empostado” que na ópera, o que acarreta na necessidade de amplificação eletrônica da parte vocal, o que nem sempre é bem visto tanto pelos cantores como pela audiência lírica. Em “Candide” a amplificação vocal foi sutil e cumpriu sua função de, discretamente, auxiliar os cantores.

Entretanto, ela falhou no que concerne à amplificação da orquestra: a distribuição dos diferentes instrumentos do conjunto em apenas três grupos de alto-falantes dispostos de forma chapada nas laterais e ao alto do palco atribuiu artificialidade ao timbre e à espacialização da orquestra, principalmente em momentos de maior sutileza tímbrica. Faltou aí o conceito de “surround”, tal como feito nos musicais da atualidade.

Apesar deste problema, nada compromete o “Candide” paulistano, um espetáculo que, além de divertido, que conta com a música de um dos grandes músicos do século XX, ao contrário da grande maioria dos musicais da Broadway e do Teatro Abril.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

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