14 setembro 2007

Adio, Pava!

Ícone da música universal do século XX, Luciano Pavarotti morre aos 71 anos.

“Penso che una vita per la musica sia una vita spesa bene ed è a questo che mi sono dedicato” (Penso que uma vida dedicada à música seja uma vida bem vivida, e foi para isto que dediquei a minha). A frase acima, atribuída a Luciano Pavarotti, tem acompanhado os mais diferentes obituários e homenagens dedicadas ao tenor italiano, que na semana passada, 6 de setembro, faleceu ao 71 anos, em decorrência das complicações de um tumor no pâncreas.

A frase de efeito não é um mero slogan: na condição de músico de primeira grandeza, dizer que Pavarotti dedicou sua à música não é figura retórica, mas sim um fato. Nascido em 1935 na cidade italiana de Modena, Pavarotti cresceu em meio a uma família muito pobre: sua mãe era operária em uma fábrica de charutos, e seu pai, cantor amador, ganhava a vida como padeiro.

Apesar da humilde condição de sua família, Luciano teve seu primeiro contato com a música por meio dos discos que registraram os grandes e populares cantores da primeira metade do século passado: Enrico Caruso, Tito Schipa, Giovanni Martinelli e Beniamino Gigli estavam entre as vozes que cotidianamente enchiam a modesta residência dos Pavarotti de música.

É tendo em mente este cotidiano nada glamouroso que a palavra “dedicação” ganha uma dimensão muito maior. Durante sua adolescência do cantor a Europa vivia sob um permanente estado de penúria que assolava o velho mundo após a II Guerra Mundial. Tal situação fazia da carreira artística uma opção das mais desaconselháveis para um filho de proletários. Por muito pouco Pavarotti não se dedicou profissionalmente ao futebol (obviamente, antes dele adquirir alguns quilinhos extras) ou mesmo ao ensino, mesmo após ele ter sido por dois anos professor de uma escola primária. A dedicação mostrou-se fundamental na medida em que o cantor teve que ir contra os anseios paternos e ainda assim trilhar uma educação musical praticamente sem recursos.

Formalmente, Pavarotti iniciou seus estudos de canto aos 19 anos, com o tenor Arrigo Pola que, ciente das dificuldades financeiras do promissor aluno, não lhe cobrou as aulas dadas. Porém, foi apenas em 1955 que Pavarotti optou de forma irremediável pela carreira musical, após o Choral Rossini, do qual ele e seu pai eram integrantes, ter ganhado o festival International Eisteddfod, no país de Gales. Seis anos depois, Luciano estreava na ópera no papel de Rodolfo de “La Bohème”, de Giacomo Puccini, no teatro municipal da pequena cidade de Reggio Emilia. Foram os primeiros passos para uma carreira musical sem precedentes.

Muito mais que um tenor

Ao longo de sua carreira, Pavarotti interpretou todos os papéis óperas apropriados para seu timbre e constituição vocal, marcada por uma grande potência e, fator de relevância, um timbre belo e singular, fator que tornou sua voz única e imediatamente reconhecível. Entre os anos 60 e 80 o cantor esteve presente nos principais palcos de ópera do mundo ao lado dos principais cantores, regentes e orquestra de sua contemporaneidade.

Porém, em meio a uma trajetória já excepcional, Pavarotti empreende ações então pouco comuns em cantores de sua envergadura, bem como no universo clássico como todo. A primeira das mais significativas ocorreu no início da década de 80, quando ele lança o “Pavarotti International Voice Competition”, um concurso voltado para a revelação de jovens talentos, cujos vencedores contracenariam com o Pavarotti em pessoa.

O barítono brasileiro Carmo Barbosa foi um dos vencedores da primeira edição, e relata a nobreza de caráter do cantor. “Pavarotti foi um grande incentivador do canto e dos cantores. Tinha um grande interesse pela técnica vocal sem nunca perder de vista a questão musical”, diz o Barbosa, que faz questão de testemunhar o quanto Pavarotti era acessível e atencioso para aqueles que realmente se preocupavam com a música.

Mas foi em 1990 que Pavarotti, associado aos seus colegas Plácido Domingo e José Carreras e ao regente Zubin Metha, fez história com o espetáculo “Os Três Tenores”. No princípio idealizado como parte integrante das festividades da Copa do Mundo, na Itália, posteriormente o projeto ganhou vida própria. Marco na indústria fonográfica mundial, o projeto catapultou o canto lírico italiano à condição de popular.

Dos três tenores, Pavarotti foi certamente o que melhor soube explorar as possibilidades abertas com o conceito de “ópera popular” simbolizado pelo projeto. A partir de então se apresentou ao lado de diversos músicos populares em parcerias que procurava minimizar o caráter elitista associado à ópera (Roberto Carlos, Queen, U2, Céline Dion e James Brown são algumas das ecléticas parcerias que o tenor empreendeu em sua carreira).

Foi com este mesmo ímpeto que Pavarotti apresentou-se solo ao redor do mundo para estádios lotados por uma heterogênea platéia que desembolsava quantias nada irrelevantes para ouvir pela sua voz o repertório que parecia ter sido criada especialmente para ela, isto é, canções e árias de óperas italianas compostas entre a virada dos séculos XIX e XX. Divulgação ou usura? Não importa, pois o importante é que Pavarotti foi peça-central na difusão do repertório lírico para além dos batentes das casas de óperas.

Com sua morte, a voz de Luciano Pavarotti silencia, mas tal qual a luz de uma estrela, que mesmo após sua extinção continua a se propagar e a iluminar o espaço, assim ocorrerá com sua música, que reverberará por muito tempo no imaginário musical das gerações presentes e futuras.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

31 agosto 2007

O perpétuo retorno da eterna diva

Trinta anos após sua morte, a cantora lírica Maria Callas continua sendo uma das celebridades mais cultuadas do universo clássico.

Em diversos idiomas, a palavra “diva” está diretamente ligada à noção de divino, significando literalmente “deusa”, e no sentido figurado uma mulher que é tomada como musa inspiradora (sendo a palavra “musa” também com significados divinos estreitamente ligados à música). Etimologias à parte, o termo por fim se fixa como um substantivo – nem sempre de forma elogiosa, é verdade – que se refere às cantoras líricas especiais. Especiais por possuírem uma voz, por sua presença hipnótica quando no palco, mas muitas vezes, também por seu comportamento genioso e irascível.

Entretanto, este estereótipo ainda tão voga tem seu entendimento moderno na figura desta que é considerada a grande diva do século XX: Maria Callas, que mesmo após trinta anos de sua morte, continua a ser uma das personalidades mais cultuadas do universo clássico.

Independentemente de predileções e gostos pessoais, não há como negar a existência de um verdadeiro culto à figura de Callas. Trata-se de um culto em cujo altar são adorados um sem número de gravações, fotos em trajes de gala ou das heroínas que representou ao longo de sua carreira. Como em toda religião, há leituras e releituras (biografias, cartas, críticas e relatos) constantes realizadas sobre a diva. Algumas são alegremente festejadas por seus seguidores, outras – por sua iconoclastia – proscritas do códice de Callas.

Produto de uma era em que os meios de comunicação de massa já despontavam com sua vocação globalizante, quando no ápice de sua carreira Maria Callas automaticamente tornou-se uma celebridade de repercussão mundial. Se atualmente ela não está entre nós, sua fama, entretanto, é mantida por meio de uma infinidade de produtos de audiovisuais que passam ao largo da crise que há tanto tempo assola o mercado fonográfico clássico. O mito que se construiu em torno da imagem de Callas garante a sua imagem a perenidade que só os grandes detém ao transcorrer da história.

Mas, por detrás do mito, quem, afinal, foi Maria Callas?

A gênese de uma musa grega

Comparar a pessoa de Callas com a de uma personagem mitológico grego é algo que não se deve exclusivamente a sua ascendência. Tal como uma deusa antiga, sua história de vida é intensa, onde grandes feitos contrastam violentamente humilhações e tristezas.

Batizada como Maria Anna Sophie Cecília Kalogeropoulos, Callas nasceu em Nova York em 2 de dezembro de 1923, em meio a uma família de imigrantes gregos. Aos seis anos, quando seu pai estabeleceu-se como farmacêutico no quarteirão grego de Manhattan, teve seu sobrenome Kalogeropoulos substituído por Callas, de mais fácil pronúncia aos cidadãos da cosmopolita Nova York.

Apesar de seu início de vida nos EUA, onde inclusive começou a estudar piano, aos 14 anos Callas, sua irmã e mãe retornaram à Grécia, onde em 1938 ingressou no Conservatório Nacional de Atenas. Lá passaria a ter aulas de canto com Elvira de Hidalgo, a quem é atribuído o mérito de seu real treinamento vocal.

Apesar do relativo sucesso que Callas conheceu na terra natal de sua família, em 1944 ela decide voltar para os EUA (que na época já contava com importantes casas de ópera, como a de Chicago e o Metropolitan de Nova York), onde se envolve em produções malfadadas. Apenas em 1947 as coisas começam a mudar em sua vida, quando foi então convidada para protagonizar a ópera “La Gioconda”, de Ponchielli, no festival de ópera da lendária arena de Verona.

Entretanto, apenas em 1949, ano em que se casa com o industrial italiano Giovanni Battista Meneghini (que se tornaria seu empresário artístico e grande responsável pela projeção de sua imagem) e quando Callas substitui a soprano Margherita Carosio no papel de Elvira em “I Puritani” no teatro La Fenice, em Veneza, é que parece ter iniciado a história da diva que iria mudar a cena lírica, marcada por sua íntima relação com o repertório do bel canto.

Entre o mito e a realidade

Várias questões intrigantes surgem quando se toma Callas como tema de reflexão. Mas talvez a pergunta mais fundamental seja por que, afinal, Maria Callas tornou-se “a Callas” em uma época onde existiam vozes tão belas quanto a sua?

Segundo o pesquisador da ópera e professor da USP Sergio Casoy, autor de diversos livros sobre história da ópera, o diferencial de Callas foi que a partir dela “a beleza do canto feminino, embora não tivesse sido relegada, deixou de ser fundamental, e teve de dividir sua importância com a interpretação com a materialização do papel”.

O divisor de águas que Callas representa na história do canto e da ópera é que, a partir dela, o trabalho de interpretação dramática passou a ser tão importante quanto a música em si, e isto em uma época na qual a verossimilhança nas encenações operísticas era praticamente inexistente.

O talento dramático de Callas era indissociável de seu talento musical, e Callas teve a felicidade de trabalhar esta faceta com grandes encenadores e diretores de cinema como Franco Zefirelli, Luchino Visconti e Píer Paolo Pasolini: cultuar Callas não é apenas escutá-la, mas, acima de tudo, compreender a persona que ela imprimia a cada personagem, que por sua vez é refletida em sua forma de cantar.

“Detestei Callas na primeira vez que a ouvi” diz o crítico musical e historiador da ópera Lauro Machado Coelho ao se referir à gravação de 1954 da “Norma” de Bellini. “Achei sua voz esquisita, feia e desigual. Fui à loja e troquei por outra coisa. Mas nos dias que se seguiram, fui tomado por uma sensação muito esquisita: a vontade de ouvir aquela gravação de novo. Paguei o mico de voltar à loja e recomprar o disco. E aí, caiu a ficha: aquela ‘vozinha’ mofina tinha a capacidade de ganhar vida diante de seus olhos, com uma extraordinária força de persuasão”.

Entretanto, a atenção que Callas direcionou para o aspecto dramatúrgico significava uma compensação pela parte vocal, reconhecidamente uma das mais belas do século XX.

Mesmo com tanto talento, com o passar da carreira a diva conheceu um desgaste vocal que muitos atribuíram ao fato dela cantar personagens muito diferentes entre si. Apesar disto, Casoy explica que “Callas jamais cantou algo que fosse inapropriado, pois sem dúvida ela era uma soprano sfogato”, isto é, um tipo de voz com uma flexibilidade que lhe permitia cantar tanto personagens cuja música tende ao agudo como ao grave. “Sua voz se danificou por excesso de trabalho no início da carreira e por excesso de farra em seu final”, conclui.

Aliás, farras, desentendimentos e conturbações conjugais são alguns dos outros elementos que concretizaram a imagem da diva. Já exposta uma mídia extremamente invasiva, a vida de Callas foi presença constante no colunismo social da época, que se esbaldou quando em 1959 ela desmanchou seu casamento com Meneghini para viver um romance que jamais se concretizou em matrimônio com o milionário grego Aristóteles Onassis, e a preteriu em favor de Jacqueline Kennedy, então viúva do presidente norte-americano John Fitzgerald Kennedy.

Somando-se a tudo isto, muito do sentido pejorativo do termo diva em Callas surgiu do fato da cantora não raro cancelar de última hora suas apresentações, seja alegando motivo de saúde ou porque não simplesmente não se achava em condições de fazer tudo o que podia fazer. Ao longo de sua carreira a diva deixou a ver navios diversas autoridades confortavelmente instaladas em seus camarotes, fato que só alimentava a virulência da imprensa.

Na dimensão mítica à qual Callas foi lançada é sempre nebuloso o discernimento entre a verdade e a mentira. Mas suprimindo tudo o que é musical do que é mundano, nos deparamos com uma Callas extremamente trabalhadora, e acima de tudo “uma grande artista, no sentido mais amplo da palavra, de alguém que pensa sua arte”, como defende Machado Coelho.

Ainda que Callas, em 16 de setembro de 1977, tenha encontrado o fim de seus dias depressivamente confinada num apartamento em Paris, a imagem que resiste é a grande cantora que literalmente dava vida à suas personagens e óperas, que não fosse por ela provavelmente estariam excluídas do firmamento operístico, onde a grande diva sempre viverá.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

27 agosto 2007

Sazonalidade da(s) profissão(ões)

Após um mês de estiagem, ao menos uma "agüinha" para regar o blog

Há exatamente um mês publiquei meu último post no blog. Não que tenha faltado assunto e vontade, mas faltou sim tempo (logo isto, a matéria-prima do músico).

Mas trata-se de algo que o músico deve se acostumar, pois ser músico (ao menos aqui nestes trópicos) não é ter apenas um emprego, mas sim fazer de tudo um pouco: aulas (muitas), estudos, entrevistas, escritos, composições, etc. Trata-se da sazonalidade da profissão, ou melhor, das profissões, em um bom plural.

Há épocas nas quais há relativamente pouco o que fazer (por exemplo, durante as férias escolares). É quando temos que aproveitar para fazer tudo o que não faremos quando temos que "bater o cartão": tocar muito o nosso instrumento, compor (para quem se arrisca), ler sobre o Tudo e o Nada, enfim, internalizar a existência e o pensamento verdadeiramente artístico. No fundo a sina de sommerkomponist que perseguiu Mahler ao longo de sua vida parece que não sairá de moda tão cedo...

Mas há épocas em que literalmente tudo nos é requisitado ao mesmo tempo, e em meus últimos anos o mês de agosto tem sido assim: intenso e atarefado. Mas aos poucos a folia passa e é possível equilibrar melhor as coisas. O importante é não deixar aquela ou outra faceta das muitas atividades do músico morrer de sede ou de inanição. Por isto este post totalmente dispensável.

Ok, dispensável não. Aproveito para então divulgar os mais recentes frutos de meu eterno processo de sazonalização (que também singnifica "amadurecer"): três concertos nos quais serão apresentados as mais recentes peças que compus. Tendo um tempinho (e bem sei que ele falta a todos), ficarei muito feliz com sua presença! Abacadabraço para você!

> 31 de agosto, sexta-feira, 12:30, Sala Olido (São Paulo)
Meu octeto de madeiras "Junitaki", baseada em uma passagem do livro "Caçando Carneiros", de Haruki Murakami, será tocada pela Camerata da Orquestra Experimental de Repertório. Grátis!

> 10 de setembro, segunda-feira, 21h, Teatro Sesc Anchieta-Consolação (São Paulo)
Minha peça "Ayahuasca", para orquestra de cordas, será tocada Ensemble Música Nova, regido por Emiliano Patarra dentro das atividades do 42o. Festival Música Nova.

> 11 de setembro, terça-feira, 20:30, Teatro Coliseu (Santos)
Repetição do concerto do dia anterior.

28 julho 2007

As mulheres de Campos

Com a ópera “Rita”, festival chega a um de seus pontos culminantes.

Todo mês de julho a cidade paulista de Campos do Jordão torna-se uma espécie de epicentro social brasileiro, um ponto para onde converge uma fauna heterogênea, e muitas vezes, antagônica em si mesma. Por conseqüência Campos, à sua maneira, torna-se um lugar de contrastes. Somente em Campos os ônibus de lotação enfrentam um congestionamento ao lado de uma Ferrari. Somente em Campos a música clássica combate literalmente em praça pública contra o som “bate-estacas” dos carros que passam na rua ao lado. Somente em Campos madames bem vestidas travam verdadeiras disputas por brindes e outros bibelôs baratos distribuídos como amostra grátis. Somente em Campos pode existir um evento como um excelente festival de música que, justamente no ano em que homenageia as mulheres, tem que conviver com uma caminhonete publicitária que traz uma vitrine ostentando em seu interior mulheres semi-nuas, exibindo-as tais como escravas num pelourinho, anunciando sabe-se lá o quê. Num lugar onde o medíocre e o sublime se esbarram, o Festival Internacional de Inverno encerra este fim-de-semana sua trigésima oitava edição, mantendo a excelência artística de suas apresentações e de seu projeto educacional.

Dentre as inúmeras atrações previstas para esta edição a apresentação semana passada da ópera “Rita”, de Gaetano Donizetti (1797-1848) é a que possivelmente melhor sintetize os ideais desta homenagem ao verdadeiro sexo forte. Isto se deve não apenas pela personagem protagonista ser mulher, nem por na produção do festival estar envolvido mulheres em funções-chave normalmente desempenhadas por homens, tais como a direção de cena e a regência. Antes de tudo, a própria temática da ópera mostra-se providencial: uma mulher, Rita, que tem o hábito de bater em seu marido, Beppe, menos por conta de uma personalidade geniosa ou de um feminismo avant la lettre, mas sim como ressonância das pancadas pretéritas tomadas de seu (dado por) falecido marido, Gaspar. Com um enredo desenvolvido em forma de “comédia dos erros”, o libreto de Gustave Vaëz garante uma história divertida ao mesmo tempo em que aborda por meio da comédia pontos importantes sobre a questão da mulher na sociedade (ainda mais tendo em vista que a ópera foi composta há mais de um século e meio).

As personagens e situações previstas na obra de Donizetti mostraram-se o lugar ideal para sua plena assimilação por parte do elenco vocal escalado para este espetáculo. No papel-título, a soprano Rosana Lamosa mostra porque é um nome forte e muito requisitado produções Brasil afora, desempenhando com sua habitual competência as árias e duetos previstos nesta partitura de escritura leve e de fácil assimilação. Recém chegado de importantes apresentações na Europa, o tenor Fernando Portari, no papel do marido mal-tratado, foi o quem se mostrou mais a vontade com um personagem cômico, contagiando por diversas a numerosa audiência que acompanhou as duas récitas da ópera (uma no Auditório Cláudio Santoro e outra, desafio maior, ao ar livre, na Praça do Capivari). Já o barítono Paulo Szot, a cargo do “vilão” Gaspar, por sua vez mostra porque tem sido cada vez mais requisitado no exterior, com seu pleno domínio e beleza vocal que faz com que a gente até se lamente de Donizetti não ter escrito mais uma ou duas árias para este personagem.

Apesar desta partitura de Donizetti estar longe de ser um desafio em termos de regência operística, é impossível não notar o cuidadoso trabalho realizado pela regente Debora Waldman (leia entrevista abaixo). Detentora de gestos claros e precisos, Waldman garantiu a vitalidade e energia que as situações musicais desta ópera demandam, garantindo a integração entre a Orquestra Acadêmica e os cantores, mesmo contando com pouquíssimos ensaios.

Apesar da competência musical e cênica dos cantores, eles poderiam ter sido melhor explorados por Carla Camurati, que assinou a direção cênica do espetáculo. Mesmo tendo em conta o exíguo tempo que a produção teve para preparar o espetáculo, fica-se com a impressão que a movimentação dos cantores e sua interação com os cenários e objetos cênicos poderia ter sido muito melhor. Nestes termos, ficou muito a dever o parco cenário desenvolvido por Cica Modesto, que abusou da estaticidade numa ópera que se desenvolve em ritmo quase frenético. Ainda que se alegue que tanto o auditório como o palco montado na praça não possuam as condições técnicas ideais, tal argumento cai por terra quando se toma o engenhoso trabalho cênico desenvolvido sob as mesmas condições na ópera no festival do ano passado. Na récita do auditório o trabalho de iluminação foi tão pobre que ninguém sequer revindicou por ele na ficha técnica do espetáculo.

Mas, de novo, estamos em Campos do Jordão, e desta terra antagonismos sai-se com aquilo que nos causa a melhor impressão, e não há dúvida de que a música em si bastou-se para fazer de “Rita” um espetáculo muito mais que agradável.

Foto: Paulo Szot, Fernando Portari e Rosana Lamosa na montagem de "Rita", por Rachel Guedes.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

Entrevista: Debora Waldman

Figura elegante e muito delicada no trato pessoal a regente Debora Waldman foi uma das gratas revelações que o Festival de Campos proporcionou nesta edição ao seu público e músicos. Nascida em São Paulo, no bairro do Belenzinho – que décadas atrás abrigava em suas ruas famílias de diferentes países e culturas – muito cedo ela acompanhou a família para um kibutz em Israel, onde morou até completar 14 anos. Em seguida voltou à América do Sul, realizando em Buenos Aires uma sólida formação musical que aos 23 anos fez com que Waldman se mudasse definitivamente para Paris. Apaixonada confessa pela cidade-luz, com apenas trinta anos é a atual assistente de Kurt Masur junto a Orquestra Nacional da França. Foi durante o dia de descanso entre as récitas da ópera “Rita” que Waldman concedeu a seguinte entrevista ao Fim-de-semana.

Como é exercer uma atividade dominada por figuras masculinas tal como é o caso da regência?

Felizmente nunca tive problemas. Apenas uma vez, numa audição para regentes, ouvi um músico cochichar “achei que era uma audição”, insinuando que o lugar de uma mulher detrás das estantes da orquestra. Isto ocorre porque a música clássica tem um ambiente muito conservador, onde há poucos anos não havia muitas mulheres atuando como regentes. Acho que minha geração é que vai abrir estas portas.

Existe para você alguma diferença entre a maneira como a mulher conduz o trabalho frente à orquestra?

Acho que a mulher tem que ser muito mais cuidadosa, tem que ser muito melhor, pela simples razão de que qualquer erro tem uma dimensão muito maior caso ele tivesse cometido por um homem. Mas a vantagem é que, se a regente for boa, todos lembrarão dela, devido ao fato de serem poucas as mulheres que conduzem orquestras.

Em termos musicais, como fica este trabalho?

No trato musical a coisa é mais simples e fácil, pois quando fazemos música falamos em uma só linguagem, onde todos os músicos se entendem. Acho que é isto que pode salvar a gente, mulheres, pois nós estabelecemos rapidamente com os músicos uma comunicação muito sincera.

O bom trabalho para um regente depende diretamente da autoridade que ele tem junto ao grupo que irá reger. Como é para uma mulher estabelecer este elo de respeito com os músicos?

Creio que a autoridade tenha que ser uma coisa natural da pessoa. Mas o importante é que autoridade é algo que se ganha. De que forma? Sendo competente. Os músicos percebem quando você faz bem o seu trabalho, eles percebem se você é honesto, se você estudou a partitura, se você sabe do que está falando. É uma autoridade musical que todo músico gosta de ver em um regente, seja ele homem ou mulher.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

06 julho 2007

Agora é a vez delas (será?)

Em festival dedicado às mulheres, Campos do Jordão se envereda pelo politicamente correto.

Desde que assumiu a direção do Festival de Campos do Jordão, em 2004, o maestro Roberto Minczuk e sua equipe de produção têm realizado diversas ações significativas: tirou o festival de sua decadência estética e pedagógica, montou um corpo docente e discente forte e projetou-o internacionalmente. Mais recentemente, procurou estabelecer temáticas que norteassem seus espetáculos (que no ano passado foi a música russa). Esta edição do festival, que se inicia amanhã, une à proposição temática ao politicamente correto, tendo como tema a mulher.

Porém, não é apenas pela homenagem às mulheres que o festival inaugura sua participação no “social”, pois este ano será a primeira vez em que o evento será “carbono neutro”, por meio do apoio cultural da Max Ambiental, empresa que no Brasil vende os chamados créditos de carbono (na cena clássica brasuca, apenas a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo já vinha trabalhando com os tais créditos).

Clube do Bolinha

O papel da mulher na música clássica sempre foi algo muito limitado se comparado à atuação maciça que os homens tiveram ao longo de sua história. Evidentemente, isto ocorreu (ou ainda ocorre?) menos pelos perfis genéticos entre os sexos e sim devido ao fato de que o meio ambiente do universo clássico em pouco se diferenciava das características da sociedade que o circunda. O aspecto inegavelmente machista das práticas musicais ocidentais ao longo de sua história pode ser comprovado de diversas formas.

Um dos aspectos mais marcante é a diminuta proporção de compositoras frente ao verdadeiro exército masculino. Se com a abadessa Hildergard von Bingen (1098-1179) podemos rastrear desde a Idade Média a presença feminina no âmbito da criação musical, foi apenas a partir do século XIX que o número compositoras aumentou de forma significativa. É curioso notar que antes deste século a prática da composição estava intrinsecamente ligada a altos cargos, tanto no poder laico como no religioso (tais como o de mestre-de-capela), postos estes vedados às mulheres, seja por lei, seja pelas convenções sociais. Foi somente no século XX em diante que as mulheres passaram a encontrar um ambiente que as possibilitassem competir de forma mais efetiva junto aos seus colegas masculinos. À parte ascensão numérica das compositoras, falta ainda a elas transporem a enorme muralha do cânone musical (isto é, o repertório que constitui a base da tradição da música clássica), ao qual elas definitivamente ainda não fazem parte. Para isto, basta pegar um guia de concertos e analisar estatisticamente a virtual inexistência de obras de compositoras.

Outro aspecto do sexismo na música clássica é o fato de, por séculos, ter ser vedada a presença da mulher em qualquer tipo apresentação musical profissional, desta forma relegando as mulheres ao mero serviço musical doméstico. O cúmulo disto reside no fato de, até o Barroco, muitos personagens de ópera femininos terem sidos cantados não mulheres, mas sim por castrati, cantores que tinham sido castrados antes da puberdade, de forma a preservar num corpo adulto as características agudas de sua voz (em tempo, ainda hoje nas versões tradicionais do teatro Nô japonês e da ópera pequinesa os papéis femininos continuam a ser interpretados por homens). Mesmo no âmbito da música instrumental, vale notar que foi com o século XX já bem adiantado que as filarmônicas de Berlim e de Viena passaram a admitir mulheres em seus efetivos.

Negação ou afirmação?

A inevitável questão suscitada em qualquer homenagem desta natureza é saber se, com ela, nega-se ou afirma-se um determinado preconceito ou tabu. Como diz a canção, “todo dia era dia de índio”. Assim, o 19 de abril não é, de certa forma, uma de afirmação da condição pretérita da importância do índio (“era dia”)? Que apenas este dia sim é que é o dia de um povo renegado à indigência?

Nos círculos feministas e politicamente engajados a discussão vai longe. Por sua vez, o que o festival se propôs foi a programação mais sistemática de obras de compositoras (ao menos muito mais do que o comum), a escolha de obras que tenham a mulher como cerne e uma maior presença musicistas em seus corpo docente e em seus palcos.

Em termos de compositoras é notável a presença de nomes tradicionais da música brasileira, tais como Chiquinha Gonzaga, Marisa Rezende, Ester Scliar, Clorinda Rossato, Silvia de Lucca e Jocy de Oliveira, que participa do festival como compositora residente e também na direção de sua pocket-ópera “Medea”. No repertório internacional, Clara Schumann, Fanny Mendelssohn, Sofia Gubaidulina, Galina Ustvolskaya e Nadia Boulanger são os nomes que se destacam de rol no qual nota-se a ausência de compositoras importantes, tais como a própria Hildergard von Bingen, a seiscentista Barbara Strozzi e Kaija Saariaho, finlandesa que goza de ampla reputação na cena contemporânea.

A presença da temática feminina nas obras de homens e mulheres e que serão apresentadas no festival simboliza-se pela ópera “Rita”, de Gaetano Donizetti, que ficará a cargo da regente Débora Waldman e da direção cênica de Carla Camurati.

Quando o assunto é a presença feminina no palco, o destaque desta edição fica mesmo com o concerto que a soprano neozelandesa Kiri Te Kanawa fará acompanhada pela Orquestra Sinfônica Brasileira, sob a regência de Minczuk. Neste campo se destaca ainda as pianistas brasileiras Cristina Ortiz e Sônia Rubinsky (vencedora do Prêmio Carlos Gomes do ano passado), que será acompanhada pela Sinfônica de Campinas, a trompetista Alison Balsom, a flautista Celina Bordallo Charlier, acompanhada pela Banda Jovem, e o Trio Eroica. Nas inserções pontuais de música popular do festival, as mulheres garantem sua presença nas vozes de Miúcha, acompanhada pela Jazz Sinfônica, e Mônica Salmaso, que se apresentará ao lado de músicos do Projeto Guri.

O festival de Campos faz este ano uma aposta alta ao escolher um tema como este. Mas não utilizou todas suas fichas nisto, sendo que será constante ao longo de sua programação a presença de um repertório norteado por padrões mais tradicionais (em tempo, a Osesp de John Neschling ignorou esta temática em suas duas apresentações no evento). Agora cabe ao público dizer a si mesmo qual é, enfim, o papel que as mulheres terão na música de hoje e do amanhã.

Serviço: 38º. Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão De 07 a 29 de julho, com espetáculos gratuitos a ingressos que chegam a R$ 80. Detalhes da programação em www.festivalcamposdojordao.org.br

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

29 junho 2007

A música de um mestre mulato em prosa

Finalista do prêmio Jabuti deste ano, em “Música Perdida” Assis Brasil romanceia a vida do compositor Joaquim José de Mendanha.

Romance polifônico, de leitura agradável e fluída, o livro “Música perdida”, de Luiz Antonio de Assis Brasil, tem como personagem principal uma figura que, apesar de relativamente comum na ficção universal, é ainda muito rara na literatura nacional, isto é, o compositor.

Um dos principais romancistas brasileiro em atividade e autor de obras premiadas – tais como “A margem imóvel do rio” e “O pintor de retratos” – em “Música perdida” (pelo qual concorre este ano o Prêmio Jabuti de melhor romance) Assis Brasil toma como fio condutor a vida do compositor mineiro Joaquim José de Mendanha (1801-1885), que na vida real é mais conhecido por ser o autor da música do Hino Farroupilha, mais tarde conduzido ao status de hino oficial do Rio Grande do Sul. Em uma laboriosa teia narrativa, na qual a ficção e a biografia se entrelaçam de forma coesa em diversos lugares do tempo e do espaço, o escritor constrói um personagem complexo, no qual valores, deveres e anseios antagônicos travam uma batalha constante ao longo da sua vida.

Música de ficção

É com relativa freqüência que a vida dos compositores clássicos têm sido o mote de diferentes obras de ficção, seja na literatura, na dramaturgia ou no cinema. Reais ou imaginários, é desde meados do século XIX que o compositor é uma fonte para drama e conflitos. Uma vez no campo da invenção literária – e não mais na acuidade histórica da biografia – o compositor é um personagem de grande densidade psicológica, e a vida que gira em torno dele é algo tão denso quanto sua mente criativa, o que faz de sua obra e vida singulares frente à ordinariedade do cotidiano e do cidadão comum. Seja Mozart e Salieri da pequena peça de teatro de Púchkin, o Beethoven do filme de Bernard Rose ou mesmo os fictícios Adrian Leverkühn, de Thomas Mann, e Jean-Christoph, de Romain Rolland, o compositor enquanto personagem de ficção mostra-se um figura complexa e interessante.

Apesar da grande oferta e peculiaridades que a música brasileira oferece como referência, a figura do compositor em sua ficção é ainda escassa, quando não constrangedora (tal como o filme “Villa-Lobos: uma vida de paixão”, de Zelito Viana). Tendo isto em vista, o livro de Assis Brasil revela-se ainda mais surpreendente, na medida em que ele elege o desconhecido Joaquim José de Mendanha como personagem de seu romance.

O nome deste compositor por ser colocado ao lado de outros que, apesar do virtual anonimato no qual se encontram em nossa atual cultura musical, são nomes importantes para história da música brasileira, tais como José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, André da Silva Gomes, João de Deus Castro Lobo, Manoel Dias de Oliveira e José Maurício Nunes Garcia (este também um personagem em “Música perdida”).

Todos são compositores pertencentes ao que se convencionou chamar de “música colonial”, isto é, produzida em meados do século XVIII até os primórdios do XIX, nos então centros de riquezas brasileiros, em especial, as Minas Gerais e o Rio de Janeiro.

A vida do mestre mulato

Nascido Vila Rica, o compositor Joaquim José de Mendanha (que no romance é também chamado pelo apelido de Quincazé) realizou estudos e trabalhos profissionais no Rio de Janeiro, de onde posteriormente partiu para longínqua Capital da Província do Sul, em meio às conturbações que assolavam o Império naquela época.

Mulato, Mendanha faz parte de um tipo que se tornou relativamente comum na música brasileira da época, quando parte considerável os ofícios musicais religiosos e laicos estavam a cargo de músicos oriundos de famílias humildes, e a profissão era um dos principais meio de ascensão social de então.

Em sua imensa maioria, esses compositores realizaram sua formação musical de forma improvisada, apoiando-se muito mais em seu talento do que em um método formalizado. Grande parte de suas produções foram dedicadas à música religiosa, por meio de partituras que seriam executadas por cantores e instrumentistas com uma formação aquém dos músicos que seus contemporâneos europeus dispunham para materializar sua música.

Neste sentido, é notável o cuidado de Assis Brasil ao mostrar ao leitor não só as peculiaridades do cotidiano musical pré-republicano, que em muito se contrasta com estereótipo de luxo e excelência que cerca as práticas européias, mas também como este ambiente foi determinante na vida de seus personagens, tal como fica especialmente claro nas falas de Nunes Garcia, para quem a consciência de nossa rusticidade musical chega ao ponto da abnegação intelectual. “Se deseja ser compositor no Brasil, domine seu talento”, diz a certa altura ao protagonista Quincazé.

A frase, de certa forma, ilustra uma das idéias principais do livro, qual seja, o perpétuo estado de ansiedade do artista sempre em meio a forças antagônicas: o poder e o ceder, a nobreza artística e a indigência comercial, a sofisticação da intelectual e o simplismo do público. Mas o antagonismo maior, que por fim é o que faz o protagonista abandonar o cosmopolitismo carioca para a provinciana Porto-Alegre oitocentista, é o choque decorrente entre as obrigações sentimentais juntos aos seus próximos (em especial ao pai e aos seus mestres-tutores) versus a vaidade e a ambição naturais a um jovem artista.

Com sua prosa envolvente e a familiaridade com aspectos históricos e técnicos das práticas musicais, Assis Brasil oferece ao leitor uma obra bela e consistente sobre a música e vida que mesmo que momentaneamente recuperada, estará inexoravelmente perdida devido ao fatalismo que projeta sua sombra sobre os trópicos brasileiros.

Serviço
“Música perdida”, de Luiz Antonio de Assis Brasil
L&PM, 220 págs., R$ 28

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

Música na contramão

Na última década, diversos projetos de recuperação de repertório, e seu respectivo registro fonográfico, têm surgido na cena musical brasileira. Via de regra, estes projetos contam com o patrocínio de grandes estatais, ou mesmo de governos estaduais e municipais. Muitos deles têm se provado de um valor inestimável para a memória de nossa música, na medida em que neles convergem o acurado trabalho de nossos musicólogos e a destreza de bons músicos.

Apesar disto, vez ou outra podem surgir contra-exemplos que, apesar das boas intenções e da pertinência da temática que suscitam, no final das contas em nada acrescentam, quando não acarretam em desinformação.

Tal é o caso do projeto “Mestres Mulatos”, concebido e dirigido por Marcelo Antunes Martins. À frente da Sinfonieta dos Devotos de Nossa Senhora dos Prazeres (na verdade, um grupo de instrumentistas arregimentados ocasionalmente para este projeto), Martins propõe “dar luz à existência” (sic) de compositores “afrodescendentes”. Mas, por fim, a proposta mostra-se uma falácia, tanto do ponto de vista conceitual – ao tentar monocromatizar a história da música brasileira na figura do mulato – como no ponto de vista prático, esbarrando no diletantismo da regência de Martins e nas adaptações de gosto duvidosos das partituras originais (o que, por sua vez, acarreta sua nulidade enquanto objeto histórico e estético). A intenção pode ser boa, mas ainda falta muito para o projeto corresponder de forma adequada à importância histórica dos artistas que ele pretende resgatar.

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]