06 julho 2007

Agora é a vez delas (será?)

Em festival dedicado às mulheres, Campos do Jordão se envereda pelo politicamente correto.

Desde que assumiu a direção do Festival de Campos do Jordão, em 2004, o maestro Roberto Minczuk e sua equipe de produção têm realizado diversas ações significativas: tirou o festival de sua decadência estética e pedagógica, montou um corpo docente e discente forte e projetou-o internacionalmente. Mais recentemente, procurou estabelecer temáticas que norteassem seus espetáculos (que no ano passado foi a música russa). Esta edição do festival, que se inicia amanhã, une à proposição temática ao politicamente correto, tendo como tema a mulher.

Porém, não é apenas pela homenagem às mulheres que o festival inaugura sua participação no “social”, pois este ano será a primeira vez em que o evento será “carbono neutro”, por meio do apoio cultural da Max Ambiental, empresa que no Brasil vende os chamados créditos de carbono (na cena clássica brasuca, apenas a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo já vinha trabalhando com os tais créditos).

Clube do Bolinha

O papel da mulher na música clássica sempre foi algo muito limitado se comparado à atuação maciça que os homens tiveram ao longo de sua história. Evidentemente, isto ocorreu (ou ainda ocorre?) menos pelos perfis genéticos entre os sexos e sim devido ao fato de que o meio ambiente do universo clássico em pouco se diferenciava das características da sociedade que o circunda. O aspecto inegavelmente machista das práticas musicais ocidentais ao longo de sua história pode ser comprovado de diversas formas.

Um dos aspectos mais marcante é a diminuta proporção de compositoras frente ao verdadeiro exército masculino. Se com a abadessa Hildergard von Bingen (1098-1179) podemos rastrear desde a Idade Média a presença feminina no âmbito da criação musical, foi apenas a partir do século XIX que o número compositoras aumentou de forma significativa. É curioso notar que antes deste século a prática da composição estava intrinsecamente ligada a altos cargos, tanto no poder laico como no religioso (tais como o de mestre-de-capela), postos estes vedados às mulheres, seja por lei, seja pelas convenções sociais. Foi somente no século XX em diante que as mulheres passaram a encontrar um ambiente que as possibilitassem competir de forma mais efetiva junto aos seus colegas masculinos. À parte ascensão numérica das compositoras, falta ainda a elas transporem a enorme muralha do cânone musical (isto é, o repertório que constitui a base da tradição da música clássica), ao qual elas definitivamente ainda não fazem parte. Para isto, basta pegar um guia de concertos e analisar estatisticamente a virtual inexistência de obras de compositoras.

Outro aspecto do sexismo na música clássica é o fato de, por séculos, ter ser vedada a presença da mulher em qualquer tipo apresentação musical profissional, desta forma relegando as mulheres ao mero serviço musical doméstico. O cúmulo disto reside no fato de, até o Barroco, muitos personagens de ópera femininos terem sidos cantados não mulheres, mas sim por castrati, cantores que tinham sido castrados antes da puberdade, de forma a preservar num corpo adulto as características agudas de sua voz (em tempo, ainda hoje nas versões tradicionais do teatro Nô japonês e da ópera pequinesa os papéis femininos continuam a ser interpretados por homens). Mesmo no âmbito da música instrumental, vale notar que foi com o século XX já bem adiantado que as filarmônicas de Berlim e de Viena passaram a admitir mulheres em seus efetivos.

Negação ou afirmação?

A inevitável questão suscitada em qualquer homenagem desta natureza é saber se, com ela, nega-se ou afirma-se um determinado preconceito ou tabu. Como diz a canção, “todo dia era dia de índio”. Assim, o 19 de abril não é, de certa forma, uma de afirmação da condição pretérita da importância do índio (“era dia”)? Que apenas este dia sim é que é o dia de um povo renegado à indigência?

Nos círculos feministas e politicamente engajados a discussão vai longe. Por sua vez, o que o festival se propôs foi a programação mais sistemática de obras de compositoras (ao menos muito mais do que o comum), a escolha de obras que tenham a mulher como cerne e uma maior presença musicistas em seus corpo docente e em seus palcos.

Em termos de compositoras é notável a presença de nomes tradicionais da música brasileira, tais como Chiquinha Gonzaga, Marisa Rezende, Ester Scliar, Clorinda Rossato, Silvia de Lucca e Jocy de Oliveira, que participa do festival como compositora residente e também na direção de sua pocket-ópera “Medea”. No repertório internacional, Clara Schumann, Fanny Mendelssohn, Sofia Gubaidulina, Galina Ustvolskaya e Nadia Boulanger são os nomes que se destacam de rol no qual nota-se a ausência de compositoras importantes, tais como a própria Hildergard von Bingen, a seiscentista Barbara Strozzi e Kaija Saariaho, finlandesa que goza de ampla reputação na cena contemporânea.

A presença da temática feminina nas obras de homens e mulheres e que serão apresentadas no festival simboliza-se pela ópera “Rita”, de Gaetano Donizetti, que ficará a cargo da regente Débora Waldman e da direção cênica de Carla Camurati.

Quando o assunto é a presença feminina no palco, o destaque desta edição fica mesmo com o concerto que a soprano neozelandesa Kiri Te Kanawa fará acompanhada pela Orquestra Sinfônica Brasileira, sob a regência de Minczuk. Neste campo se destaca ainda as pianistas brasileiras Cristina Ortiz e Sônia Rubinsky (vencedora do Prêmio Carlos Gomes do ano passado), que será acompanhada pela Sinfônica de Campinas, a trompetista Alison Balsom, a flautista Celina Bordallo Charlier, acompanhada pela Banda Jovem, e o Trio Eroica. Nas inserções pontuais de música popular do festival, as mulheres garantem sua presença nas vozes de Miúcha, acompanhada pela Jazz Sinfônica, e Mônica Salmaso, que se apresentará ao lado de músicos do Projeto Guri.

O festival de Campos faz este ano uma aposta alta ao escolher um tema como este. Mas não utilizou todas suas fichas nisto, sendo que será constante ao longo de sua programação a presença de um repertório norteado por padrões mais tradicionais (em tempo, a Osesp de John Neschling ignorou esta temática em suas duas apresentações no evento). Agora cabe ao público dizer a si mesmo qual é, enfim, o papel que as mulheres terão na música de hoje e do amanhã.

Serviço: 38º. Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão De 07 a 29 de julho, com espetáculos gratuitos a ingressos que chegam a R$ 80. Detalhes da programação em www.festivalcamposdojordao.org.br

[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]

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