23 abril 2008

"(P)OPera-pastiche"

[Resenha da cobertura XII FAO, Manaus, 2008]

Em suntuosa produção do XII Festival Amazonas de Ópera, obra de ex-Pink Floyd é marcada por uma sucessão de equívocos

Foi a crônica de uma morte anunciada (que me permita Gabriel García Márquez esta pequena referência/deferência). Mesmo destituído de preconceitos, e pelo contrário, fazendo votos de que o previsível não ocorresse, por fim, não houve o que salvasse a ópera “Ça ira”. Nem todo empenho da produção. Nem toda beleza cênica e engenhosidade de movimentação. Nem todos os talentos musicais a serviços de Roger Waters foram suficientes para conferir valor a sua incursão na ópera. “Ça ira” tem apenas uma função, e esta foi muito bem cumprida: amplificar a repercussão mediática do festival, ou de qualquer outro evento que dela se utilize. No mais, a montagem manauara de “Ça ira” – dirigida por Caetano Vilela – serviu para reforçar aquilo que é senso comum, mas que é sempre salutar reforçar no ambiente naturalmente traiçoeiro da produção artística brasileira. Isto é, Manaus tem competência de sobra para concretizar projetos ambiciosos e cenicamente complexos.

Mas, afinal, quais são os problemas com a ópera de Waters?

Musicalmente pode até parecer que o problema está na presença de elementos da música popular num ambiente tradicionalmente clássico. Mas não. O problema não está na mistura, mas sim nas idéias musicais de Waters, em geral fracas e ingênuas, inclusive dentro das práticas de música popular. Mesmo recauchutado nos arranjos de Rick Wenworth (quem no final das contas pôs a mão na massa de verdade), era difícil atenuar a vocação para a muzak da música que Waters reservou para sua ópera. Em poucas palavras, faltou, ironicamente, rock’n roll em sua aventura pelas sendas líricas.

Em termos de libreto – elaborado por Étienne e Nadine Roda-Gil – a bobagem se multiplica. Dramaturgicamente “Ça ira” não é propriamente uma ópera, mas uma sucessão de situações cênicas que mais se assemelha à estrutura de um oratório (tal como ex-Beatles Paul McCartney faz em seu “Liverpool Oratorio”). Até aí sem problemas, não fosse o fato desta forma de discurso ter sido utilizada para oferecer uma visão extremamente simplista e piegas da Revolução Francesa. Aí o que era frágil desmorona de uma vez.

Com cantores de ópera desempenhando uma partitura não operística (aquém de suas possibilidades musicais) e em situações também não operísticas (aquém de suas obrigações como “ator”) tornam ainda mais relativa a apreciação de seus desempenhos. Deixa pra lá. Para eles o futuro certamente lhes reserva oportunidades melhores.

Desta forma, fica ainda mais preemente a importância do trabalho cênico do “Ça ira” manauara. Rico e luxuoso, com excelentes soluções cenográficas e belo figurino, foi sua parte visual que, por fim, conferiu ao espetáculo o ponto de atenção para o público. Neste sentido, a vertiginosidade da movimentação de palco elaborada por Vilela não deixa de ser um paralelo do que ocorre nos vídeos clipes modernos, que para fazerem o ouvinte abstrair da nulidade musical, fazem do aspecto visual o elemento de maior relevância. Então o ouvido cede lugar aos olhos, e a música torna-se um fenômeno visual, e então colocada em segundo plano. É o que, aparentemente, sempre ocorrerá com “Ça ira”.

Foto: Arlesson Sicsú

Todos os textos da cobertura XII Festival Amazonas de Ópera foram realizados em Manaus, a convite da direção do evento.

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