Um dos grandes músicos de nosso tempo, regente e um dos maiores violoncelistas do século XX, Mstisláv Rostropóvitch encerrou na sexta-feira passada, 27 de abril (um mês após ter completado 80 anos) uma longa batalha contra um câncer do intestino, vindo a falecer em Moscou, cidade que tantas vezes lhe serviu de palco musical e de vida. Poucos dias depois da morte do ex-presidente Bóris Yeltsin, apenas uma figura do porte de Rostropóvitch poderia causar na capital russa o deslocamento de tantas celebridades internacionais e uma enorme fila de admiradores querendo prestar sua última homenagem. Foi na sala de concertos do Conservatório de Moscou – o mesmo onde ele veio a dar os passos decisivos para sua carreira – que o corpo de Rostropóvitch foi simbolicamente velado.
Natural da pequena cidade de Baku, no litoral do Azerbaijão, Rostropóvitch realizou toda sua educação já sob égide da União Soviética. Filho de uma família de músicos, primeiramente aprendeu piano com a mãe, e só depois veio a estudar violoncelo com o pai. Com apenas 16 anos ingressou no prestigiado Conservatório de Moscou, onde conheceu outros músicos que viriam a se tornar ícones da excelência musical soviética, tais como os compositores Dmítri Shostakóvitch e Serguei Prokófiev.
Apesar da unânime importância de sua figura na cena musical clássica, é, no entanto, necessário entender Rostropóvitch em diversas frentes. Num primeiro instante, é irrefutável a maestria com que o músico se expressava ao violoncelo, tendo seu nome ganhado ainda mais amplitude quando o mundo clássico ficou órfão do lendário violoncelista catalão Pablo Casals (1876-1973), com quem, aliás, o pai Rostropóvitch veio a ter aulas. Vale notar ainda que Rostropóvitch foi, em seu instrumento, um dos primeiros a se beneficiar com as novas tecnologias de gravação, já com um padrão de qualidade sonora e a supressão de ruídos bem próximas dos padrões atuais.
Por outro lado, Rostropóvitch ganhou ainda mais notabilidade no ocidente quando em 1970 ele redigiu, em meio ao terror da censura do regime comunista, uma carta aberta na qual reclamava pela liberdade de expressão e de divergência ideológica do artista, que há muito já vinha prejudicando a carreira de grandes músicos soviéticos. A carta, originalmente direcionada ao jornal oficial, o Pradva, nunca chegou a ser publicada, diferentemente do que ocorreu no ocidente, que desde os problemas entre Shostakóvitch e Stálin aguardava ansiosa por outras manifestações de insubmissão na cena musical soviética. No entanto, o preço a ser pago foi alto, tendo Rostropóvitch e sua esposa – a soprano Galina Vishnevskáia – não só impedidos de realizarem turnês pelo exterior, mas também a fazer apresentações na longínqüa Sibéria.
À parte sua liberdade de espírito e seu engajamento político, é especialmente notável o papel que Rostropóvitch teve na modernização do repertório para violoncelo. “O que ele certamente fez de mais importante foi inspirar tantos compositores a escreverem obras para o violoncelo. Ele estreou cerca de 240 obras, entre elas, peças de Prokofiev, Shostakóvitch e Benjamin Britten” diz o violoncelista brasileiro Antonio Meneses, em depoimento exclusivo para a Gazeta Mercantil. Esta faceta de fomentador de um novo repertório é tão marcante que Meneses chega a afirmar que “Se Casals tivesse feito o mesmo no começo do século XX, a história do violoncelo teria sido bem diferente”.
Porém, não foi apenas encomendando e gravando obras que Rostropóvitch realizou sua contribuição para o mundo do violoncelo, tendo sido um também um notável didata. O próprio Meneses, que nunca foi seu aluno direto, mas que freqüentou diversos masterclasses Rostropóvitch (além de ter foi regido por ele), atesta que suas aulas “eram sempre muito divertidas e carregadas de sua incrível energia e carisma. O que causava mais impacto em suas aulas era a sua capacidade de abrir as mentes e os corações dos alunos para a infinidade de possibilidades que temos para interpretar uma obra musical”.
De fato, infinitas possibilidades de interpretação é algo que no caso de Rostropóvitch vai muito além da mera figura retórica, sendo incrivelmente imensa a discografia do músico, dividida entre as atuações frente a uma orquestra e as com o violoncelo junto ao corpo (para se ter uma idéia, a Amazon disponibiliza no momento mais de 300 títulos).
Porém, entre tudo, o maior legado que Rostropóvitch deixa ao mundo da música é de que seja lá quais forem as condições ou o que possa ocorrer, apenas uma coisa importa: fazer música com seriedade profissional e devoção.
Rostropóvitch violoncelista
- “Bach: Cellos Suites No. 1-
- “Beethoven: 5 Cello Sonatas”, acompanhado pelo pianista russo Sviatoslav Richter (Philipps-Classics).
- “Shostakovich: Cello Concerto No.
- “Dvorak & Saint-Saens: Cello Concertos” (EMI-Classics).
- “Strauss: Don Quixote; Schumann: Cello Concerto” conduzidos por Leonard Bernstein e Herbert von Karajan (EMI-Classics).
- “The Glory of Rostropovich: 80th Birthday Tribute” (Deutsche Grammophon).
- “Shostakovich: Symphonies”, com a London Symphony Orchestra (Teldec).
- “Shostakovich: Lady Macbeth of Mtsensk”, com participação de sua esposa, a soprano Galina Vishnevskáia.
- “Tschaikovsky: Ballet Suites”, com a Filarmônica de Berlin (Deutsche Grammophon).
[Este texto é a versão do autor para o artigo semelhante publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição e sem revisão!!!]
Um comentário:
imortalizamos o génio ouvindo o espólio que dos deixou.
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