Mundialmente conhecido por sua produção popular, é hora de começar a ouvir uma outra faceta de sua música.
Há oitenta anos atrás nascia na Tijuca, bairro de classe média do Rio de Janeiro, um músico que marcaria como poucos a música e a própria cultura brasileira. É difícil avaliar a dimensão do impacto da obra de Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, tendo em vista que sua música, aforismas e folclores estão a tal ponto presentes no cotidiano dos brasileiros que muitas vezes não são sequer notados.
Efemérides como esta que ocorre este mês tendem, na maioria das vezes, apenas a reforçar certos estereótipos – na ingênua tentativa de engrandecer ainda mais o que já é monumental por natureza – em detrimento de um entendimento mais amplo e justo de toda a criatividade e talento de Tom, tal como ele é familiarmente tratado por todos brasileiros.
Um dos aspectos pouco explorados pelo mass-media e, conseqüentemente, pouco conhecido do grande público é a faceta de músico clássico de Jobim. Apesar de ser facilmente cantarolado – por mais “desafinado” que se possa ser – o cancioneiro jobiniano é marcado por uma grande sofisticação de sua estrutura harmônica e melódica, fato que a torna ímpar em meio ao cenário geral da música popular brasileira dos anos 50, época em que efetivamente iniciou sua carreira.
Um menino, um piano e sua formação musical
Toda a beleza e singularidade de música de Jobim têm explicação, mais exatamente em seus estudos enquanto músico erudito, realizados com importantes nomes do universo clássico carioca. O ponto de partida para esta aventura musical foram as aulas que Tom, então com quatorze anos, passou a ter com o compositor alemão Hans-Joachim Koellreuter (1915-2005), que desde a década 30 exilara-se da perseguição na nazista na então capital federal do Brasil. Responsável pela introdução em solo brasileiro das modernas técnicas e estéticas musicais de vanguarda, então em voga na Europa, Koellreuter é também muito conhecido pela lista vasta e heterogênea de alunos célebres que passaram por suas mãos ao longo de sua vida, tais como Claudio Santoro, Caetano Veloso, Júlio Medaglia, Guerra-Peixe, Tom Zé e, é claro, Tom Jobim.
Foi com Koellreuter que Jobim não apenas iniciou-se ao piano, mas também começou a aprender os rudimentos da estruturação musical que anos depois seriam fundamentais em seu estilo musical.
Entretando, quando tinha 17 anos, Tom foi aprofundar seus estudos de piano com Lúcia Branco, então uma das mais pretigiadas professoras do Rio, responsável também por parte da formação de músicos como Arthur Moreira de Lima e o hors concours Nelson Freire.
E foi com Lúcia Branco com quem Jobim passou a travar um contato mais íntimo com a obra de Frédéric Chopin (1810-1849), compositor cuja influência é das mais evidentes na poética jobiniana. “Quando comecei a escutar Chopin a sério, pensei, meu Deus, o que é isso? Como é que um sujeito que nasceu há mil anos (sic) já sabia de tudo que eu quero saber agora? Já sabia do ritmo, da harmonia, esse polonês-francês Frédéric Chopin, [tal] como o outro, Claude Debussy”, diz Tom em um de seus poucos mas elucidativos escritos que deixou.
As influências clássicas na música de Jobim são tão pertinentes que alguns professores de música têm dado especial ênfase entre a ponte erudito-popular que a obra jobiniana naturalmente comporta. Tal é o caso de Marisa Ramires, professora da disciplina Harmonia no curso superior de música da FAAM, em São Paulo. “Jobim deixa claros vestígios dessa influência em músicas como ‘Insensatez’, ‘Passarim’ e ‘Luíza’, entre tantas outras. A comparação entre o ‘Prelúdio Opus 28, No. 4’, de Chopin, e ‘Insensatez’, de Jobim, traduz de forma incontestável o vínculo entre eles. É possível durante a audição da peça de Chopin cantarolar boa parte dos versos de ‘Insensatez’ sem maiores dificuldades”, pontifica a professora que se vale do exemplo acima para minimizar as barreiras e preconceitos estabelecidos entre as práticas populares e clássicas.
Dentro do amplíssimo escopo da música clássica, aquela produzida na França parece ser mesmo a que mais seduziu Jobim, tal como fica evidente na refência que ele faz à Claude Debussy (1862-1918). “Esse eu considero uma grande influência. E o Ravel também tem muito a ver com Debussy” diz Jobim e um outro escrito.
Com tantas influências e características da tradição clássica, já não estaria na hora de Jobim começar a freqüentar outros palcos que não o dos bares e das casas noturnas? É o que pensa o pianista Fábio Caramuru.“A obra de Jobim pode e deve freqüentar as salas de concerto juntamente com Villa-Lobos, Guarnieri, Brahms e Stravinsky, pois ela permite ao intérprete uma abordagem pianística das mais ricas” diz o pianista de formação clássica que, no entanto, já defendeu uma dissertação de mestrado sobre Jobim e que lança este mês o CD duplo “Piano: Tom Jobim por Fábio Caramuru”.
A grande sinfonia jobiniana
Se por um lado a formação clássica de Jobim fica evidente quando nos aprofundamos em sua formação e influências, pelo outro ela fica escancarada quando nos deparamos com a produção sinfônica em torno de sua obra, seja ela escrita de próprio punho ou por meio de um sem número de arranjos e transcrições sobre seus temas.
Aqui vale lembrar que freqüentemente Jobim dizia que sua carreira como compositor de música popular veio-lhe meio ao acaso, sendo sua intenção inicial seguir a vida como arranjador, atividade que chegou a excercer de forma exclusiva no início dos anos 50 na gravadora Continental.
De fato, Jobim nunca deixou de ser arranjador, tendo ao longo de sua carreira realizado diversos shows e gravados muitos discos com o acompanhamento orquestral que ele mesmo produzia ou coordenava. Esta fascinação pelo universo sinfônico nasce também dos mestres franceses que tanto admirava, em especial, Maurice Ravel (1875-1937).
Porém, suas influências diretas com a arte da orquestração são provenientes de outros dois gigantes da música brasileira: Radamés Gnatalli (1906-1988) [na foto ao lado com Tom] e Heitor Villa-Lobos (1887-1959). “Na minha paixão pela música, eu gostava do Radamés Gnattali. O camarada tocando o regional, o cavaquinho, a flauta e, de repente, o Radamés começa a escrever aqueles arranjos. Aquilo abriu uma avenida que não tem mais fim. Quando ouvi o ‘Choro n° 10’, de Villa-Lobos, gravado no exterior, tinha os pássaros, a floresta, tinha tudo que era o Brasil. Não era uma polca, nem um tango, era um negócio do Brasil”, diz Jobim, fascinado pela maestria com a qual estes grandes músicos uniam a linguagem clássica com a popular em suas criações.
Jobim levou tão a sério seus estudos de orquestração que muitas obras precisam de cuidado técnico e interpretativo por vezes ausente em seu cancioneiro de caráter mais informal. “São nítidas as citações de Villa-Lobos, Debussy e Stravinsky que Jobim faz em sua ‘Sinfonia da Alvorada’, por exemplo” diz o maestro Roberto Minczuk, que conduziu o espetáculo “Jobim Sinfônico” no ano passado com a OSB (Orquestra Sinfôncia Brasileira) e em 2002 com a OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), que pode ser apreciado tanto em CD como em DVD. “Por conta disto procurei deixar evidentes essas citações e interpretá-las muito próximas às versões originais” continua Minczuk que vê em Jobim “uma genialidade somente encontrada nos grandes compositores da música universal”.
Se a obra sinfônica que Jobim legou é algo em si atraente, a produção sinfônica construída a partir de seu cancioneiro não deixa de ser fundamental. Seus temas musicais são ainda hoje utilizados como matéria prima para inúmeros arranjos sinfônicos tocados não apenas no Brasil. Um bom exemplo disto é o trabalho orquestral realizado por seu filho Paulo Jobim e por grandes arranjadores como Mario Adnet e Claus Ogemann presentes no album “Jobim Sinfônico”.
Ainda nos dias atuais a obra de Jobim mostra-se como um inesgotável manancial de idéias musicais, de onde ainda muita coisa nova está por sair. A mais recente será um “concerto para piano e orquestra” sob temas jobinianos que a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo (BSESP) apresentará na temporada deste ano, a cargo do pianista Caramuru sob a regência de Abel Rocha.
Na condição de um “artista universal” a obra de Jobim mantém-se atemporal e sempre atualizada. Porém, este eterno processo de redescobrimento só ganhará uma nova dimensão quando olhararmos Tom não apenas como o músico que botava som nas letras de Vinícius de Moraes e outros poetas, mas acima de tudo como um Músico. Com “M” maiúsculo.
[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!!!]
Um comentário:
eu adoro as composições de tom jobim, tinha várias em meu repertório. beijos, pedrita
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