16 setembro 2006

Um cravista bem temperado

CD de Nicolau de Figueiredo mostra a beleza da obra de Domenico Scarlatti.

É até um golpe baixo começar um álbum dedicado às sonatas para cravo de Domenico Scarlatti (1685-1757) com a “Sonata em Ré Maior, K 119”: sua sonoridade naturalmente eletrizante, seus trinados e acordes dissonantes imprimem a esta peça características muito peculiares que a destacam da enorme produção que este compositor dedicou a este gênero.

Porém, se o golpe visa capturar o ouvinte logo na primeira música – e isto é um fato – todo o demais que encontramos no álbum “Domenico Scarlatti: Sonatas para Cravo” não é menos belo ou empolgante, seja por conta da maestria da escritura de Scarlatti, seja em virtude da estupenda interpretação do cravista brasileiro Nicolau de Figueiredo. Estupendo pela energia esbanjada nas sonatas mais vertiginosas (tal como na “Sonata K 141”), pelo requinte empregado nas sonatas mais delicadas (tal como na “Sonata K 380”) ou pela inteligência musical aplicada na condução rítmico-temporal das músicas contidas neste precioso álbum.

Natural de São Paulo, desde 1980 Nicolau de Figueiredo está radicado na Europa, seguindo o mesmo caminho traçado por diversos músicos brasileiros que se especializam no repertório anterior ao século XVIII (pois até nos dias de hoje o Brasil é uma terra extremamente hostil para quem queira se dedicar à música antiga). Apesar de seu notório talento para o cravo, as atividades musicais de Figueiredo não se limitam a este instrumento que é tido com um dos mais fundamentais do período Barroco: além de inúmeras apresentações com este instrumento, constam em seu curriculum interpretações ao pianoforte (precursor do piano moderno) e diversas colaborações em produções líricas, além da atividade pedagógica em canto barroco que desde 2004 ensina no Conservatório de Paris.

Com tanto talento, apenas pontualmente Figueiredo faz apresentações no Brasil, ocasiões imperdíveis para se testemunhar ao vivo a inventividade musical deste artista que com este álbum renova o interesse sobre as sonatas de Scarlatti, que já foram registradas pelas mãos de grandes músicos, tal como o cravista norte-americano Scott Ross (que gravou todas as sonatas de Scarlatti) e o pianista russo Vladimir Horowitz.

Natural da cidade italiana de Nápoles, Domenico foi filho de um importante compositor de óperas e oratórios do período Barroco, Alessandro Scarlatti. Porém, sua complicada relação com o pai (de quem viria se emancipar apenas as 32 anos de idade) talvez seja o principal responsável por Domenico não se dedicar aos gêneros pelos quais o pai havia conquistado notabilidade na Europa, aprofundando-se então na composição de sonatas para cravo. Hoje em dia estão contabilizadas 555 sonatas, porém tudo leva a crer que Scarlatti tenha composto muitas outras, já que parte de sua produção pode ter se perdido durante o caos que se instaurou em Lisboa após o terremoto assolou a cidade de 1755, então sede da corte portuguesa para qual o compositor esteve a serviço por muitos anos.

Ainda em vida, suas sonatas foram executas em diversos lugares, ganhando diversas edições, o que indica um alto grau de aceitação que sua obra tinha com o público. Desde então estas sonatas nunca mais deixaram o cânone da música ocidental, e desde de meados do século XX – quando se iniciou o resgate de práticas e técnicas musicais antigas – as sonatas de Scarlatti têm ganhado uma nova dimensão quando interpretadas não mais por piano comum, mas sim no instrumento para o qual ele as concebeu, isto é, o cravo.

A sonoridade ao mesmo tempo áspera e cintilante deste instrumento de tecla é inclusive um dos pontos fortes do álbum de Nicolau de Figueiredo, não só pela competência do músico, mas também pela versatilidade do instrumento utilizado nesta gravação e pelo belo trabalho de gravação realizado, que será melhor degustado em um bom fone de ouvido com os alto-falantes fisicamente bem separados um do outro (os sons graves estão sutilmente mais proeminentes no canal esquerdo e os agudo no direito do conjunto em estereofônico). É, enfim, presença obrigatória em qualquer discoteca.

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