17 fevereiro 2006

Pocket-Mozart

As Bodas de Fígaro estréia no Theatro Municipal de São Paulo

Uma mulher arrastava-se pelo chão, acompanhada apenas pela cadência de um metrônomo mecânico. Uma bailarina fazia seus movimentos numa câmara à parte. Pelas escadarias e ante-salas, violinistas tocavam de forma rapsódica melodias famosas. Dentro da câmara ardente – isto é, a platéia – quem entrava se deparava com o palco em sua forma crua, sem cenários, com suas entranhas de cabos e tijolos à mostra, ao som cerimonioso do órgão tubo que ecoava a acordes escritos pelo salzburguense mais famoso do mundo.

Foi este ambiente de happening – diga-se de passagem, bastante “retrô” e comportado – que, no sábado passado, preludiou a estréia da montagem paulistana da ópera “As Bodas de Fígaro”, iniciando oficialmente a temporada 2006 do Theatro Municipal de São Paulo. Num ano marcado por efemérides de importantes compositores clássicos – Radamés Gnatalli, Dmitri Shostakovich e Robert Schumann – o Municipal aposta suas fichas no festival “Mozarteando”, que prevê ainda para este ano mais uma ópera (“A Flauta Mágica”) e diversos espetáculos sinfônicos, camerísticos e de bailado dedicados aos 250 anos de nascimento de Wolfgang Amadeus Mozart.

Com a Orquestra Sinfônica Municipal (OSM) sob a regência de José Maria Florêncio e a direção de cênica e de arte de José Possi Neto, as “Bodas” paulistana foi, em sua maior parte, uma montagem alegre e cativante, características estas asseguradas sobretudo pela partitura de Mozart e pelo libreto de Lorenzo da Ponte, que narra uma verdadeira “comédia dos erros” em torno do casamento de Fígaro e Susanna, que devem se esquivar dos desejos, por assim dizer, pouco ortodoxos que o Conde de Almaviva tem para com a noiva do protagonista da história.

O barítono Paulo Szot desempenhou um Fígaro musicalmente seguro, levando a cabo a astúcia inerente ao personagem, explorando as blagues que aqui e acolá surgem no libreto, seja nos recitativos secos, seja nas árias, tal como em “Se vuol ballare, signor Contino” e na famosa “Non più andrai, farfallone amoroso”. Susanna (a soprano Rosana Lamosa) esteve à altura da astúcia cênica e musical de seu par cênico, tal como no hilário dueto “Via, resti servita” em conjunto com Marcellina (a soprano Elizabeth Gomes).


No papel de Conde o barítono Stephen Bronk imprimiu com seu talento musical e cênico às diversas facetas sentimentais deste personagem, ora libidinoso, ora perverso, ora confuso com os estranhos acontecimentos que rodeiam a si e sua esposa Rosina (a soprano Claudia Riccitelli).

Apesar de no contexto da trama desenvolver um papel co-adjuvante, a meio-soprano Denise de Freitas explorou belamente as duas pequenas árias “Non so più cosa son, cosa faccio” e “Voi che sapete che cosa è amor” que Mozart reservou ao pajem adolescente Cherubino. Apesar dos bons desempenhos individuais, nos diversos trechos em conjunto ficou a impressão de que poderia haver maior dinamismo cênico.

Mesmo a ambientação da história não prever um lugar necessariamente suntuoso, causa estranheza a cenografia simplória da montagem (em especial, nos três primeiros atos) imprimindo um aspecto de “pocket ópera” um tanto deslocado para um palco com as dimensões do Municipal. A opção de reduzir o colorido de todos os figurinos (bem como o cenário) a matizes de bege também não ajudou a salvar a simplicidade visual da montagem, o que contrastou com a excelência do elenco vocal e da boa interpretação da OSM. Mais uma vez, as aparições do corpo de bailado são tão dispensáveis que eles sequer aparecem na parte principal do programa.

Apesar do desnível entre a parte musical e a cênica, as “Bodas” paulistana é uma forma alegre de iniciar este ano que promete muitas homenagens a Mozart, mas que ainda está por provar o que poderá cumprir.

[Publicado originalmente na Gazeta Mercantil. Versão sem cortes, sem edição, sem revisão!]

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